terça-feira, 30 de março de 2021

Anomia ou espelho quebrado?

Anomia ou espelho quebrado? 

Narciso acha feio o que não é espelho.

(Caetano Veloso)

Paulo Sérgio Ribeiro

Não é a primeira vez que escrevo com o pensamento em Viçosa/MG, atual morada deste blogueirinho sujo. Atrever-se a lembrar donde se vive é um risco, pois há sempre a chance de se repetir clichês ao tentar um distanciamento crítico do que lhe pareça familiar ou banal.

Quase nada sei de Viçosa, ainda que esteja nela situado há quase dois anos. Como qualquer habitante, certo trajeto se impôs a minha rotina e este circuito fechado se revelou demasiado claustrofóbico à medida que o isolamento se fez permanente na pandemia. Isolamento, não duvidem, tem sido apenas um ato pessoal de estoicismo diante da quarentena meia boca que alguns eufemisticamente chamam de “novo normal”.

O que é “normal”? O que nos vincula aos outros ao evocá-lo? Haveria alguma escala de valores para mensurá-lo?

O atrativo maior de Viçosa é o campus que lhe toma de empréstimo o nome: Universidade Federal de Viçosa (UFV). Sem dúvida, um deleite para quem aprecie suas manchas de Mata Atlântica, toda sorte de pássaros silvestres, sua jardinagem impecável, além, claro, de ser a preferência de dez em cada dez praticantes de esportes ao ar livre. Estes, entretanto, terão de eleger outro passeio público com a medida restritiva estabelecida pela Reitoria da UFV[1], haja vista a quantidade de frequentadores da universidade que, isoladamente ou em grupo, dispensam a máscara ao se entrecruzarem confiando na vastidão do campus, na providência divina, no Kapitão Kloroquina (com K) ou em sei lá o quê.

Ainda que considere tal decisão razoável, ela faz emergir uma questão que tanto inspira quanto atormenta àqueles(as) que, um dia, beberam da água da sociologia clássica: afinal de contas, o que faz o laço social?

Talvez, fosse mais fácil começar pelo que o esgarça – a dissolução do pacto federativo, entre outros processos de desagregação social - como sinaliza um dos mais argutos cronistas da questão nacional de que dispomos, Roberto Moraes[2]:  

 

A guerra federativa do desgoverno do Partido Militar contra governadores é muito profunda e de riscos incalculáveis.

[...]

Isso começou com a negação da pandemia, se ampliou com a propaganda de remédios sem efeitos, seguiu com o enrolo em relação às vacinas e agora com relação à distribuição orçamentária, como se as pessoas não vivessem nas cidades e estados, mas de um único país. Ninguém mora na nação, sem morar num município ou estado.

[...]

O resultado disso é a redução e a perda da identidade, do sentimento de pertencimento à nação Brasil. União sem soberania e sem articulação e cooperação federativa não é nação.


Não suponho que a nacionalidade seja a definição última de um sentimento comum quanto à origem ou destino coletivo. Mas aceitemos que a ideia moderna de “nação” vá ao encontro da tentativa de dar nome a certas relações de interdependência entre indivíduos estranhos entre si quando o que está em jogo é o controle sobre determinado território, assim como a instituição do Estado de cuja legitimidade depende o fato de que a totalidade daqueles indivíduos seja algo além do que a simples soma das suas partes. A mediação entre Estado e sociedade implica, pois, a figuração de um “todo orgânico” pela qual suas contrapartes se reconheçam mutuamente até mesmo para se posicionar diante dos seus conflitos mais cruentos.

Dito de outro modo, um mínimo de expectativa recíproca das maneiras de pensar, sentir e agir se faz necessário para que uma sociedade complexa transcenda nossas vidas sem reduzi-las a pura contingência. Mas, o que dizer quando um indivíduo se vê ameaçado por sua própria coletividade? Em termos simples: o que fazer quando, diante de um vírus da Covid-19 transmissível pelo ar, engrossando taxas de contágio galopantes e de óbito assustadoras, é quase certo que você topará com alguém ou algum grupinho sem máscara no campus da UFV, numa rua ou praça de Viçosa ou de qualquer outra cidade neste país?

