sexta-feira, 31 de maio de 2024

O CAPITALISMO INDIGNO E AS "TRAGÉDIAS" AMBIENTAIS

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O CAPITALISMO INDIGNO E AS "TRAGÉDIAS" AMBIENTAIS


Por Fabrício Maciel, publicado orginalmente em A terra é redonda, em 19 de maio de 2024.


É impossível não se emocionar ao ver as tristes cenas vindas do Rio Grande do Sul. O que se apresenta como uma grande tragédia natural, em narrativas sensacionalistas como a do Fantástico, na Globo, na verdade é também um crime. A caracterização do fato como tal, entretanto, exige alguma reflexão, para além das imagens à primeira vista.

 

O que estamos presenciando, na verdade, é um dos frutos mais perversos e perigosos do novo sistema econômico e cultural global que eu tenho definido como “capitalismo indigno”. Com esta expressão, procuro tematizar o novo capitalismo que, desde os anos de 1970, se especializou em naturalizar o desvalor da vida humana como um todo, inclusive nos países ditos centrais. Hoje, na Europa, por exemplo, ninguém pode afirmar que está “seguro”. Segurança é um sentimento do passado.

 

Um dos maiores pensadores das últimas décadas, Ulrick Beck (2011), foi incisivo e visionário ao desenvolver, ainda nos anos de 1980, sua conhecida tese da sociedade de risco. Em outras palavras, o autor estava mostrando o futuro próximo e altamente perigoso da vida no planeta como um todo, produzido pelos erros do capitalismo indigno. Para o autor, no período atual, que ele definia como “segunda modernidade”, as sociedades contemporâneas produziriam muito mais “risco” do que desigualdade.

 

Mal interpretado por alguns críticos, o que o autor queria dizer não é que o capitalismo parou de produzir desigualdade, esta que sempre será um de seus efeitos centrais, mas sim que a questão do risco se coloca em primeiro plano. Atualmente, nenhuma região do planeta é totalmente segura, ainda que algumas sejam, por razões históricas, mais seguras do que outras.

 

Não é outra coisa o que vemos nas tristes imagens do Rio Grande do Sul. A revolta da natureza, fruto do aquecimento global e de questões puramente políticas do capitalismo indigno, pode causar rapidamente profundos efeitos na vida das pessoas. Ela pode colocar em poucas horas milhões de pessoas em situação de vulnerabilidade, e isso para além da condição de classe. É claro que, considerando as desigualdades territoriais, os mais pobres são os primeiros a ser afetados, por habitarem os territórios mais vulneráveis. Entretanto, nenhum território está totalmente seguro. Somos todos vulneráveis.

 

A pergunta que não quer calar é a seguinte: até quando o sistema político e as elites econômicas, que na prática ditam os caminhos da humanidade, não entenderão que a grande máquina do capitalismo indigno precisa ser freada? Chegaremos ao limite do risco para que isso aconteça? A resposta parece ser um pavoroso sim. Não parece haver força política e econômica consciente que queira enfrentar o problema mais grave da humanidade, que é exatamente a destruição de nossa casa.

 

Ninguém pode dizer, neste sentido, que não fomos avisados. Não falta conhecimento científico geológico, político, econômico, e de outras ciências sociais e da natureza, que não possa deixar claro o rumo equivocado da história moderna. Atualmente, a discussão sobre o antropoceno ou, como prefere Jason Moore (2022), do “capitaloceno”, deixa claro termos chegado a um momento no qual não dá mais para permitir que a máquina do capitalismo conduza a si mesma desenfreadamente. Algo bastante ruim há de acontecer.  Na verdade, já está acontecendo.

 

O sociólogo alemão Klaus Dörre (2022), por exemplo, é um dos que foram incisivos ao mostrar que estamos diante de uma dupla crise econômico-ecológica que exige, especialmente nos países centrais, detentores da maior parte do capital e do poder no mundo, alguma ação urgente. Não há nada concreto, entretanto, que nos garanta a possibilidade de este tipo de ação emergir do Atlântico Norte. Talvez seja no cone sul do mundo, onde a maioria das “tragédias” acontecem, que tenhamos a possibilidade de alguma reação efetiva. Na dimensão da solidariedade, pelo menos, temos visto várias ações em todo o Brasil, em nome de nossos irmãos do sul.

 

Não devemos, entretanto, romantizar a solidariedade, que é, sem dúvida, indispensável em tempos de tragédia e sofrimento humano. A ação do Estado é necessária e fundamental. É ele quem tem a responsabilidade e a legitimidade para agir, em defesa da sociedade, não deixando este ser tão indefeso responsável por si mesmo. Além disso, como ressaltou recentemente Hartmut Rosa (2024), em discussão sobre o contexto da pandemia, o Estado não é só responsável e legítimo, mas ele simplesmente pode agir, para além de teorias pessimistas que não acreditam em sua possibilidade de ação.

 

Outro sociólogo alemão, Stephan Lessenich (2018), também contribuiu de maneira importante para esta discussão ao mostrar que as sociedades do Atlântico Norte de alguma forma sempre conseguiram “externalizar” todos os riscos produzidos pelo capitalismo moderno para a sua periferia. Isso garantiu, em grande medida, um “modo de vida imperial” nas sociedades centrais, como muito bem definiram Ulrich Brand e Markus Wissen (2017).

 

Por fim, é preciso dizer com todas as letras que não estamos lidando aqui com “tragédias” simplesmente, ainda que uma dimensão considerável dos fenômenos como este no sul do Brasil possa ser caracterizada desta forma. Trata-se aqui também, em boa medida, do efeito de crimes políticos e econômicos. Neste ponto, a discussão precisa ser mais profunda do que a troca de acusações entre políticos e partidos, ainda que, em boa medida, algumas negligências e negacionismos sejam evidentes. O mais importante, entretanto, é compreender que o espírito político geral de nossa época, o que guia as ações políticas efetivas, pode ser definido como tendo dentre um de seus aspectos centrais um negacionismo ambiental em escala global. Não se trata mais de ver para crer. Já estamos vendo e ainda não acreditando. Nos encontramos agora como os músicos do Titanic, tocando harmonicamente uma bela canção enquanto o navio afunda.

 

Referências:

 

Beck, Ulrich. Sociedade de risco. Rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011.

Brand, Ulrich: Wissen, Markus. Imperiale Lebensweise. Zur Ausbeutung von Mench und Natur im globalen Kapitalismus. München: Oekom, 2017.

Dörre, Klaus. Teorema da expropriação capitalista. São Paulo: Boitempo, 2022.

Lessenich, Stephan. Neben uns die Sintflut. Wie wir auf Kosten anderer Leben. München: Piper Verlag, 2018.

Moore, Jason (Org.) Antropoceno ou capitaloceno? Natureza, história e a crise do capitalismo. São Paulo: Editora Elefante, 2022.

Rosa, Hartmut. Aceleração. A encruzilhada histórica no capitalismo tardio: uma análise sociológica da crise do coronavírus. In: Estanque, Elísio; Barbosa, Agnaldo de Souza; Maciel, Fabrício (Orgs.) Re-trabalhando as classes no diálogo Norte-Sul. Trabalho e desigualdades no capitalismo pós-covid. São Paulo: Editora da Unesp, 2024.

* Disponivel em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2024-05/rio-grande-do-sul-ja-registra-29-mortes-por-causa-das-chuvas, acesso em 31 de maio de 2024.

