Reflexões sobre o fascismo
Por George Gomes Coutinho
No início do mês de maio deste ano fui convidado pelos organizadores do
“Cineclube Marighella” para assistir com
eles e com seus cineclubistas o filme “A Onda”[1].
Até então, motivado pelo encontro em ocasião aprazível, aceitei prontamente. A
questão complexa que viria depois seria responder como sociólogo a pergunta que
se encontrava em letras garrafais no convite: “Fascismo nunca mais: será?”. Na
dinâmica do Cineclube, dentre comes, bebes e a exibição propriamente dita do
filme, eu e alguns colegas teríamos um breve espaço, em formato de mesa
redonda, para estimular o debate com os presentes.
O problema para mim, desde que aceitei o convite, foi tentar compreender
conceitualmente algo tão fugidio quanto o termo “fascismo”. Esta foi a questão que se tornou objeto de reflexão no meu background
profissional e gerou relativa angustia. Afinal,
seria possível delimitar de forma razoavelmente satisfatória o que é o
fascismo? Me recordei imediatamente de uma pequena reflexão sobre termos do
arcabouço político que se tornam adjetivos no senso comum: “Existem palavras às quais ninguém gosta de
ver o próprio nome associado publicamente, tais como ‘racismo’ e ‘imperialismo’. Há outras como ‘mães’ e
‘ambiente’, pelas quais todos correm a manifestar seu entusiasmo.” (Hobsbawm,
2001). Dentre nós, na atual e conturbada conjuntura brasileira, outros termos
tem sido utilizados de forma massiva para desqualificar argumentos e
posicionamentos políticos ou até mesmo classificar adversários. Sejam os
derivados da culinária como “esquerda caviar”, “mortadela” e “coxinha” e outros
mais, digamos assim, “clássicos”, como “golpista” e, voltamos a ele,
“fascista”.
O problema, como já identificado por Hobsbawm, é que determinados termos,
para além do uso impreciso no senso comum, não contam sequer com a adesão animada
daquele(s) que recebe(m) a alcunha. Não é tarefa das mais simples encontrar um
racista, homofóbico ou alguém assumidamente autoritário, seja na esquerda ou na
direita do espectro político, que esteja disposto, de forma espontânea e
aberta, a falar sobre suas convicções no espaço público. Ainda, fato curioso é
a sazonalidade histórica de alguns termos, o desaparecimento de outros e
surgimento de novos. Foi assim com o “neoliberalismo”, utilizado à exaustão nos
anos 1990 e início dos 2000 e, neste momento, assistimos o retorno do termo
“fascista” em larga escala. Porém, cabe perguntar se este termo é pertinente,
se explica os grupos sociais que busca caracterizar e, além disso, sendo o
fascismo uma ocorrência real e relevante na história do século XX, há diferenças
deste fascismo clássico para o “nosso” no século XXI supondo que o mesmo ainda ganhe
corações e mentes entre nós?
As respostas que irei delinear serão de cunho estritamente conceitual e
irão nos levar a compreendermos o fascismo como fenômeno perene, sendo uma
patologia inerente ao estabelecimento da modernidade. Trata-se da hipótese que
irei trabalhar. Meu caminho de reflexão irá propor uma síntese entre autorxs
que produzem em momentos históricos diferentes sobre o fascismo, ou em parte específica da
bibliografia, sobre o nazismo como aparição particular do fascismo. Não
desconsiderando a vasta bibliografia, estudos de caráter mais histórico ou
longas reflexões conceituais sobre os pormenores desta visão-de-mundo
particular, utilizarei especialmente as propostas de Max Horkheimer
(1895-1979), Theodor W. Adorno (1903-1969), Umberto Eco (1932-2016) e Marcia
Tiburi (1970 -).