Evidente que aqui subjaz uma situação de classe peculiar: escrevo do ponto de vista de quem pode se isolar para leitores que, provavelmente, participem de condição similar. Há, todavia, um sem número de categorias de trabalhadores que, simplesmente, têm de se expor e, ainda que tentem evitar condutas de risco, estão submetidos a maiores chances de se contaminar. Trato aqui, tão somente, de um comportamento coletivo – ser um agente colaborador de uma guerra biológica contra a humanidade – e do que ele revela sobre como laços sociais se fazem ou desfazem.

Diante desse comportamento coletivo sui generis, indago se há um estado de anomia entre nós.

Em uma primeira aproximação do conceito, anomia consistiria num estado de desorganização social resultante da perda do efeito disciplinador das normas sobre as condutas. A baixa adesão coletiva às tentativas episódicas de governos municipais ou estaduais de restringir a circulação de pessoas nos levaria a crer que a anomia, nos termos tratados até aqui, manifestar-se-ia como um conceito inequívoco em nosso cotidiano.

Porém, ressalva Heloísa Fernandes[3], a evolução mesma do conceito de anomia na obra de Émile Durkheim evidencia um diagnóstico da modernidade controverso em suas premissas.

Se nas primeiras obras do velho mestre francês - Regras do Método Sociológico e A Divisão do Trabalho Social –, anomia seria uma espécie de gradação do célebre conceito de “solidariedade orgânica” que, por sua vez, refletiria uma perspectiva dos conflitos como sintomas passageiros de uma sociedade que, qual um ser vivo em crescimento, comportaria fases de desiquilíbrio rumo ao estabelecimento de novas formas de vida social - desde que seus “órgãos” se mantivessem interdependentes - , em O Suicídio, diz Fernandes, há uma mudança de ênfase: com o “suicídio anômico”, admite-se a possibilidade de que o corpo social seja destruído, na medida em que uma ordem normativa internalizada não seja mais páreo para as paixões humanas que nos arrebatam:

 

Anomia é, então, o diagnóstico do corpo doente, e não mais das relações dos órgãos entre si. Ademais, não deriva da inexistência de regras de intercâmbio mas da ausência de freios. Já não indica a desordem de uma etapa no curso de uma evolução progressiva e automática em direção à solidariedade orgânica mas é o mal que ameaça a sociedade moderna (FERNANDES, 1996, p.75).


Ora, por que duvidar da pertinência do conceito de anomia se continuamos a morrer aos magotes pela elevação da liberdade individual a um valor absoluto por aqueles que dispensam máscaras nos espaços públicos ou simplesmente avacalham a noção de “desobediência civil” como subterfúgio para se reunir às dezenas em quaisquer espaços? Esta imoderação da comportamento não prova que determinadas pessoas seriam espécimes do “homo bolsonarus”, assim interpretado por Renato Lessa[4] como o mergulho numa distopia: devolver-nos ao estado de natureza?

Ao ponderarmos a correlação entre as maiores taxas de contágio da Covid-19 e as cidades com maiores resultados eleitorais favoráveis a Bolsonaro em 2018 [5], é bastante tentador tomar aquele segmento da população brasileira como o avesso da modernidade: a barbárie.

Contudo, tal suposição se mostra duvidosa a julgar pelo acerto de Fernandes (op. cit.) na análise que fez da sociologia do consenso de Émile Durkheim em diálogo com a psicanálise. O conjunto de valores e crenças que regulam o comportamento humano seria o correlato do superego, esta instância da autoridade moral a expiar nossas volições inconscientes numa luta sem fim por domá-las... em vão. Todavia, a consciência coletiva atribuível àquela “autoridade” se desvanece quando o indivíduo encontra-se sob pressão das múltiplas filiações valorativas propiciadas pela ruptura com a tradição que a modernidade nos brindou. Entregue às suas disposições de agir cada vez menos comprometidas com valores comuns – conformismo moral -, teríamos indivíduos insaciáveis e incontroláveis.

Ora, o que Durkheim toma por ameaça à sociedade moderna – a anomia – não seria a própria condição moderna? Sentir-se “perdido” não passou a ser uma constante em nossas vidas com a vacuidade de sentido num mundo onde (lembrando Weber) todos os valores são sagrados? Aliás, a entronização do indivíduo, indaga Fernandes, não seria o preço a se pagar pelas crenças modernas que nos constituem:

 

Quem sabe a anomia seja mesmo um sintoma do mal-estar na modernidade ? Sintoma dessa impossibilidade de habitar uma cultura que nos demanda como indivíduos – seres indivisos, monádicos, desterrados e “livres como pássaros” – ao mesmo tempo que não cessa de nos cobrar porque obedecemos tão bem ao seu mandato! (FERNANDES, 1996, p.78).