 


quinta-feira, 30 de maio de 2024

MBL, Brasil Paralelo e Fundação Lemann juntos na formação do trabalhador sem emprego

 

Foto: José Fernando Ogura/AEN

* Leonardo Sacramento


Por que a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo está usando vídeos do Brasil Paralelo e MBL?[i] Por que fundações de bancos e bilionários, como Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Ayrton Sena, se instalaram no Ministério da Educação? Qual é a relação do Brasil Paralelo e MBL com a Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Ayrton Sena? Qual é a relação entre revisionismo reacionário e neoliberalismo? Qual é a articulação de institutos da burguesia e “movimentos” da extrema-direita com as propostas de Educação Integral, Base Nacional Curricular Comum (BNCC) e Novo Ensino Médio?

A esquerda defende uma formação ampla e humanista vinculada ontologicamente ao trabalho, às artes, à filosofia e à compreensão da realidade, ou seja, uma educação cujo princípio esteja no trabalho enquanto elemento que nos faz humanos. A classe dominante, em contrapartida, sempre impôs uma educação para o emprego, ou melhor, à adaptação ao emprego. Formar, à luz do taylorismo, do fordismo e do toytismo, o trabalhador produtivo. Contudo, estamos sob o neoliberalismo. A nova proposta educacional do capital é formar para o “não emprego”, pois não existem mais. Dessa forma, o neoliberalismo transforma educação integral em educação de tempo integral procurando preencher o tempo do jovem sem emprego com uma matriz distinta da formação parcializada sob a acumulação fordista/taylorista e/ou toyotista. A parcialidade não é mais suficiente.


A conjuntura neoliberal é complexa. A expectativa da geração mais nova de ultrapassar a renda dos pais, reproduzindo ao menos os seus empregos, em conformidade com o sonho da classe média dos Estados de Bem-Estar Social nos países centrais no pós-guerra, não existe mais. Há duas gerações, no mínimo, a renda cai em relação aos pais. Se antes setores específicos da classe trabalhadora tinham acesso à casa própria, emprego razoavelmente estável e um salário com bom poder aquisitivo, hoje se amontoam gerações de jovens sem qualquer expectativa de reprodução positiva de classe, resultando na ascensão de ideologias fascistas da extrema-direita sobre jovens homens e brancos, como o neonazismo.


Explicações simplistas trabalhadas nas redes sociais e deep web, como as que responsabilizam a imigração nos países centrais e as políticas afirmativas no Brasil, são propagadas abertamente como um falso paradoxo à esfinge do bom liberal que se utiliza do fascismo para aprovar reformas ultraneoliberais. Os banqueiros também disputam os jovens e, não paradoxalmente, na prática se aliam a movimentos de extrema-direita vinculados à essência de qualquer grupo neonazista, como o MBL e o Brasil Paralelo. O negacionismo é um método político. Somente é possível negar a exploração capitalista sob a hegemonia da acumulação rentista por meio da negação da História (materialismo histórico), transformando o indivíduo em senhor de si, ou como dizia Hayek, no indivíduo soberano, inclusive (por que não?) em oposição à soberania do Estado-Nação.


Para as fundações de banqueiros e bilionários, faltariam aos “pobres” estudo e educação para gerarem renda, ressuscitando preceitos apologéticos da Teoria do Capital Humano, agora insuflados pela Teologia da Prosperidade. Essa nova proposta dialoga com a defesa de uma escola bifurcada, uma para a classe trabalhadora e outra para a classe média tradicional e a burguesia, ao mesmo tempo que se aproxima de problemas urgentes da classe trabalhadora, como o afastamento do filho da violência. Logo, é eficiente politicamente.


A educação em tempo integral, a BNCC e o Novo Ensino Médio se fundamentam em teorias e propostas utilitaristas, solipsistas e fragmentadas, com a apresentação de proposituras anticientíficas que mitificam a realidade, como o empreendedorismo. Para tanto, fundamentam-se em uma lógica oficineira, na qual tudo pode ser conhecimento escolar por meio de uma transposição mecânica da ideologia empresarial para a classe trabalhadora (“pequeno patrão”).


Os professores não devem mais ter formação, pois devem ser polivalentes, práticos e com formação “fluída”, derivando uma enorme fragmentação da realidade que aliena ainda mais o aluno por tornar a miséria produto de suas escolhas.  


Ciência não existe mais. É um ensino negacionista. É o que explica a utilização de vídeos do Brasil Paralelo e MBL, uma vez que agora os conhecimentos não científicos são o parâmetro pedagógico ideal para a adaptação da classe à exploração neoliberal (precarização, somatização de doenças e ausência de perspectiva). Ocorre que não são apenas os vídeos. O golpe já foi dado.


A implosão das bases cientificas do trabalho pedagógico é legalizada e legitimada na BNCC e no Novo Ensino Médio. Essas duas medidas relativizam o conhecimento científico, tornando-o em saberes e competências a serem apreendidos pelo jovem em um mundo que seria informatizado e tecnológico. Se o Brasil passa por um processo de desindustrialização e desnacionalização de sua economia pouco importa, pois a tecnologia pensada e trabalhada é a do senso comum, é a das plataformas precarizantes como Uber e Ifood e de aplicativos de celular. Em outras palavras, é a radicalização de uma abordagem fetichista da tecnologia submetida à perspectiva do consumidor e do trabalhador precarizado formados pela ideologia do pequeno patrão.


O negacionismo historiográfico, histórico e sociológico é fundamental para os segmentos sociais dominantes porque naturaliza a posição que possuem, transmitindo a ideia liberal-escolanovista de que conseguiram o status em uma disputa aberta e justa sobre um sistema meritocrático que formou uma sociedade alicerçada na “hierarquia das capacidades”.[ii] O autoritarismo da escolha da profissão, por exemplo, se daria apenas se o Estado interviesse, jamais como produto das relações econômicas, sociais e políticas.


Assim, assiste-se à glorificação pelo ideário liberal das figuras do herdeiro escravista oitocentista e do bilionário salvador enquanto o mesmo ideário justifica a oposição à legislação trabalhista, às cotas e ao Bolsa-Família, refutando qualquer intervenção do Estado (autoritarismo), inclusive para salvamento de vidas em eventos ambientais e climáticos, como ocorre no Rio Grande do Sul.  


É aqui que entram o MBL e o Brasil Paralelo na jogada. Negação do papel do escravismo, do embranquecimento, da segregação e da desigualdade para a concentração de capitais e da propriedade privada reforça a ideologia da classe dominante que não pode mais disfarçar as mazelas do neoliberalismo, ao mesmo tempo que precisa naturalizar ideologicamente os seus capitais ocultando as suas origens e seus “pecados”. No limite, há a defesa da negação da exploração do capital sobre o trabalho, cuja defesa das mazelas do capitalismo em sua fase rentista fetichiza o indivíduo “selecionado e forte” (darwinismo social), transformando-as em currículo positivo ao jovem com uma educação adaptativa para o não emprego. Chamemos de fetichismo da meritocracia.


Antes do negacionismo biológico e físico, que negam a vacina e o formato do planeta, o negacionismo histórico, historiográfico e sociológico foi, por anos, arma de luta da classe dominante usada por grupos que se popularizaram com forte financiamento do capital e auxílio dos algoritmos das plataformas privadas de bilionários estrangeiros. Legitimado, o negacionismo entrou no currículo articulado no Ministério da Educação por fundações de direito privado ligados a bilionários objetivando naturalizar a acumulação rentista.


