Especialmente
após a crise global de 2008, o mundo foi tomado de assalto por um espírito
autoritário, que encontra conformações específicas em cada país, o que precisa
considerar as desigualdades históricas nacionais. Donald Trump e Jair Bolsonaro
são, neste sentido, excelentes exemplos advindos de realidades históricas bem
distintas.
Ao observar
as razões que levaram à ascensão e a queda e que podem levar à reascensão de
tais líderes, podemos notar diversos fatores em comum. Dentre eles, as
dificuldades na vida econômica da nação, o que significa especialmente o
aumento da precariedade e do espectro da indignidade nas classes populares,
serão sempre o primeiro aspecto a ser observado. Não foi outra coisa o que fez
Erich Fromm em seu tempo, ao buscar compreender as razões profundas do
fascismo.
Entretanto,
para ele, as razões psicológicas se apresentaram como de maior importância, o
que também é fundamental para compreendermos as novas formas de autoritarismo
atuais. Isso não significa cair em um psicologismo, o que Erich Fromm deixa
muito claro em sua leitura de Freud e sua ruptura com o mestre. Para Fromm, a
natureza humana é dinâmica, sendo modificada ao longo do processo histórico, ao
mesmo tempo em que o modifica.
Tal
percepção pode ser encontrada em seu belo livro O medo à liberdade (Fromm,
1974). Nele, o autor procura compreender as dificuldades humanas na
modernidade em sua relação com a liberdade. Liberto das amarras anteriores, o
indivíduo agora não sabe o que fazer com sua nova condição, encontrando-se
angustiado e com medo. Teríamos assim a condição perfeita para uma entrega à
influência de líderes autoritários.
Isto foi
fundamental para entender o fascismo clássico. Entretanto, na atualidade,
precisamos atentar para alguns aspectos específicos. Fromm não presenciou, por
exemplo, o que a máquina tecnológica atual é capaz de fazer com a produção
de fake news e a mudança de consciência nas pessoas. Sem este
mecanismo de poder Donald Trump e Jair Bolsonaro simplesmente não existiriam.
Faço menção a estes dois casos específicos por considerar as semelhanças da
ação do neofascismo em sociedades de massa gigantescas como o Brasil e os
Estados Unidos, marcadas por fortes desigualdades estruturais. Encontraremos
outros aspectos específicos na Europa e no mundo asiático.
Pensando
especialmente no caso brasileiro, Jair Bolsonaro foi uma resposta um tanto
quanto imprevista ao fracasso de um certo sistema político, econômico, moral e
simbólico em promover justiça social e atender aos anseios existenciais mais
profundos da sociedade brasileira e especialmente das classes populares.
Refiro-me a um sistema que se esboça na década de 2000 e que normalmente
definimos como “progressista”.
Naquele
momento, a eleição de Lula incorporou e simbolizou este movimento, em consonância
com o cenário global. Esta será uma década que vai presenciar grande esforço
por parte dos governos do PT em promover justiça e inclusão social, o que foi,
entretanto, muito menor do que o discurso do governo. Este esbarrou na
desigualdade estrutural brasileira e no poder ilimitado de sua elite.
Com isso, a
grande discrepância entre as promessas do sistema progressista e as
possibilidades efetivas de mudança social foram gerando uma série de
dificuldades no campo político e, em contrapartida, uma série de frustrações no
seio da sociedade. Neste sentido, a perspectiva teórica de Fromm cai como uma
luva. Esboçando uma interpretação, podemos dizer que os esforços do sistema
progressista geraram expectativas fora da realidade, buscando provocar um
caráter social igualmente progressista, tolerante e inclusivo. Em boa medida,
não podemos negar o surgimento de um caráter social com boas expectativas de
justiça e igualdade, considerando que várias ações do governo de fato
promoveram alguma inclusão e justiça social nas camadas populares.
Entretanto,
a discrepância entre a “grande promessa” progressista e a realidade estrutural
do Brasil se colocou como o grande empecilho. Neste ponto, não podemos ignorar
a realidade global promovida pelo capitalismo “flexível”, que eu prefiro
definir como “indigno”. Com isso, precisamos ir além do nacionalismo
metodológico e romper com a interpretação equivocada de que o Brasil e a
América Latina possuem culturas autoritárias arraigadas em sua história, o que
explicaria os fenômenos autoritários atuais. Com efeito, um olhar atento no
cenário atual pode perceber a existência de uma cultura autoritária em escala
global, inclusive aqui na Europa, o que pode ser visto com toda a nitidez no
grau de intolerância crescente diante dos imigrantes.