Sim, somos objeto de um experimento político genocida em curso, mas seus agentes colaboradores – ainda que personifiquem de maneira grotesca o “homo bolsonarus” – não são, necessariamente, encarnações de um passado arcaico, mas típicos homens e mulheres da modernidade. A perplexidade é reconhecer que não há qualquer chance de uma negociação pacífica de dissensos com aqueles, digamos, congêneres da vida humana. 

Com “eles” não haverá um “nós” a ser compartilhado, mas um mundo a ser disputado.



[2] BRASIL 247. A construção da guerra federativa do desmonte nacional. Edição de 01/03/2021 Disponível aqui.

[3] FERNANDES, Heloísa. Um século à espera de regras. Tempo soc.,  São Paulo ,  v. 8, n. 1, p. 71-83,  jun.  1996 . Disponível aqui.

[4] LESSA, Renato. Homo bolsonarus. Revista Serrote, Instituto Moreira Salles: São Paulo/SP, jul. 2020 (Edição especial).  

[5] Jornal O Globo. Cidades pró-Bolsonaro registraram maior taxa de contágio pela Covid-19, indica estudo. Edição de 04/05/2020. Disponível aqui.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Religião e milícias: o Cristo-fascismo no Soberania em Debate



Há pouco mais de um mês, nosso bravo Fabio Py concedeu entrevista a Chico Teixeira, editor e apresentador do canal "SOS - Brasil Soberano", vinculado ao Sindicato dos Engenheiros do Estado do Rio de Janeiro. Na entrevista. Fabio abordou o protestantismo brasileiro, suas matrizes fundadoras, diferenciação interna e injunções na política brasileira contemporânea, particularmente as expressões que assume sob o fundamentalismo cristão. 

Desejamos a tod@s um excelente debate.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Dia internacional da mulher: Dia de luta, dia de busca por igualdade e respeito


Dia internacional da mulher: Dia de luta, dia de busca por igualdade e respeito*

 

Renata Souza**

 

O dia 8 de março de 2021 será uma um pouco diferente dos 8M de anos anteriores. Estamos vivendo o ineditismo de uma crise sanitária que está perto de completar um ano e já ceifou mais de 265 MIL vidas, só aqui no Brasil. Mesmo vendo nas redes sociais e em reportagens que muitas pessoas estão naturalizando a gravidade da situação e abandonando as recomendações de segurança sanitária preconizada pela OMS, a pandemia é real e letal, queira as autoridades, e seus seguidores, ou não.


A pandemia desnudou uma série de problemas estruturais históricos da nossa sociedade, principalmente a divisão desigual de trabalho entre homens e mulheres. O isolamento social necessário para a contenção do contágio pelo COVID-19, nos colocou diante de um outro problema, seja ele, a sobrecarga de trabalho para nós mulheres. Principalmente os trabalhos relacionados ao cuidado, pois além de termos que dar conta de nossas atividades remuneradas, no home office, era necessário cuidar de tudo para que nossos filhos e/ou companheiros também pudessem dar conta de suas respectivas atividades, seja escolar ou profissional.


Deste modo, vivenciamos, historicamente, uma série de desigualdades e violência pela condição de gênero, ou seja, por sermos mulheres, há a necessidade e a urgência de leis e até mesmo datas comemorativas relacionadas as nós. Essas medidas visam a conscientização e a mudança de mentalidade.


A Organização das Nações Unidas (ONU), em 1975, oficializou o dia 8 de março como o dia Internacional da Mulher. Mas a pergunta que lhe faço é: Você sabe por que existe um dia da mulher? Qual a necessidade de separar uma data para lembrar ou “celebrar” a mulher?


Gera-se até mesmo o questionamento do senso comum, sobre qual seria o dia do homem? Ou outras pérolas, que evidenciam uma estratégia muito comum aqui no Brasil, por parte dos grupos privilegiados ou pelos grupos alienados, que não conseguem entender o seu lugar social, que muitas vezes encampam o discurso do opressor e reproduzem as opressões. É a ideia a de que o opressor também é oprimido, numa clara tentativa de deslegitimar lutas por igualdade de condições.