A atuação desses grandes bancos não pode ser entendida como normalmente se apresenta, na qual estaria circunscrita em ganhar recursos de secretarias e ministério e isentá-los no imposto de renda. São aspectos absolutamente marginais do trabalho das fundações de bilionários. Muitas vezes, a atuação desses institutos não possui qualquer transferência de recursos públicos.[iii] Não faz sentido pensar com essa variável mecanicista, pois nenhum setor acumula mais do que bancos e rentistas por meio da isenção de lucros e dividendos e das exorbitantes taxas bancárias e de juros. O interesse está na formação do trabalhador neoliberal.


É que se percebe nas propostas do governo do Estado de São Paulo, possuidor da rede que mais avançou em tais políticas em virtude de sua aplicação ininterrupta por 30 anos. Reproduzimos no presente texto uma proposta da aula de “liderança” da rede estadual para alunos do ensino médio. As três primeiras fotos são da aula de “liderança”, tratando um conceito não científico, a resiliência. Aqui o aluno é preparado para suportar o não emprego e convencido a entender a realidade a partir de sua vida e “escolhas”.

 

Foto 1

 

Foto 2

 

Foto 3


A autora utilizada (foto 2), Diane L. Couti, é uma coaching (jornalista) que escreveu um artigo denominado How Resilience Works na Havard Business Review. Não há qualquer citação de dado científico no pequeno artigo, o qual é jornalístico e panfletário. As referências da jornalista são frases de CEOs de grandes empresas em que é destacado um pensamento do CEO Dean Becker: “Mais do que educação, mais do que experiência, mais do que formação, o nível de resiliência de uma pessoa determinará quem terá sucesso e quem fracassará. Isso é verdade no adoecimento de câncer, é verdade nas Olimpíadas e é verdade na sala de reuniões”. Qual é o parâmetro científico dessa besteira normalmente proferida por coachings?


A conclusão da aula (foto 3) exige que os alunos passem a aplicar o que aprenderam, a “resiliência”, encarando “a realidade” e buscando “sentido” para “improvisar”. A realidade, produto das relações de produção, da exploração e da desigualdade, é mistificada porque deve ser apreendida para ser encarada, ou melhor, aceita como ela é para ser suportada. Não existe mais a aprendizagem, a compreensão e a análise. A improvisação, por sua vez, é uma figura de linguagem malfeita para que o aluno “se vire”.


As três fotos seguintes mostram o que seria a aula de sociologia.

 

Foto 4


Foto 5


Foto 6


 

Concatenada com a aula de “liderança”, os alunos são convencidos na aula de sociologia a acreditar que “ansiedade” e “depressão” são frutos do “consumismo” porque viveriam em uma “sociedade de consumidores”. Aqui se tem literalmente a ideia apregoada por qualquer think tank neoliberal que não existiriam classes sociais, mas apenas indivíduos consumidores, na qual a sociedade não possuiria qualquer dimensão coletiva por estar submetida aos gostos dos consumidores e à precificação das mercadorias em relação de oferta e demanda cuja variável determinante seria o consumo. Logo, quem tem poder é o consumidor em detrimento da cidadania emanada da Constituição de 1988 (políticas sociais), do trabalhador e do movimento político.


Nega-se a existência de classes, racismo, especulação imobiliária, concentração de terra, acumulação de capitais, exploração etc. Mesmo conceitos mais amenos, como gentrificação, são expelidos do material didático. A aula de sociologia dialoga com a aula de “liderança” na medida que exige ao aluno praticar um novo comportamento adaptativo e adaptável à “realidade”, com “condutas éticas frente aos desafios da sociedade de consumidores”. Se há alguma luta, é como consumidor, escolhendo não consumir produtos de empresas “que prejudicam seus empregados, a sociedade ou o meio ambiente”. O pronome possessivo “seus” dando direito de propriedade à empresa não foi um erro. 


Se o aluno enquanto indivíduo conseguir superar o “consumismo” por meio do poder da mente (charlatanismo), ou seja, não querer consumir o que é convencido (sugestionado) por meio de propagandas de grandes complexos industriais-financeiros desde que nasceu, não terá “depressão” e “ansiedade”. A lógica implícita é a de uma aula de autoajuda, não ornando com os dados mais básicos: o grupo social que mais comete suicídio é o de trabalhadoras negras, aquelas que, comprovadamente, possuem menor renda, piores trabalhos, menor consumo e, por conseguinte, o que o material chama de “consumismo”. O material irresponsavelmente estabelece uma relação criminosa de causa e efeito entre consumo e depressão, na qual a depressão poderia ser evitada com um consumo “responsável” (sic!).


A entrada do Brasil Paralelo e do MBL é uma consequência coerente do negacionismo neoliberal. Na prática, tais movimentos de extrema-direita já estão na educação brasileira há alguns anos, especialmente no Ministério da Educação, representados oficialmente por Fundação Lemann, Instituto Itaú Social e Instituto Airton Sena. É uma proposta de educação para o não emprego amparada exclusivamente pelo negacionismo científico como método didático-pedagógico e matriz curricular nacional. É a expressão da vitória do neoliberalismo.

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*Leonardo Sacramento 
É professor de educação básica na rede pública de Ribeirão Preto e pedagogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP). Doutor em Educação pela Universidade Federal de São Carlos, atualmente pesquisa a relação entre movimentos conservadores e liberalismo. É autor dos livros Universidade Mercantil: um estudo sobre a relação entre universidade pública e capital privado (Appris, 2019), O Nascimento da nação: como o liberalismo produziu o protofascimo brasileiro (2023, Editora IFSP) e Discurso sobre o branco: notas sobre o racismo e o apocalipse do liberalismo (2023, Alameda). 


[iii]A Fundação Lemann defendeu o acordo de cooperação entre o MEC (Ministério da Educação) e a ONG MegaEdu, financiada pelo grupo ligado a Jorge Paulo Lemann. Em nota publicada na 2ª feira (25. set. 2023), a fundação diz que a parceria ‘não envolve nenhum tipo de transferência de recursos’”. Disponível em https://www.poder360.com.br/educacao/fundacao-lemann-defende-parceria-de-ong-com-o-governo/#:~:text=A%20Funda%C3%A7%C3%A3o%20Lemann%20defendeu%20o,tipo%20de%20transfer%C3%AAncia%20de%20recursos%E2%80%9D.


segunda-feira, 27 de maio de 2024

A economia foi, é e (sempre) será o âmago da disputa política: repercutindo o artigo “O que se faz com uma caneta Bic?”

 

Foto de publicação nas redes sociais de Fábio Porchat em 03/05/2019.
(Os rostos foram encobertos para preservar a privacidade das crianças).
 

*Jefferson Nascimento



“Cada cassetete é um chicote para um tronco
Alqueires, latifúndios brasileiros
Numa chuva de fumaça só vinagre mata a sede
Novas embalagens pra antigos interesses
É que o anzol da direita fez a esquerda virar peixe”

(Autor: Criolo. Música: Esquiva da Esgrima).

Esse texto repercute os dados e as análises do artigo “O que se faz com uma caneta BIC? A agenda legislativa e administrativa do governo Bolsonaro (2019-2022), publicado em 20 de maio deste ano, por Vinícius Lino, Bhreno Vieira e Dalson Figueiredo, no Blog Gestão, Política e Sociedade dos Cadernos de Gestão Pública e Cidadania, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Os autores evidenciam que, dentre as Proposições Legislativas, as temáticas mais recorrentes de autoria do governo Bolsonaro/Guedes foram: Macroeconomia (15%), Pandemia (14%), Administração Pública e Governo (12%), Regulação e Serviços (11%), Trabalho e Emprego (10%) e Tributação (8%). Excetuando as medidas relacionadas à pandemia de Covid-19, cujo caráter era emergencial, 56% das proposições legislativas estavam relacionadas à economia e administração pública. Quando se tratou de Pandemia, Trabalho e Emprego e Suporte aos setores econômicos, as Medidas Provisórias eram mais utilizadas que Projetos de Leis.