Há um consenso entre estxs autorxs, não obstante todxs escreverem em
realidades e tempos históricos diferentes: o fascismo encontra-se na direita do
espectro político e este é seu demarcador central. Seja em suas aparições
totalitárias ou autoritárias[2]
e até mesmo no formato democrático, a adesão ao que Bobbio (1995) considera
como a defesa de formas tradicionais de estratificação social, seja por
critérios estamentais, de etnia, classe, raça, etc., ou mesmo a compreensão que
estes elementos de legitimação das desigualdades sociais sejam “naturais” e/ou
legítimas, é um ponto compartilhado pelas variantes da direita em geral e do
fascismo em particular. Por outro lado, julgando que a díade esquerda e direita
mantenha algum poder explicativo, a esquerda, em suas variantes e em termos
ideais, aposta em um projeto emancipatório que justamente venha a abolir uma
sociedade estratificada em prol de um modelo civilizatório mais igualitário[3].
Inclusive esta seria uma das formas mais apropriadas para pensarmos as
diferenças entre esquerda e direita.
Prosseguindo, apresentada já esta demarcação a priori de que ao falarmos
de fascismo estamos abordando manifestações políticas na direita do espectro
político, podemos definir que há dois grandes tipos de fascismo que decantam na
realidade em formatos concretos dotados de nuances. O primeiro é o fascismo
histórico, discutido de forma magistral por Eco (1995) em seu Ur-Fascism. Dentre todxs, é o semiótico
que apresenta uma descrição didática em seu curto ensaio elaborado, em um
primeiro momento, consultando as lembranças do próprio autor que viveu sua
infância e início da adolescência sob o regime fascista de Mussolini. O segundo
tipo, que aborda o fascismo potencial ou simplesmente o que podemos chamar de
mentalidade fascista, sintetiza os posicionamentos de todxs: Horkheimer,
Adorno, Tiburi e Eco compreendem um potencial fascista existente e perene nas
sociedades modernas. Destes dois tipos ideais de fascismo, além de
apresentarmos brevemente cada um deles, irei responder de maneira frustrante a
pergunta do convite do Cineclube: se podemos considerar esta ideologia[4]
erradicada. Sim e não. Sim quanto o fascismo histórico. Não quanto ao potencial
fascista que assombra as sociedades democráticas.
Referências
ADORNO, Theodor, et all. The
Authoritarian personality. New York: Norton & Company, 1993.
BOBBIO, Norberto. Direita e esquerda: razões e significados de uma distinção. São
Paulo: Edunesp, 1995.
______, MATEUCCI, Nicola & PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de política – Volume I.
Brasília: Edunb, 1998.
ECO, Umberto. Ur-fascism. In: New York
Review of Books. Jun., 1995,
p.12-15.
HOBSBAWM, Eric.
A falência de democracia. In: Caderno
Mais. Folha de São Paulo. 9 set.
2001.
MARX, Karl &
ENGELS, Friederich. A ideologia alemã : crítica da mais recente filosofia alemã
em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em
seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.
[1]
No original Die Welle. Filme alemão lançado
em 2008 dirigido por Dennis Gansel.
[2]
Totalitarismo e autoritarismo, embora sejam termos muito próximos, guardam
sutis diferenças em sua configuração. Sendo regimes de governo, estes diferem
por alguma abertura a forças políticas que não guardam total fidelidade com os
detentores do poder, o autoritarismo, ou há simplesmente a supressão de todas
as forças políticas do espaço formal de exercício do poder que não coincidam
imediatamente com o programa do regime, aqui falamos do totalitarismo. Maiores detalhes podem ser consultados no
verbete autoritarismo, Bobbio et.
all.,1998. Por fim, é evidente que totalitarismo e autoritarismo não são
privilégios da direita. A esquerda se utilizou destes regimes, especialmente o
totalitarismo no caso estalinista.
[3]
Não irei aqui discutir os regimes fáticos que se identificam ou se
identificaram com a esquerda no espectro político. Estou apenas apresentando
aqui o elemento central de fundo do discurso político que podemos identificar
com a esquerda, a despeito de suas versões e, neste momento, desconsiderando
experiências históricas concretas por estas nada acrescentarem ao tema desta
reflexão: o fascismo em suas versões históricas e contemporâneas.
[4]
Estou utilizando aqui a concepção de ideologia como visão-de-mundo (Weltanschauung) tal como proposta em
Adorno et. all. (1950:02). Todavia, a concepção clássica de Marx e Engels
(2007) como “falsa consciência” poderia ser igualmente empregada com grande
proveito ao discutirmos o fascismo.
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