terça-feira, 27 de dezembro de 2022

A dor não acolhida dos (meninos)-jogadores da seleção brasileira

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A dor não acolhida dos (meninos)-jogadores da seleção brasileira

 

Tábata Berg**

 

Quem me conhece, sabe que sou apaixonada por futebol, apesar de ter passado a última década e meia um tanto brochada. E sei que, como tão bem nos ensinou Galeano, futebol e política encontram-se fundamentalmente imbricados. A Copa escancarou várias dessas tessituras. Não vou falar aqui do que tem sido tão debatido no plano do macro, solo pútrido que contamina todas a dimensões do espetáculo, isto é, dos acordos econômicos milionários, da superexploração do trabalho imigrante, da misoginia, homofobia e racismo que estruturam o futebol como uma poderosa instituição capitalista.

Vou me deter a algumas impressões mais subjetivas.

Logo após o primeiro jogo do Brasil, aquele que Neymar saiu machucado e Richarlyson fez uma bela partida com um gol que foi uma obra de arte, eleito pela FIFA como o mais bonito do campeonato, as minhas redes progressistas foram tomadas por publicações sérias e memes que contrapunham esses dois craques da seleção. Ressalto, de antemão, que acho legítimo que Neymar tenha sido responsabilizado por seus posicionamentos políticos. No entanto, incomodou-me profundamente o prazer sádico, típico da branquitude, em rivalizar dois homens negros e periféricos. Expurgar o próprio mal para o outro, nesse caso, Neymar, é uma estratégia colonial, talvez a mais basilar. Sugiro leituras atentas, não apenas proforma, de Lélia Gonzalez, Toni Morisson, Fanon.

Depois foi a vez da carne folheada à ouro. Vi várias postagens de pessoas cujo próprio existir é um impacto ambiental e social, que são partícipes de instituições ainda profundamente excludentes, como é o caso das nossas universidades, apontando o dedo! Novamente... Expurgar o mal é uma delícia, né, meu filho?!

Quando o Brasil perdeu, vieram outras postagens. Dois padrões nessas publicações me são particularmente indigestos.

Em primeiro lugar, aquele que reproduzia a noção de "meninos" do futebol como uma reposição não mediada do machismo, especialmente vinculada à irresponsabilidade afetiva e ao abandono paterno - aspectos amplamente difundidos no caso do jogador Militão. Não pretendo entrar nos entremeios desse caso. Ressalto, o patriarcado, com a consequente reprodução de um padrão de maternidade/paternidade que responsabiliza com uma desigualdade abissal mulheres e homens pelos cuidados de crianças e idosos atravessa as mais distintas posições e condições sociais. Todavia um olhar interseccional e, portanto, mais acurado nos possibilita não perder de vista as singularidades que conformam masculinidades não-hegemônicas. Houve de modo difuso uma certa identificação do caso do Militão com essa meninice tipicamente tupiniquim. Em contraposição há uma paternidade e afetividade responsáveis encarnada no jogador argentino (branco) Lionel Messi. É particularmente interessante, nesse contexto de contraposição, o silenciamento de paternidades ativas como a exercida pelo jogador Neymar Jr. O racismo é estrutural justamente por operar também de modo difuso e silencioso.

 A identificação da tríade ausência parterna, masculinidades negras e periféricas e meninice é profundamente perversa, pois esconde todo o processo histórico no qual o escravismo impossibilitou homens negros de constituirem famílias e estabelecerem vínculos afetivos e familiares duradouros, impossibilidade que foi atualizada no pós-abolição seja pelas políticas de barreiramento (Moura, 1977), seja pelo genocídio aberto empreendido pela República brasileira contra a população negra, em particular, contra o homem negro (Gonzalez, 1984; Nascimento, 1977).

E , ainda, se ser “menino” tem sido amplamente utilizado para desresponsabilizar sujeitos brancos de suas ações, como podemos ver no caso de crimes que envolvem jovens brancos, não podemos fazer uma simples transposição para os homens negros, nesse caso, “menino”, “moleque”, “garoto” é mobilizado como marca de uma subumanidade. Os infantes, como bem nos mostra Lélia Gonzalez, são aqueles sem direitos plenos, aqueles pelos quais e dos quais se fala. Segundo a autora:

 

“temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, porque falada pelos adultos) [...] A primeira coisa que a gente percebe, nesse papo de racismo é que todo mundo acha que é natural. Que negro tem mais é que viver na miséria. Por que? Ora, porque ele tem umas qualidades que não estão com nada: irresponsabilidade, incapacidade intelectual, criancice, etc. e tal” (GONZALEZ, 1984, p. 225).

 

Mesmo ganhando milhões, homens negros e periféricos, seguem sendo tratados como meninos. Negar aos oprimidos a sua plena condição de sujeito, capaz de se responsabilizar e falar por si, continua sendo fundamental para que a estrutura capitalista do futebol siga tutelando-os, ao mesmo tempo em que reproduz estigmas raciais e de classe.

O outro padrão, mas que me parece intrinsecamente ligado a esse, foi a minimização da dor dos jogadores diante da derrota. Vale ressaltar que se dedicar a esportes de alta performance demanda um investimento libidinal exorbitante e, portanto, um grande sofrimento diante da derrota. Sabendo disso, qual é o peso dessa derrota para sujeitos cujo existir é absolutizado pelo futebol? E isso num sentido literal, pois o esporte para muitos desses jogadores pode ter representado a linha tênue que os separou do encarceramento ou mesmo da morte violenta. 

Na derrota para a Croácia, eu chorei com os jogadores da seleção,  li seus relatos no instagram com o coração partido. Inclusive, o de Neymar, que entregou tudo nos últimos jogos e que pode ter tido a última oportunidade de vencer uma Copa do Mundo.

Sim, sujeitos periféricos podem sofrer! O direito ao sofrimento, à demonstração de fragilidade diante da dor tem sido um direito há tempo demais exclusivo dos humanos plenos. Tem dúvida? Veja as estatísticas de como às mulheres negras têm sido negado analgesia em procedimentos médicos ou como homens indígenas e negros lideram os números de sucídio no país. "Mas eles ganham milhões!", por trás desse pensamento expresso, há outro mais fugidio, a ausência do direito à humanidade plena a qual homens negros e periféricos encontram-se submetidos, no caso, ao direito tão primordial de sofrer e ser acolhido na derrota.

 

Referências

 

Gonzalez, Lélia. Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.

Moura, Clóvis. O negro: de bom a mau cidadão?, 2021 (1977).

Nascimento, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva, 2016 (1977).

* Portinari, "Futebol em Brodowski', trabalho de 1935. Disponível em: https://www.arteeblog.com/2018/06/pinturas-de-futebol.html, acesso em 27 de dezembro de 2022.

** Tábata Berg é Doutora em Sociologia pela Universidade Estadual de Campinas e integra o Grupo de Pesquisa Mundo do Trabalho e suas Metamorfoses, o GPMT, também na Unicamp. Tábata organizou e lançou neste longo ano de 2022, junto de Flávio Lima e Murilo van der Laan, a obra “Trabalho e Marxismo: questões contemporâneas”: https://lutasanticapital.com.br/products/o-livro-trabalho-e-marxismo-questoes-contemporaneas.