Os decretos presidenciais de Bolsonaro foram editados com mais frequência nos seguintes temas: Administração Pública e governo (25%), Burocracia (18%), Política e Comércio Exterior (12%), Defesa (9%), Transportes (9%) e Tributação (6%). Por esse instrumento, excetuando Defesa, 70% de todos os decretos estavam relacionados aos aspectos econômicos, incluindo política externa, e administração pública.

Os autores identificam que o Ministério da Economia e o “SuperMinistro” Paulo Guedes participaram em mais de 50% dos decretos e em 68% das proposições legislativas. Seja na Agenda Legislativa ou na Agenda Administrativa, é evidente a ênfase nos aspectos econômicos, na construção de condições de governabilidade e na adaptação da estrutura governamental alinhada aos elementos ideológicos neoliberais.

Com isso, o título de “Posto Ipiranga” e a atribuição de assumir um ministério com competências ampliadas, em relação ao anterior Ministério da Fazenda, não foram meras simbologias e retóricas. Ao contrário, o governo Bolsonaro/Guedes deve ser lembrado principalmente pela radicalização do projeto neoliberal. Os acenos de Levy, ainda no governo Dilma 2, a “Ponte para o Futuro” na gestão Temer, foram aprofundados pelo ultraliberalismo de Guedes/Bolsonaro. Portanto, a frente de combate ao bolsonarismo é a economia.

Medidas relacionadas à "Lei e crime" (6% das proposições legislativas e 2% dos decretos), mais que uma questão moral, estão relacionadas ao endurecimento penal, liberação das armas e outras que viabilizam as transformações econômicas ao ampliar meios para conter as reações populares e o caos social. Como Naomi Klein descreve em Doutrina do Choque, graves crises são usadas para acelerar e aprofundar o projeto neoliberal (tivemos a pandemia usada terrivelmente como "janela de oportunidades" para "passar a boiada") e a redução das funções sociais do Estado é acompanhada de ampliação da sua capacidade repressiva e punitiva.

As pautas de costumes foram majoritariamente utilizadas como cortina de fumaça, como distratores no debate público. Elas figuram de modo muito tímido na agenda legislativa: Cultura e Direitos Civis aparecem com 4% cada uma das "Proposições Legislativas" (não aparecem entre os temas de Decreto). Que as pessoas tenham se engajado nesses temas não há problema, a questão central é avaliar o quanto o intenso e dominante engajamento das lideranças políticas de esquerda nas pautas de costumes: (1) limitaram sua força para o embate em torno de um projeto econômico para o país; e/ou (2) favoreceram o governo Bolsonaro a avançar em seu projeto neo/ultraliberal na economia, enquanto se debatia com mais afinco outras questões. Não foi só a pandemia, as reiteradas vezes em que uma declaração, um tuíte ou uma live cheia de baboseiras ocuparam os discursos e ações políticas também ajudaram "passar a boiada".

Infelizmente, essa situação me lembrou de uma prática típica da minha infância e adolescência. E aqui, entrego a idade e corro o risco de causar estranhamento nos mais jovens. Nos anos 1990 e início dos anos 2000, os videogames possuíam controle com fio. Ou seja, para funcionar, o controle era conectado ao console. Na época, nem sempre por maldade, era comum que os mais velhos jogassem entre si e dessem controles desconectados para se livrar das insistências das crianças pequenas. Importante dizer que não tinha essa possibilidade de jogar online pelos videogames na minha infância e adolescência.

Além disso, não tínhamos consoles que salvavam as fases do jogo, bem depois surgiu alguns com memory card (muitas vezes, bem caro). Antes desse cartão, ou jogávamos todas as fases antes de desligar ou tínhamos poucos segundos para anotar um password extenso. Sequer tínhamos celulares que tiravam fotos e as máquinas fotográficas normalmente eram com um filme que demandava “revelação” em uma loja especializada. Ou seja, quase impossível anotar o password, daí controle desconectado para a criança menor para não perder as etapas vencidas. 

Havia o medo também de quando poderíamos jogar novamente. Jovens, acreditem: alguns de nossos pais, tios e avós, achavam que o uso de videogames estragavam a televisão. Pode até parecer ruim para quem naturalizou esse mundo tecnológico atual. Mas as lembranças são boas e admito que minha impressão possa ser a saudade da tenra idade - não da época. 

Para o mais velho que executava o plano, parecia um ganha-ganha: os maiores jogavam, as crianças menores não choravam e, ao acreditar jogar - e até vencer crianças maiores e adolescentes -, tinham um grande estímulo na autoestima. Não me orgulho, mas também fiz com meu primo sete anos mais jovem. E só quando já éramos adultos confessei a prática. Apesar de já ter passado muito tempo, ele obviamente não gostou nada. Voltando ao assunto inicial. 

O governo Bolsonaro parece ter entregue para oposição um controle desconectado do console. A oposição comemorava cada recuo, cada exposição em temas salientes no debate público, como as crianças da minha geração comemoravam o que acreditavam ser a “vitória” sobre mais velhos. Ao fim e ao cabo, não foram sequer vitórias de Pirro. Eram ilusões, a medida que o jogo realmente jogado era o da economia. "It's the economy, stupid!"

Era e será a economia o campo fundamental de disputa. Para tentar enfraquecer a extrema-direita é preciso reverter as amarras criadas por uma concepção econômica focada em socialização das perdas e concentração dos ganhos. Ou Haddad, os políticos e as organizações de esquerda acordam, ou continuaremos a jogar com um controle desligado do console. Tratei disso em dezembro de 2023, como um balanço do primeiro ano e o horizonte nebuloso para o Brasil.

Em tempo, com isso não quero dizer que as pautas de costumes e a defesa das identidades devem ser ignoradas. Apenas alerto para a ineficiência de desconectá-las da luta econômica (luta pela redistribuição). Por exemplo, o "novo" arcabouço fiscal na medida em que limita a capacidade estatal de investir em políticas sociais favorece a manutenção da desigualdade social e do status quo estruturados a partir das classes sociais e superestruturados pelas desigualdades de oportunidades por raça e gênero historicamente constituídas.

Ademais, não serei leviano de reduzir a importância das lutas pelo reconhecimento de qualquer que seja o grupo social discriminado. Ao contrário, recorro à teórica política Ellen Meiksins Wood (2011): além da classe social, as pessoas têm outras identidades sociais, com grande capacidade para dar forma às suas experiências. Por isso, qualquer programa de emancipação precisa ampliar o conhecimento sobre o significado das identidades, entendendo que que elas revelam e o que ocultam sobre a experiência pessoal. O que defendo está em linha com a seguinte reflexão:


[...] a indiferença estrutural do capitalismo pelas identidades sociais das pessoas que explora torna-o capaz de prescindir das desigualdades e opressões extraeconômicas [...] essa mesma indiferença pelas identidades extraeconômicas torna particularmente eficaz e flexível o seu uso como cobertura ideológica pelo capitalismo (Wood, 2011, p. 241).

