Sobre as
manifestações de 13 e 15 de março de 2015 e suas demandas: uma outra
perspectiva
Como apontaria
Hegel em sua Filosofia do Direito, a coruja de Minerva só levanta voo ao
anoitecer. Esta imagem, a um só tempo poética e dotada de forte caráter
metodológico, funciona como um alerta à ansiedade de elaborar análises no calor
do momento. Nas ciências sociais, e também com a historiografia, aprendi a
tentar conter o ímpeto da análise apressada onde serve-se prato cru, frio e por
vezes indigesto da informação replicada de forma impulsiva. Inclusive, é fora
deste afã ansioso que as análises de conjuntura, sempre um exercício arriscado,
podem trazer insights produtivos.
Também, por
outro lado, uma análise de Day after
certamente não conseguirá esgotar as consequências históricas das manifestações
ocorridas no Brasil de sexta-feira para cá. Somente os próximos meses, quem
sabe até anos, irão digerir em sua plenitude as demonstrações das ações
coletivas que assisti em um mix de perplexidade, algo de preocupação e pitadas
de admiração. Contudo, um breve esforço
de análise pode ser um exercício interessante de tentativa de organização ante
as partículas que ainda estão em suspensão na arena pública nacional neste
momento.
Primeiramente,
uma constatação que tem sido partilhada por analistas como Bresser-Pereira
(aqui), Marcos Nobre (aqui) e Vladimir Safatle[i]
(aqui). O Brasil não é o mesmo de poucas décadas atrás. As mudanças de impacto
macro e microeconômico ensejaram modificações profundas na estrutura da
sociedade brasileira. Um mercado de consumo pujante, algo que teve suas bases
construídas ainda no estabelecimento do plano real e aprofundada nas gestões
Lula e Dilma, a entrada de milhões de pessoas neste mesmo mercado, ação
fomentada pelo Partido dos Trabalhadores com medidas de enfrentamento
estrutural da pobreza, a preferência relativamente estável pela democracia
representativa liberal como método de seleção de governantes após diversos
momentos históricos de interrupção violenta da trajetória institucional em
curso... Em suma, nestas poucas décadas após a ditadura civil-militar, seja
porque o mundo não é o mesmo (variáveis exógenas), seja pelas decisões dotadas
de caráter vinculante no âmbito da política nacional (variáveis endógenas), não
é exagero falarmos em “um fim de uma era”. Não por acaso os termos “social-desenvolvimentismo”
ou “social-rentismo” tem sido aplicados como substitutos do modelo anterior de
nação chamado “nacional-desenvolvimentismo”.
Porém, este novo
modelo de autocompreensão da sociedade e que, portanto, deriva de um conjunto
de opções valorativas e normativas que direciona os processos de tomada de
decisão, encontra-se em uma situação delicada. As estratégias de inclusão de
grandes parcelas da população no mercado de consumo vivem hoje um dilema
periclitante, dado que ironicamente padecem de seu próprio sucesso. A entrada
desses agrupamentos sociais no âmbito do consumo se deu majoritariamente em
decorrência de conjunturas específicas, dentre elas: a) a alta demanda de
commodities atrelada a preços comparativamente vantajosos no mercado
internacional; b) o aquecimento de alta voltagem do mercado de consumo interno,
algo que auxiliou de forma inegável a manutenção do crescimento interno da
economia. Estes dois elementos combinados tornaram sustentável a legitimidade
do PT, especialmente o governo Lula, perante o cenário político nacional. Mesmo
sendo acompanhado de análises francamente negativas de boa parte da grande
mídia, a economia e a “novidade” apresentada pela democratização do mercado
tornou a gestão Lula blindável. Evidentemente, o mesmo cenário não está sendo
experimentado pela gestão Dilma da segunda metade de seu primeiro mandato para
cá.