Compreendo
este fenômeno como um resultado tardio da ascensão de um capitalismo indigno e
autoritário, em escala global, desde a década de 1970. Este resultado é tardio
no sentido de que, em grande medida, ficou ‘debaixo do tapete’ da grande promessa
progressista neoliberal das últimas décadas. Incondizente com a realidade, esta
promessa apenas omitiu a ação real do capitalismo indigno, cuja verdadeira face
é autoritária, promovendo desigualdade e injustiça social como nunca, agora em
escala global. Neste sentido, a falência do Welfare State em
países como Alemanha, França e Inglaterra é uma das principais provas empíricas
da existência deste novo tipo de capitalismo e de sua lógica intrínseca de
ação.
É claro
que, se compararmos países como a Alemanha e o Brasil, veremos que, na
primeira, o Estado ainda possui volumosos recursos para defender o país do
“grande fracasso” do sistema progressista. Veja-se, por exemplo, a crise do gás
promovida pelo contexto da guerra na Ucrânia. Por outro lado, todo o empenho
progressista dos governos de esquerda no Brasil não foi suficiente para
enfrentar nossa desigualdade estrutural. Como resultado, na década de 2010
começaremos a ver os efeitos deste fracasso e suas especificidades no caso
brasileiro.
As
manifestações de 2013, que agora completam dez anos, demonstraram uma certa
revolta contida nas camadas populares, o que foi rapidamente manipulado por
grupos de poder, criando uma crise profunda nos governos de Dilma Rousseff e
levando ao seu impeachment em 2016. Rousseff quase não se reelege em 2014, o
que revela tanto a crise de seu partido quanto a falência maior do sistema
progressista global.
Novamente,
a teoria de Erich Fromm se apresenta como muito propícia. Para ele, o caráter
social significa o tipo ou perfil de humanidade predominante em uma época ou
contexto histórico específico. Em termos simples, é preciso entender o caráter
social do brasileiro mediano que votou e acreditou nos governos progressistas
do partido dos trabalhadores de Lula e Rousseff. Um dado extremamente
importante aqui é que um grande número de pessoas votou duas vezes em Lula,
duas vezes em Dilma e então em Jair Bolsonaro. Isso não é casual e se explica
em grande medida pela frustração generalizada diante da grande promessa que se
transformará em descrença, apatia, animosidade e intolerância em grande parte
da população, além de ódio e agressividade em escala preocupante.
Temos assim
um prato cheio para o discurso neofascista, que vai compreender e
instrumentalizar esta frustração e insatisfação coletiva, traduzida em grande
parte em ressentimento generalizado diante das instituições e sentimento de não
reconhecimento pelas mesmas. Daí se explica o sucesso do discurso antissistema
de Jair Bolsonaro, semelhante ao de Trump e adaptado ao cenário brasileiro.
Vale ressaltar que este discurso possui uma tonalidade ultra meritocrática,
manipulando os sentimentos e o ideal de liberdade individual para justificar e
legitimar a campanha e posteriormente as ações do governo de Jair Bolsonaro.
Aqui, o
discurso abstrato da liberdade vai ser bem-sucedido ao se contrapor ao discurso
e a consequente falência do sistema progressista, que prometeu inclusão e
justiça vindos de cima. Com isso, a extrema direita se aproveita do fracasso
progressista com o discurso de que a justiça e a inclusão só podem vir debaixo,
da própria sociedade, através da defesa da liberdade individual de ação no
mercado, o que dependeria de um governo igualmente ultraliberal. A fala
emblemática de Jair Bolsonaro, no auge da pandemia, de que o “povo precisa
trabalhar”, é bastante esclarecedora neste sentido. Ao mesmo tempo, o governo
da extrema direita vai manter políticas sociais da esquerda como um recurso
populista eficaz.
Com isso,
retornando a Erich Fromm, o que presenciamos é uma mudança gradual no caráter
social brasileiro recente. Tal mudança, como percebia Fromm, é dinâmica, típica
da cultura capitalista que ao mesmo tempo molda e é moldada pelo caráter
social. Diferente da interpretação dominante e equivocada de que o brasileiro é
essencialmente autoritário, o que presenciamos durante os governos da esquerda
foi a construção gradual de um contexto de mais tolerância, aceitação e crença
nas propostas progressistas de justiça e inclusão, que começa a ser modificado
diante do fracasso de tais promessas. Com isso, o sistema político ao mesmo
tempo modifica e é modificado pelas formas de pensar, agir e sentir da
sociedade como um todo.