Nancy Fraser (2009) converge com a constatação de Ellen Wood: o capitalismo no contexto da acumulação flexível introduz uma concepção de mundo tão fragmentária que consegue cooptar as lutas das diversas identidades sociais pelo reconhecimento. Desse modo, o descolamento de uma crítica estrutural pode fazer com que tais lutas contribuam, em momentos específicos, para a expansão capitalista, sem efetivamente garantir a emancipação das identidades exploradas. (O engajamento de alguns bancos em campanhas contra a discriminação e as peças publicitárias supostamente em defesa da diversidade para venda de produtos estão aí para quem quiser ver). 

Por exemplo, ao falar do feminismo, Nancy Fraser defende a reconexão da luta pelo reconhecimento "contra a sujeição personalizada à crítica ao sistema capitalista, o qual, ainda que prometa liberação, de fato substitui um modo dominação por outro” (Fraser, 2009, p. 30).

Portanto, sem enfrentar a questão estrutural econômica, não será possível jogar politicamente de modo efetivo contra uma extrema-direita que lança espantalhos para dissimular o debate público, enquanto entrega o que apoiadores e financiadores de poderosas frações burguesas encomendaram.

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 *Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política, professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro "Ellen Wood: o resgate da classe e a luta pela democracia" (Appris)

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Fraser, Nancy (2009). O Feminismo, o Capitalismo e a astúcia da História. Revista Mediações, Londrina, v. 14, n. 2, p. 11-33, jul./dez.

Wood, Ellen M. (2011). Democracia contra o capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo. 


terça-feira, 21 de maio de 2024

O campista, este swing voter! – ou, da insustentável natureza conservadora do eleitor goytacá

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O campista, este swing voter! – ou, da insustentável natureza conservadora do eleitor goytacá


George Gomes Coutinho**


Os caminhos pavimentados pela auto-interpretação não são nada triviais, seja para indivíduos ou coletividades. A maneira como nos vemos, quais valores atribuímos a nós mesmos, a forma como nos definimos, todo esse pacote simbólico pode aprisionar destinos. É a “segunda natureza”, aquela construída socialmente, dotada de profunda eficácia justamente por ocultar o que é em si um “constructo”, um artefato da cultura humana. Como contamos nossa própria história? O que descrevemos diante do que vemos no espelho?

Estas narrativas de auto-compreensão podem se basear, inclusive, em elementos factuais verdadeiros ou falsos. Podem ser uma descrição eficiente ou podem ser uma fantasia. Não por acaso gente como Freud apostou tão firmemente no caráter terapêutico da fala humana. Afinal, por vezes infligimos sofrimento desnecessário a nós mesmos pela maneira como nos narramos. Parte da cura envolve ressignificar, contar nossa própria história de outra maneira.

No âmbito da política estas narrativas de auto-compreensão são ainda menos negligenciáveis e inocentes. Ora, táticas de comunicação, seus conteúdos, alianças, tudo isso acaba sendo enfeixado por diagnósticos sobre quem somos politicamente, com quem nos assemelhamos e contra quem nos opomos. Nestes tempos me preocupa muitíssimo a definição, tal como se estivéssemos em um circuito fechado a-histórico, do eleitor campista ser em si um conservador. Este juízo, muito disseminado na opinião pública local, produz problemas. Vide o beija mão ao bolsonarismo protagonizado pelas duas oligarquias em disputa na cidade. Sejam os Garotinho, sejam os Bacellar, ambos os grupos escolheram cortejar o bolsonarismo, mesmo que nem Wladimir Garotinho e muito menos Rodrigo Bacellar se considerem propriamente representantes ortodoxos do estilo de fazer política dos Bolsonaro[1]. Sim, ambos poderiam ter uma relação mais altiva com o bolsonarismo. Talvez até mesmo poderíamos ter aqui um cordão sanitário que nos protegesse desta forma autoritária de fazer política que se reivindica representante do conservadorismo nacional. De todo modo, não foi essa a escolha. A opção se deu pela manutenção das portas abertas da cidade para o bolsonarismo, como se eventos do padrão de um 08 de janeiro fossem desimportantes. Arrisco dizer que, dentre os cálculos, talvez os dois protagonistas dos clãs antagônicos se apressaram em consolidar apoio político com os Bolsonaro talvez por compartilharem esse diagnóstico difuso e frágil de um conservadorismo que nos seja intrínseco.

Inclusive, pelo que estamos vendo no Rio Grande do Sul, o bolsonarismo pode ser um grande adversário para quem tenha por objetivo o policy making. Falamos aqui de um estilo de fazer política pilotado por cruzados ideológicos (Couto, 2021) onde a desinformação é usada como arma política. O bolsonarismo, quando aliado, pode redundar em um casamento tóxico dotado de um cotidiano de práticas abusivas. A regressão na cobertura vacinal, em muito deflagrada por desinformação de DNA bolsonarista, é um outro exemplo disso que estou dizendo.

De todo modo, afinal, de onde veio esse diagnóstico do suposto conservadorismo campista? Creio que por duas vias. A primeira, deriva de uma forma de interpretar a nossa cultura política. A outra é pelos resultados das últimas duas eleições gerais, onde Bolsonaro foi o vencedor local na disputa para presidência. Irei argumentar que, tanto num caso como no outro, a afirmação do campista ser intrinsecamente conservador é uma simplificação que desconsidera o comportamento político real localmente.

Começando da cultura política local. Não podemos desconsiderar que nossa cidade tem uma cultura política conservadora consolidada. Cidade de latifúndio, Tradição Família e Propriedade, dois bispos católicos, resistência ao término da escravidão no século XIX, etc..Há um caldo cultural conservador inegável, profundo e longevo. O problema é que há também nesta mesma cidade conflitos no campo, uma vida universitária plural, abolicionismo, diferentes movimentos identitários. Se há integralistas, há comunistas. Para o empresariado organizado há igualmente uma tradição sindical dos trabalhadores do campo e da cidade. Em suma, há dialética e uma cultura política complexa[2]. Negar isto é praticar silenciamento histórico.

Se pela via da cultura política a afirmação não se sustenta,  a coisa faz ainda menos sentido na história eleitoral local neste século. O comportamento eleitoral campista não é conservador e tampouco intrinsecamente progressista. O comportamento eleitoral local é de swing voters.

Me explico.

Na tradição eleitoral estadunidense encontramos o conceito de swing states ou, em uma tradução possível, “estados pendulares”. No mapa eleitoral dos EUA temos estados mais fieis ou menos fieis aos partidos dotados de capacidade competitiva no sistema artificialmente bipolar deles. Há estados mais democratas, há os outros que são republicanos. Porém, também temos os estados pendulares, os que não foram galvanizados por nenhum dos lados da disputa. Estes estados, por suas características e até mesmo pelo momento conjuntural que vivem, são os que recebem maior investimento das campanhas presidenciais[3]. Afinal, aí não há jogo ganho. É preciso disputar.


***


A partir dos estados pendulares a literatura anglo-saxã cunhou o termo swing voters que irei traduzir por eleitores pendulares. Em oposição aos core voters (eleitores convictos, galvanizados ideologicamente), os eleitores pendulares podem votar, no caso dos EUA, ora em democratas, ora em republicanos (Cox, 2024). Saindo do sistema artificialmente bipolar dos estadunidenses, creio que podemos aproveitar a explicação dos eleitores pendulares mesmo em um sistema multipartidário como o nosso. É a maneira que conseguimos tornar inteligível o voto “lulanaro” ou “bolsolula”, ou, em outros termos, o eleitor que já  demonstrou preferência tanto por Bolsonaro quanto por Lula em diferentes pleitos.