Ora, é lugar
comum na análise política o reconhecimento de que conjunturas econômicas
adversas produzem impacto substantivo na força de todo e qualquer projeto de
legitimação. Penso que é sob este olhar mais “terra-terra” que deve ser
compreendida a razão pelo qual tem ecoado uma profunda insatisfação neste
início de segundo mandato de Dilma Rousseff. Até porque, o cenário de uma mídia
“oposicionista” é presente desde o início do primeiro governo Lula.
Prosseguindo, em
virtude disto, discordo profundamente da perspectiva que deposita na grande
mídia a orquestração das ações coletivas de 15 de março. Se esta seletivamente
pretende “surfar” este movimento de massas e, evidentemente, fornece boa parte
dos elementos discursivos que estão presentes nas passeatas e cartazes, a
aposta de que esta teria sido a grande responsável me parece insustentável.
Houve a adesão e tentativa de direcionamento sim. Contudo, esta análise
despreza de forma surreal a constelação de interesses que estavam representados
nas manifestações....Os interesses dos grandes grupos de comunicação de massa
são só uma fração, importante decerto, mas não conseguem esgotar o fenômeno. Inclusive a porosidade dos discursos que
penetram em parte da sociedade civil insatisfeita se realiza, em minha leitura,
por conta da ausência de aprendizados democráticos e são fruto do
empobrecimento da imaginação política que é derivada diretamente da asfixia da
diversidade comunicativa operada por 21 anos de repressão política implacável
na ditadura civil-militar.
Ainda, pensando
no que mobiliza os agentes, arrisco dizer que os interesses também devem ser
mobilizados nos esforços interpretativos das manifestações de 13 de março...
Mas, não menos no caso de 15 de março...
Retomando o
ponto onde abordo as profundas modificações ocorridas no Brasil nos últimos
anos, temos um novo cenário cognitivo também entre os cidadãos: diversos
estratos sociais obtiveram ganhos significativos em termos concretos e destes
ganhos, produto de um movimento de mobilidade social extraordinária, não há quem
deseje abrir mão. Sobretudo ao que chamam de “nova classe média”, os mais
realistas alcunham de “nova classe trabalhadora”, que adentrou ao consumo de
bens, mas questiona duramente a qualidade dos serviços ofertados. Em suma,
estas modificações são oriundas do sucesso de medidas inclusivas e ampliação de
direitos. Contudo, neste horizonte, seria natural que a velocidade lenta dos
investimentos em infra, logística e etc, produziriam no mínimo mau humor. Em
anexo, o cenário de desaceleração econômica atrelada ao cadáver insepulto
inflacionário, imaginário ou não, torna a questão ainda mais explosiva. Afinal,
dentre as questões inegociáveis deste “novo Brasil”, alta inflacionária
simplesmente não é uma opção.
Concluindo,
acredito que debates como “a reforma política”, a genérica bandeira do “enfrentamento
da corrupção” e a “democratização da mídia” são tímidos. Justamente por
desconsiderar questões muito mais concretas e, assim penso, urgentes na
continuidade do enfrentamento da desigualdade social ainda estrutural no
Brasil. Para que o “social-rentismo” torne-se verdadeiramente um “social-desenvolvimentismo”
uma revolução tributária urge e é a grande ausente nas últimas manifestações.
As medidas de ajuste fiscal, repetidas como um mantra, são insuficientes para o
financiamento de um projeto de inclusão estrutural onde o Estado é o principal
agente econômico. Sem o enfrentamento lúcido do gargalo tributário brasileiro
pouco teremos de avanços concretos e profundos nos próximos tempos. De outro
modo, não desconsiderando que qualquer outro conjunto de mudanças produza avanços,
compreendo que estes não são decisivos enquanto se ignora o projeto de
sociedade que tenha enquanto valor inegociável princípios de justiça tributária
e eficiência de manejo e arrecadação fiscal.
George Gomes
Coutinho
[i] Certamente
há outras análises de diferentes matizes. Porém, irei me ater a estes nomes
citados pela simples razão de ainda não ter feito um balanço da bibliografia
produzida a respeito. Por fim, para a construção do argumento neste pequeno
texto, a menção aos três citados é funcional ao conjunto de argumentos que
apresento.
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