A conjuntura
política: entre cognição fria e cognição quente
Por George Gomes Coutinho
A Ciência
Política brasileira em seu mainstream
contemporâneo aprendeu a apreciar de forma bastante detida a “racionalidade”
dos agentes em interação no sistema político. Herdeira da Ciência Política de
origem estadunidense, seus adeptos compreendem o agente político dentro de uma
determinada cosmogonia e, arrisco dizer, padecem de um certo “encarceramento
ontológico”. O agente político aqui é condenado ao que a teoria sociológica
chama de racionalidade instrumental. Indivíduos auto-interessados,
maximizadores de benefícios e minimizadores de déficits, só não partilham de
uma verdadeira guerra desleal de todos contra todos por conta de relativo
consenso sobre as regras do jogo e as consideram a partir da análise dos custos
individuais: no limite, para agentes
auto-interessados, as regras do jogo só contam quando convém aos seus próprios
interesses. Portanto, assim compreendemos a possibilidade de Golpes de Estado
quando a suspensão de regras torna-se suficientemente vantajosa. O bom e velho homo homini lupus hobbesiano manda
lembranças.
Desta forma,
ponderando custos e benefícios, lá se vai o agente auto-interessado se movendo nas
instituições, partidos e sistema político. Sem dúvida esta explicação sobre a
política é poderosa, dotada de grandes possibilidades e nos auxilia
sobremaneira a entendermos a rotina dos agentes políticos. Em relativa
precariedade de equilíbrio, assim o sistema se move de forma mais ou menos lenta.
Em momentos de convulsão, igualmente podemos assim interpretar, o sistema se
movimenta de forma rápida e desconcertante. Neste momento o governo federal
abraça tentativas de barganhar com grupos e indivíduos na tentativa de
arrefecer um processo de impeachment. De outro lado, os grupos pró-impeachment,
igualmente barganham de forma ostensiva para conseguir seu intento: ascender ao
poder sem utilizar do mecanismo do voto que deve ocorrer em eleições
periódicas. Na lógica amoral da escolha racional e instrumental, não há evidentemente
qualquer espaço para a moralidade embora ambos os lados se apresentem ungidos desta
velha senhora. Neste sentido, em termos gélidos e objetivos, vislumbrar
qualquer superioridade moral tem algo de demagógico.
Esta maneira de
compreender os fenômenos políticos na modernidade avançada chamarei de
“cognição fria”. A cognição fria, termo que apreendi na leitura do instigante “Cultures of optmism” de Oliver Bennett
lançado ano passado pela Palgrave Macmillan, é esta forma de interpretar o
mundo circundante desprovido dos elementos que tornam a cognição “quente”:
afetos, emoções e sentimentos. O auto-centramento da razão na escolha racional enxerga esses elementos
expressivos da alma humana como desnecessários na construção interpretativa e,
por vezes, torna-se um óbice importante para a consecução da adequação de meios
a fins. A grande questão é que autores como Jon Elster já apontam há muito
tempo a limitação evidente deste tipo de modelo explicativo. A redução de
complexidade de se perceber o agente como dotado de pura racionalidade instrumental
não mantém qualquer relação com os seres humanos reais. No mundo da teoria
social pós-Freud no máximo teríamos aqui algo de wishfull thinking.
De outro lado,
visando complementar as cognições frias, pouco capazes de dar conta da
totalidade do cenário, temos o dever de observar as cognições quentes. A
relação entre governantes e governados, a adesão a projetos, o engajamento que
produz as ações coletivas se encontram em ponto de fervura na atual conjuntura
no Brasil. O ódio, por exemplo, tem se mostrado o grande obstáculo que
inviabiliza a possibilidade da construção de um novo consenso. Lendo, ouvindo e
participando das diversas expressões da esfera pública, o que perpassa mídia,
manifestações, redes sociais e todo tipo de encontro face a face concreto, é
inegável a torrente de cognições quentes. A expressão comunicativa nos dias que
correm é carregada de afeto. Ofensas de toda ordem, a desqualificação do
argumento a priori, agressões, violência simbólica e ressentimento. Todos estes
elementos, nos arredores do sistema político e no seu núcleo, se apresentam
como desafiadores. No entanto, há ódios “novinhos em folha” e “ódios de média
duração”.
Os “ódios de
média duração” podem ser encontrados alhures pelo observador minimamente
sensível que acompanhou os debates na Câmara dos Deputados e agora os vê
transcorrendo no Senado Federal. Sendo o impeachment trauma estruturante do
sistema político brasileiro, aqui falo especificamente do momento Collor e
posteriormente das tentativas e pedidos de impedimento nos governos FHC e Lula,
os grupos apresentam memórias dos processos em seus discursos em prol da
legitimação de posturas e reivindicações do presente. Por um segundo a dinâmica
discursiva, não desconsiderando o espaço formal e solene, lembra muitíssimo
casais desgastados após anos de convívio e mágoas. Creio que quem não foi
protagonista deste tipo de relação afetiva, em dado momento pode ter
presenciado discussões homéricas sobre “aquele dia em que você me deixou
esperando no restaurante” e outras faturas do passado que aparentemente não
foram jamais quitadas... Mesmo que “aquele dia” tenha sido há meses, anos ou
décadas atrás.
Por essa razão, pela persistência dos afetos no
tempo e seu condicionamento na agência humana, talvez “politólogos” em geral
devam considerar esta faceta menos tangível que o judiciário, as regras do jogo
ou a “cognição fria” pura e simples. Justamente em países como o nosso onde não
há “julgamentos da história” e tampouco tentativas de construção de caminhos coletivos
ou individuais que sejam conciliatórios, vide os frustrantes resultados
práticos da(s) Comissão(ões) da Verdade, estamos a patinar, a perder riqueza analítica
e dotados de relativa inépcia na formulação de novos projetos que contem com a
adesão de amplos setores da sociedade para esta segunda década do século XXI.
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