Voltando para nosso canavial, como diria o saudoso Antônio Roberto de Góis Cavalcanti, o Kapi, olhando concretamente as eleições em Campos e seus resultados, vemos comportamento pendular no eleitorado local. Se nos ativermos a todas as eleições majoritárias do ano 2000 até 2022, o que totalizou 13 eventos eleitorais[4] variando entre eleições locais e gerais, o eleitor local deu vitória aos dois lados do espectro político. Legendas diversas tiveram a preferência do eleitor: PSDB, MDB, PSL, PL, PT, PDT, seja em disputas locais ou na concorrência para cargos nacionais ou estaduais. Ainda, não obstante a representatividade concreta de diferentes forças partidárias, o eleitor local se demonstrou pautado por seus próprios interesses e por seus filtros locais. “Meu voto, minhas regras”, digamos assim. Vejamos.

Em  2002, para presidência, no 1º turno o eleitor expressou sua preferência por Garotinho como primeiro colocado neste turno da disputa, com 111 mil votos locais. Lula, em segundo, obteve 61 mil votos e Serra, pelo PSDB, veio em seguida com 18 mil. No segundo turno o campista optou por Lula, aí alinhado com o voto nacional, expressando a preferência de 162 mil eleitores, contra 52 mil votos depositados na chapa tucana.

Importante observar que nacionalmente Garotinho obteve pouco mais de 15 milhões de votos na disputa presidencial deste ano.

De todo modo, Lula ganharia novamente em Campos as eleições presidenciais seguintes em dois turnos em 2006.

Observando as eleições de 2010, no segundo turno, o eleitor local contrariou o resultado nacional. Se neste ano Dilma foi eleita contando com 56,05% dos votos válidos nacionalmente, seguida por José Serra com 43,95%, em Campos o resultado foi o inverso. Localmente a vitória foi de José Serra, com 52,85% dos votos válidos (124.141 votos) seguido por Dilma com o percentual de 47,15% (110.731 votos). Aqui Campos optou por um candidato mais à direita de Dilma em termos programáticos.

Seguindo as convicções locais, no pleito seguinte em 2014, se dependesse do eleitor campista, o segundo turno para presidente teria Dilma, pelo PT, concorrendo com Marina Silva naquele momento no PSB. Duas mulheres, ambas mais pela esquerda que Aécio Neves, PSDB. Na cidade, no primeiro turno, Dilma conquistou 87703 votos, Marina com 76786 votos e Aécio 66753, respectivamente 35,97%, 31,49% e 27,38% dos votos válidos. No segundo turno deste mesmo pleito, a vencedora em Campos foi Dilma com 54,67% dos votos válidos contra os 45,33% angariados localmente por Aécio (aqui, no segundo turno, prevaleceu a preferência contabilizada também nacionalmente que colocou mais uma disputa entre PT e PSDB no segundo turno).

Com todas estas evidências, vale mencionar as históricas eleições locais de 1988 (o que foge do recorte temporal original que fiz) e a de 2016. Em ambas houve a quebra da permanência no poder de grupos que, até então, se mantinham como herdeiros diretos do capital político de mandatários que os antecederam. Em 1988, eleição em único turno, Garotinho, candidato oposicionista, obteve 36,22% dos votos válidos, derrotando Rockfeller de Lima, de perfil situacionista, que veio pelo antigo PFL, com 29,57% dos votos computados[5]. Já em 2016, Rafael Diniz, filho do sociólogo Sergio Diniz, via PPS, obteve os convincentes 151462 votos, perfazendo 55,19% dos votos válidos, contra o candidato da “máquina”, Dr. Chicão, ex-vice de Rosinha Garotinho que amealhou 81989 votos, ou 29,88% dos votos válidos. Também em 2016 tivemos um único turno.

Com tudo que apontei, me parece insustentável afirmarmos que o eleitor local seja representante de um posicionamento ideológico fechado e muito menos conservador. O eleitor local se demonstrou capaz, faticamente, de votar em ambos os lados do espectro político. Para além disso, por vezes é capaz de contrariar tendências nacionais, obedecendo a filtros de interesses e de cultura política que lhes são próprios. O campista é um eleitor pendular, o que torna a disputa por sua preferência algo mais complexo do que podem supor clichês e modismos ideológicos da conjuntura. Portanto, progressistas locais, uni-vos! O canavial pode responder, basta ser convencido disso!

 

Referências

COUTO, Claudio Gonçalves. Do governo-movimento ao pacto militar-fisiológico. In: AVRITIZER, Leonardo; KERCHE, Fábio & MARONA, Marjorie. Governo Bolsonaro: retrocesso democrático e degradação política. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p.35-49.

COX, Gary W. Swing voters, core voter and distributive politics. In: https://leitner.yale.edu/sites/default/files/files/resources/docs/cox.pdf, acesso em 30 de abril de 2024. Paper, 23 pp.

 * Igreja Boa Morte, centro de Campos, março de 2020. Arquivo pessoal.

** Professor associado da área de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais na UFF-Campos - E-mail para contato: georgec@id.uff.br

*** Disponível em: https://x.com/swingvotedc, acesso em 21 de maio de 2024.



[1] Em perfil na Folha de São Paulo, Rodrigo Bacellar foi categórico: “Não sou bolsonarista raiz. Não gosto dos exageros. Tenho minhas críticas, mas também tenho minhas convergências”. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2024/04/presidente-da-alerj-tem-ascensao-meteorica-faz-sombra-a-castro-e-antecipa-disputa-com-paes.shtml, acesso em 20 de maio de 2024. A matéria foi publicada em 27 de abril do ano corrente. Todavia, falando agora sobre o outro clã , Clarissa Garotinho propriamente, esta parece ser muito mais afinada com o playbook do bolsonarismo, vide até mesmo a participação da ex-deputada na infame campanha pelo voto impresso. Já seu irmão prefeito, Wladimir, optou democraticamente em deixar seu secretariado livre para apoiar quem achasse mais razoável no segundo turno presidencial de 2022.

[2] A historiadora Rafaela Machado já se pronunciou indignada a respeito. Recomendo o vídeo feito por ela disponível em seu perfil do instagram: https://www.instagram.com/p/C66KwADu45B/, acesso em 21 de maio de 2024. O tema é a Campos do século XIX e a desinformação propagada por muita gente boa de que a cidade foi a última do Brasil a abolir a escravidão. No vídeo Rafaela apresenta com dados e argumentos um cenário muito mais dinâmico e conflitivo. Como disse, há escravistas... mas, há abolicionistas! E não, Campos não foi a última cidade a abolir a escravidão. Isso é desinformação.

 

[3] Neste ano  de eleições presidenciais por lá os estados pendulares são Arizona, Geórgia, Michigan, Nevada, Pennsylvania e Wisconsin. Mais detalhes em: https://www.opeu.org.br/2024/05/18/swing-states-e-a-eleicao-presidencial-2024/, acesso em 21 de maio de 2025.

[4] No Brasil temos eleições regulares de dois em dois anos. Portanto, no período teríamos 12 eventos eleitorais. Mas, em Campos, no ano de 2006, tivemos duas eleições. Em março, para prefeitura, uma eleição suplementar dada a cassação da chapa vencedora no pleito de 2004. E em outubro de 2006 também tivemos eleições regulares para presidência, governo do estado, etc..

[5] Garotinho obteve 62953 votos e Rockfeller 51408.