Agora, Jair
Bolsonaro perdeu a última eleição e Lula retorna ao poder, em uma situação
muito atípica e de difícil interpretação. Aqui, valem algumas considerações
parciais. Em um primeiro momento, Jair Bolsonaro tentou um golpe, no fatídico 8
de janeiro, o que pode ser entendido a partir de outra parte da obra de Erich
Fromm. Como foi bastante divulgado na mídia, os principais símbolos do poder em
Brasília foram depredados em um ato de vandalismo de dimensões inéditas em
nossa história.
Ali pudemos
ver os impulsos de agressividade e destrutividade individuais canalizados
contra um suposto opressor externo que, depois de amado, no auge da promessa
progressista, agora é odiado. A ambiguidade intrínseca, que expressa o teor
instrumental da manipulação realizada sobre boa parte dos indivíduos no ato,
reside no fato de se empunhar a bandeira do brasil e ao mesmo tempo destruir
seus símbolos de poder. Ou seja, se expressa aqui uma relação mal resolvida de
amor e ódio em relação a autoridade externa do sistema político.
Na prática,
sabemos que boa parte das pessoas envolvidas no ato agiram de maneira puramente
instrumental, sendo inclusive financiadas para tanto. Ou seja, uma milícia da
extrema direita. Por outro lado, muitos indivíduos ali presentes, o que também
pudemos ver em toda a ação da militância de extrema direita ao longo do governo
Bolsonaro, representando seu eleitorado, foram movidos por crenças e ideais que
se infiltraram ou maximizaram no caráter brasileiro recente nos últimos tempos.
Aqui, como
conclusão, podemos buscar um diálogo com a leitura de Erich Fromm sobre a fuga
da liberdade e suas dificuldades. Se estivesse vivo, Erich Fromm certamente não
ignoraria os imperativos morais impostos pelo capitalismo flexível, que promete
sucesso e felicidade, ao mesmo tempo em que oferece, no plano material,
instabilidade e precariedade, além de angústia, instabilidade e sofrimento, no
plano existencial.
Com isso,
precisamos de uma nova teoria da alienação e de novas buscas para sua
superação. Em boa medida, Erich Fromm psicologizou a teoria da alienação de
Karl Marx, a partir de sua influência de Sigmund Freud, indo além também deste,
ao mostrar que o indivíduo, em sua natureza humana dinâmica, pode ser vetor
tanto da reprodução quando da superação da alienação.
Para Erich
Fromm, a superação da alienação dependeria da construção altruísta de relações
sadias com o outro, diferentes daquelas predominantes na sociedade insana de
seu tempo, muito semelhante ao que vivemos hoje. Neste sentido, a busca por um
humanismo transformador e até mesmo por um socialismo humanista pode ser um
projeto sério a ser construído socialmente. Se Erich Fromm estiver correto, a
sociedade e o caráter social se transformam de maneira dinâmica, o que nos
permite margem para esperança e não para a simples entrega ao conformismo,
pessimismo ou melancolia. Entretanto, esta mudança depende também da ação do
sistema político-econômico, que precisa se reconstruir criativamente.
Em seu
terceiro mandato, Lula encontra novas dificuldades, mais obtusas e complexas do
que as anteriores. Em certo sentido, a presença de Jair Bolsonaro no poder
deixou claro quem era o inimigo a ser deposto. Ainda que Jair Bolsonaro tenha
sido, como indivíduo, apenas um instrumento de um contra-sistema conservador,
considerando que sua carreira agora parece fadada ao fracasso, ele explicitou,
assim como Donald Trump, os ideais mais obscuros da modernidade, negados pelo
sistema progressista.
Agora, a
ação conservadora migrou para mecanismos mais complexos, como aqueles
capitaneados pelo atual presidente da câmara dos deputados, Arthur Lira, que
tem conseguido impedir ações progressivas do governo, assassinando o mesmo
ainda no berço. Com isso, as perspectivas para os próximos anos não são muito
promissoras. Por outro lado, com a eleição de Lula o caráter social brasileiro
parece ter amenizado um pouco os seus ânimos e retomado algum fôlego. Com isso,
podemos talvez ainda ter alguma esperança.