E esse contra-ataque já nos é bem conhecido, existindo até as frases prontas e clássicas tais como: achar que existe racismo inverso, que deveria existir o dia do homem, a lei João da Penha dentre outros devaneios que escutamos por aí, no claro esforço de diminuir ou inferiorizar a luta por demandas específicas.


O dia Internacional da Mulher, historicamente, tem relação direta com a luta das mesmas por igualdade de condições econômicas, políticas e sociais, uma vez que a imagem feminina sempre esteve ligada à ideia da esfera doméstica, da fragilidade, maternidade e da inferioridade. O que criou barreiras para que as mulheres fossem consideradas até mesmo cidadãs.


E esse modelo de mulher ligada à esfera doméstica remonta ao início do século XIX, fruto de uma construção social consolidada na opinião pública, na imprensa e nas leis. Segundo, as historiadoras Carla Bassanezi Pinsky e Joana Maria Pedro em seu artigo Igualdade e Especificidade.  “A mulher que atua nos territórios ‘masculinos’ da cultura e da política foi repudiada em favor da mulher doméstica, que elege a família como centro de sua vida”. Reforça, o que as autoras chamam de segregação sexual dos espaços públicos e privados.


Foi somente a partir das revoluções Francesa e Americana que a ideia de romper com o status quo, começou a ecoar nas sociedades da época. Assim, abrindo espaço para que as hierarquias e poderes estabelecidos pudessem ser questionados. Mas como sempre, nem tudo são flores. Mulheres mataram e morreram em nome dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade, propalados pela revolução Francesa. E depois de terminado o trabalho duro, as mesmas foram convidadas a retornarem para seus lares e servirem a nação como eximias donas de casa.


Retomou-se a ideia de que para as mulheres cabia a vida doméstica constitutiva da “natureza” feminina e não os assuntos do Estado, que eram considerados da “natureza” masculina. Por essas e outras que alguns historiadores falam das contradições das ideias iluministas que não contemplavam as mulheres.


Desde o início da Revolução Industrial, quando o emprego da mão de obra feminina se mostrou necessário, elas eram submetidas a jornadas de trabalho, que podiam chegar há 16 h por dia. Uma atividade desumana e mal remunerada. O que nos mostra que ao longo dos tempos o trabalho feminino, quando lhes era permitido um trabalho remunerado, sempre foi desvalorizado e explorado.


Assim, a data é relacionada ao incêndio ocorrido em uma fábrica em Nova York, em 25 de março de 1911, quando 146 trabalhadores morreram queimados, dentre eles 129 mulheres. Evidenciou-se as péssimas condições de trabalho, já que as portas ficavam trancadas para impedir a fuga dos trabalhadores. Há uma versão que diz que o incêndio foi causado criminosamente pelo patrão em resposta a uma greve dos operários dessa fábrica, que se trancaram na mesma para reivindicar melhores condições de trabalho e salário.


Não podemos permitir que essa data “comemorativa” seja descolada de seu real sentido e significado, passando a figurar como mais uma data qualquer, ou apenas uma data comercial. Precisamos urgentemente resgatar o real sentido e significado desta data. E é muito bom lembrar, que o dia 8 de março não é dia de presentear as mulheres com flores ou chocolates, ou qualquer tipo de presente. É dia de luta! É dia de balanço sobre nosso lugar na sociedade.


Dia de questionarmos o porquê de ainda ganharmos salários inferiores aos dos homens em cargos de mesma escolaridade e atribuições. É dia de perguntarmos quem matou Marielle?


Dia de questionar o porquê de sermos vítimas diárias das mais variadas violências e desrespeitos. De questionarmos o porquê de não podermos exercer plenamente o direito constitucional de ir e vir sem sermos estupradas. Dia de lembrarmos que não devemos fazer essas reflexões e questionamentos só no dia 8 de março de cada ano. Dia de lembrarmos que devemos resistir e reivindicar direitos todos os dias.

 

* Publicado originalmente em Ururau Jornal Online (aqui)

 

**  Professora de Sociologia da Educação Básica, Mestre em Sociologia Política, Pesquisadora do Núcleo Cidade, Cultura e Conflito e Doutoranda em Sociologia Política na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).