Se os senadores não agirem com cuidado, a CPI da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas poderá favorecer os bicheiros do Rio

 

Fonte: alphaspirit/Getty Images/Câmara dos Deputados

Jefferson Nascimento*

Contexto Político

Em maio de 2022, o Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ) divulgou os resultados da Operação Calígula. Dentre eles, o MPRJ concluiu que o contraventor/”bicheiro” Rogério de Andrade possuía o monopólio das apostas esportivas desde 2017 e pagava propinas para policiais protegerem o esquema[i]. A atividade era realizada por meio de sites e explorada antes de sua legalização. Veja matéria da época:

[...] os bicheiros cariocas aceitam apostas em partidas do Brasileiro, da bilionária Liga dos Campeões e da Libertadores. [...] Nesta semana, os contraventores bancavam palpites em partidas da Copa do Brasil e de torneios na Alemanha, Rússia, Argentina, Israel e Equador, entre outros. [...] Além de partidas de futebol, as bancas também aceitam palpites em jogos de vôlei e lutas, como o UFC [...] O modelo adotado pelos bicheiros é semelhante ao de países europeus, que usam páginas na internet para receber as apostas [...] É possível dar palpites no vencedor do confronto ou apenas no time que ganha o primeiro tempo. Há também bolão com cinco partidas em cada rodada do Brasileiro. O vencedor pode receber prêmio de até R$ 15 mil nessa modalidade na rodada do próximo final de semana.[ii]

 

As apostas online foram legalizadas pela Lei n° 13.756/2018, que tratava do Fundo Nacional de Segurança Pública e incluiu a liberação das chamadas apostas de quota fixa sem a regulamentação. Com isso, os brasileiros puderam apostar legalmente nas chamadas bets que, desregulamentadas, eram sediadas no exterior, especialmente em paraísos fiscais (incluindo empresas de capital brasileiro). A referida lei fixou o prazo de dois anos (prorrogáveis por mais dois) para o Ministério da Fazenda/Economia regulamentar a atividade. Esse prazo final (com a prorrogação prevista) venceu em dezembro de 2022 - último ano do governo Bolsonaro.

Coube ao governo Lula enviar a Medida Provisória (MP) n°1.182/2023 para iniciar a regulamentação do setor. A partir daí, uma série de emendas sobre a MP fez caminhar o PL 3.623/2023, dando origem à Lei n° 14.790/2023. Nessa tramitação, cabe destacar a posição de alguns parlamentares bolsonaristas da Bancada Evangélica:

  • O senador Eduardo Girão (NOVO-CE) dizia que regulamentar “legitima um sistema que, além de sujeito a fraudes, vicia o cidadão e distorce a natureza do esporte”. Na ocasião, ele falou também dos riscos de manipulação do esporte.[iii]
  • O deputado Eli Borges (PL-TO) disse: "Estamos dando mais um avanço para envolver jovens e cidadãos brasileiros em uma jogatina sem precedentes"[iv].

Apesar da retórica, Girão e Borges ocupavam os respectivos cargos desde 2019 e compuseram a base aliada de Jair Bolsonaro, mas não atuaram para o governo anterior cumprir a determinação legal de regulamentar as apostas.  

A Operação Penalidade Máxima, liderada pelo Ministério Público de Goiás, descobriu que as manipulações realizadas em 2022 foram favorecidas justamente pela falta de regulamentação. Logo, é possível inferir que a inação do governo Bolsonaro e o silêncio do Congresso Nacional colaboraram com o ambiente propício para as manipulações denunciadas pela Operação Penalidade Máxima. 

Ainda assim, parlamentares bolsonaristas, como Girão e Borges, se engajaram quando o atual governo pautou a regulamentação que, legalmente, deveria ter sido feita pela dupla Guedes/Bolsonaro.

 

O Rio de Janeiro, a contravenção e as bets

Em 2023, no anúncio da MP pelo Governo Federal, começaram movimentos que chamam a atenção. A Loteria do Estado do Rio de Janeiro (Loterj) passou a tensionar: lançou um edital permitindo que empresas credenciadas no estado aceite clientes de todo o Brasil, contrariando a regulamentação federal proposta. A consequência foi a oposição da Caixa Econômica Federal, que administra as atividades lotéricas em âmbito nacional, resultando em contestações na justiça. 

Para ser atrativa, a Loterj ofereceu licenças mais acessíveis e o governo estadual praticava impostos mais baixos aos operadores das apostas online (5% do GGR - Gross Gaming Revenue, enquanto a MP propunha 18% e a lei fixou 12%). A posição da Loterj seguiu as normatizações do governo Cláudio Castro e foi favorecida pela atuação Procon-RJ, que notificou as empresas com base no Decreto Estadual 48.806/23 para assegurar a regularização das bets no estado do Rio de Janeiro.

Os contraventores não ficaram para trás, era preciso se adaptar aos novos tempos e manter o controle sobre a atividade. Paralelamente a estratégias empresariais para organizar a atividade, velhas e temidas práticas foram mobilizadas. Por exemplos, ameaçaram o investidor do site Apostou.com, segundo o MPRJ. O site já estava credenciado na Loterj, mas o investidor paranaense desistiu do negócio após a “intervenção da contravenção”[v]

Em fevereiro deste ano, segundo o MPRJ, o recado foi brutal e bem mais claro a qualquer investidor interessado no ramo: o advogado Rodrigo Crespo Marinho foi executado na tarde de uma segunda-feira no centro do Rio de Janeiro, em frente ao seu escritório e próximo à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e à Defensoria Pública-RJ. Marinho era um estudioso das apostas online, engajado pela legalização e, segunda consta, “se preparava para deixar o escritório de advocacia em que trabalhava para passar a atuar legalmente no mercado de sites de apostas online”.[vi]

Três participantes foram presos: o policial militar Leandro Machado da Silva providenciou o carro; Cezar Daniel Mondego de Souza, detentor de cargo comissionado na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ), monitorava Marinho; e Eduardo Sobreira Moraes dirigia o carro e levava Mondego para monitorar a vítima. Como parte da investigação, Adilson Oliveira Coutinho Filho, o contraventor Adilsinho, está sendo investigado junto a outras oito pessoas. Segundo a denúncia do MPRJ:

      Há informações, ainda passíveis de serem confirmadas, que os criminosos/mafiosos exploradores de jogos de azar (chamados no Rio de Janeiro somente de 'contraventores') estariam se aprofundando no conhecimento para exploração lucrativa de jogos de aposta online em processo de legalização. Trata-se de atual 'febre' no Brasil, fácil inclusive de ser utilizado para lavagem de dinheiro de atividades criminosas.[vii]

O investigado Adilsinho, patrono da Escola de Samba Salgueiro, compõe a Nova Cúpula do Jogo do Bicho do Rio de Janeiro. Ele é aliado de Rogério de Andrade, patrono da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel. Segundo o MPRJ e Polícia Civil, Adilsinho comandou a execução de bicheiros ligados a Bernardo Bello – desafeto de Rogério de Andrade e herdeiro de Waldemir Paes Garcia, o Maninho. Curiosamente, Maninho foi mandachuva na Salgueiro, hoje nas mãos de Adilsinho. Reiterando as informações iniciais: Rogério de Andrade, aliado de Adilsinho, domina o ramo de apostas online no Rio de Janeiro desde 2017 - ou dominou até pelo menos 2022, segundo o MPRJ[viii].

 

Os bicheiros, a política e a CPI: coincidências e correlações

Os contraventores também mobilizam estratégias para se aproximar de autoridades políticas. Rogério de Andrade recentemente autorizou a cessão da quadra da Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel para o lançamento de candidatos bolsonaristas às eleições do Rio de Janeiro. O evento realizado em 16 de março contou com a presença de Jair e Flávio Bolsonaro, do governador Cláudio Castro e do senador Carlos Portinho e apresentou Alexandre Ramagem como pré-candidato à prefeitura carioca.

Um mês depois, Andrade obteve por despacho sigiloso o direito de retirar a tornozeleira eletrônica por decisão monocrática de Kassio Nunes Marques, nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo então presidente Jair Bolsonaro. O mandado de prisão resultou da mesma Operação Calígula (2022) que, dentre outros crimes, identificou Andrade como detentor do monopólio das apostas esportivas online. Jorge Mussi[ix], ministro do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), havia determinado a soltura de Andrade em dezembro de 2022 mediante o uso de tornozeleira eletrônica, o recolhimento noturno e o comparecimento periódico em juízo.

Além da retirada da tornozeleira, Nunes Marques já havia negado pedido de prisão contra Andrade em 2022 e esteve nos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro em fevereiro deste ano.[x] Marques alega que esteve em camarotes institucionais do governo estadual do Rio de Janeiro e da prefeitura carioca sem, portanto, relação com alguma escola específica ou seus dirigentes.

Em todo caso, fica o registro da coincidência: nomeado por Bolsonaro, negou prisão ao patrono da Mocidade em 2022, esteve esse ano pela primeira vez no desfila das escolas de samba do Rio e, poucos meses depois, ordenou a retirada da tornozeleira eletrônica do patrono de uma das escolas – a mesma que cedeu a quadra para o lançamento da campanha de bolsonaristas para a eleição carioca com presença de Jair e Flávio Bolsonaro.

Outro participante do lançamento de campanha bolsonarista na Mocidade Independente, de Rogério de Andrade, foi o senador Carlos Portinho (PL-RJ). Portinho, apesar de suplente na comissão, foi um dos protagonistas na participação de John Textor na CPI da Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas. A CPI foi instalada em 10 de abril e é liderada pelo presidente Jorge Kajuru (PSB-GO), o vice-presidente Eduardo Girão (NOVO-CE) e o relator Romário Faria (PL-RJ).

Essa CPI já era cogitada no final do ano passado e ganhou impulso com a publicidade das acusações de Textor em fevereiro e março, quando o salgueirense Romário liderou o requerimento e a coleta de assinaturas em um ambiente de grande atenção da opinião pública.

Não é novidade a aproximação entre bolsonaristas e setores que realizam seus ganhos de forma pouco usual e/ou questionável. 

Não ganharam voz por meio dos bolsonaristas apenas os representantes de frações da burguesia emergente do Brasil, fora dos grupos tradicionais de seus respectivos setores, como Luciano Hang, novos grupos do mercado financeiro em oposição aos bancos tradicionais, e setores emergentes do agronegócio. Também viram Bolsonaro e os bolsonaristas como representantes: grileiros, posseiros, mineradores ilegais, latifundiários que desmatam áreas de reserva, milicianos cariocas (inclusive mandantes de homicídios, como os irmãos Brasão), defensores da legalização de cassinos e outros jogos de azar e diversos outros tipos de pessoas que enriquecem às margens das leis.

Logo, o que tratamos aqui pode ser coincidência e/ou correlação; mas, de forma alguma, poderia ser tratado como exceção.

 

Um alerta para os membros da CPI

É fundamental enfatizar que ninguém sério nega que exista manipulação. Porém, há uma série de iniciativas para enfrentar a questão. Uma delas é a contratação da empresa Sportradar para fazer o monitoramento de integridade do futebol brasileiro pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Essa empresa é a principal no segmento, monitorando jogos da UEFA, FIFA, Conmebol, NBA, MLB e diversos outros esportes com um método validado pela Universidade de Liverpool.

Em 2022, a CBF instituiu a Unidade de Integridade chefiada por Eduardo Gussem (ex-Procurador-Geral de Justiça do Rio de Janeiro) para um tratamento especializado acerca da manipulação de resultados. Além disso, desde 2023, há uma integração entre a CBF, a Sportsradar e a Polícia Federal (PF) para que a entidade esportiva encaminhe à PF a lista de partidas suspeitas, segundo o relatório da empresa de monitoramento, para subsidiar as investigações sobre possíveis manipulações. 

Essa integração é favorecida pelo Memorando de Entendimento firmado em 2021 pela Sportradar e a Polícia Federal. Em nota à imprensa, a Coordenação-Geral de Comunicação Social da PF destacou a expertise da Sportradar e sua colaboração com autoridades em diversos países:

Diante dessa realidade, o acordo celebrado mostra-se de suma importância, uma vez que a Sportradar é reconhecida por cooperar ativamente, na atualidade, com mais de 20 agências de aplicação da lei em todo mundo, fornecendo-lhes serviços de inteligência algorítmica e relatórios de análise preditiva de fundamental importância para identificação e desarticulação de organizações criminosas envolvidas com apostas e corrupção em eventos esportivos.

Esses movimentos contribuíram para dois avanços: (1) a quantidade de partidas suspeitas caiu 30% em 2023 em comparação à 2022 (ano em que a Operação Penalidade Máxima identificou partidas, jogadores e apostadores) - o melhor resultado desde 2020; e (2) diferente de 2022, em 2023 nenhuma das partidas da Série A do Campeonato Brasileiro foi considerada suspeita.  

Como a CPI nasceu para tratar de Manipulação de Jogos e Apostas Esportivas, temos que ficar atentos ao tipo de regulamentação, indiciamentos e instauração de inquéritos que constarão no relatório final. Especialmente, ao tipo de tratamento que será dado às apostas de quota fixa.

Se a CPI, defender a prerrogativa das Loterias Estaduais, não só o interesse do governo estadual/Loterj será favorecido, como a capacidade de pressão e influência dos contraventores interessados nas apostas online aumentará. Nesse caso, não é verdadeiro o argumento de descentralizar para aumentar a capacidade de fiscalização pelas Polícias Civis e Ministérios Públicos estaduais, pois só estão funcionando as loterias estaduais do Rio de Janeiro e do Paraná, enquanto a da Paraíba está em processo para iniciar em breve as atividades. As demais unidades federativas ainda precisam organizar sua atuação.

No caso do Rio de Janeiro, não é ilação afirmar a vulnerabilidade do governo estadual frente aos interesses de contraventores e milicianos. Os novos avanços do Caso Marielle, após a federalização das investigações, estão aí para quem quiser ler, assistir e ouvir. A partir dessa realidade, as pressões advindas poderiam impactar nos critérios exigidos para credenciamento e colocaria parte desses empresários interessados na mira dos contraventores.

É preciso ter em mente que o risco de manipulação aumenta em um ambiente desregulamentado e de proximidade física entre grupos de apostadores e/ou bets inidôneas em relação aos jogadores, árbitros e outros atores do futebol.

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 * Jefferson Nascimento é Doutor em Ciência Política, professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro "Ellen Wood: o resgate da classe e a luta pela democracia" (Appris)



[vii] Ver link da nota anterior

[viii] Ver link da primeira nota

[ix] Mussi teve aposentadoria concedida em dezembro de 2022 pelo então presidente Bolsonaro. Antes, o ministro negou recursos da Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o senador Flávio Bolsonaro no caso das “rachadinhas”: manteve a anulação da quebra de sigilo e negou ida o inquérito para o STF. Mussi também negou investigações contra Luciano Hang por doação ilegal para a campanha de Bolsonaro em 2018 e a acusação de abuso do poder econômico por disparo em massa da campanha de Bolsonaro então no Partido Social Liberal (PSL).