Por Paulo Sérgio Ribeiro
Um dos aspectos mais instigantes do
pensamento político brasileiro é a própria dificuldade de submetê-lo à
observação quando delimitamos a ciência em sua autonomia cognitiva frente à
política. O fascínio que desperta se deve ao fato de o trânsito profissional
nessa área de estudos ser, quiçá, um alento para o cientista social em face da
desarticulação dos discursos políticos com a crise das grandes narrativas (um
então porto seguro da nossa subjetividade ante o esforço metódico de pesquisa)
e, sobremaneira, com o comprometimento cada vez maior do nosso imaginário com o
tempo intemporal das redes sociais virtuais. Valendo-me das últimas, creio que
uma maneira de tatear o relevo do pensamento político sem fazer dele perfumaria
é enquadrá-lo a partir da sistematização que Gildo Marçal Brandão lhe conferiu
enquanto uma área temática que, no cenário brasileiro, mobiliza diferentes
campos disciplinares nas ciências humanas[1].
Admitindo a relativa incipiência
desse debate sem subestimar o potencial de autoconhecimento da sociedade nele
observável, G. M. Brandão oferece um enfoque construtivo às asserções
científica e humanista do trabalho intelectual nas ciências sociais. Com o
intuito de dimensionar o escopo da dicotomia “ciência” versus “humanismo”,
descrevo, também, a avaliação do estado de arte das ciências sociais sustentada
por Fábio Wanderley Reis após décadas de institucionalização do seu ensino e
pesquisa no Brasil[2]. Este breve desvio
se justifica por possibilitar um contraponto exemplar do programa de pesquisa
proposto por G. M. Brandão ao diagnóstico feito por F. W. Reis e, assim,
evidenciar algumas nuances de suas escolhas epistemológicas.
Comecemos pelo diagnóstico. Apesar da
demonstração do vigor das ciências sociais brasileiras nas últimas décadas,
verificável na diversificação do seu campo de atuação profissional e na
ampliação de seu capital cultural institucionalizado em universidades e
associações nacionais de pesquisa, F. W. Reis é cético quanto ao desempenho
obtido no domínio teórico e metodológico, pois se cristalizou um modo de
intelecção da realidade social, calcado num vezo “historicizante” dos
problemas, que tanto revela quanto agrava lacunas do treinamento para a
pesquisa. A indistinção de explicação sociológica e explicação histórica em
muitas pesquisas empíricas desenvolvidas por cientistas sociais não lhes
franqueia a expertise dos historiadores profissionais, o que
leva ao cultivo de uma espécie de história do presente que nada mais seria do
que um “descritivismo pobre e às vezes contente com sua pobreza”[3]. De maneira complementar, F. W. Reis aponta
um quadro heterogêneo no tocante à consolidação de um padrão “científico” nesta
esfera do saber especializado:
Creio que a Sociologia e a Ciência Política encontram-se claramente mais próximas do padrão “científico”, caracterizado pelo apego ao rigor, à sistematicidade, à generalização e à busca de cumulatividade, ao passo que a Antropologia e a História estariam, em geral, mais próximas do padrão “humanista” e “idiográfico” de trabalho, com a ênfase no qualitativo e no descritivo, a valorização da dimensão temporal ou histórica dos fenômenos e de suas consequentes “peculiaridades”, o relativismo, a confiança depositada na intuição e na “compreensão”(REIS, 1997).
A hierarquização das disciplinas
subsumida naquela avaliação não consiste, necessariamente, em reduzir suas
querelas metodológicas ao uso apurado de um conjunto de técnicas de pesquisa
tornado unívoco pelo trabalho intelectual dito hard, mas aduz a uma
perspectiva do conhecimento – referendada no mainstream da
ciência política norte-americana – que propiciaria não desvirtuar as ciências
sociais de sua “vocação teórica e nomológica” que, bem compreendida, subscreve
uma concepção de método que não as desabona por sua proximidade com os “fundamentos
lógicos da aceitação ou rejeição de hipóteses e teorias” das ciências naturais[4].
Sem dúvida, F. W. Reis vocaliza uma
postulação do programa de pesquisa legado pelo sociólogo norte-americano Robert
Merton: uma ciência social não é incompatível com a cumulatividade do
conhecimento. Pelo contrário, pressupõe-na como meio de realização e meta
precípua. O aporte teórico, requerido para construir um problema sociológico,
deixa de depender do retorno ritualizado aos textos clássicos ao ceder lugar a
sistemas conceituais e argumentos causais cuja validade se comprove através do
encadeamento lógico-formal do processamento dos dados com os resultados
alcançados. Estes últimos configurariam um conhecimento “verdadeiro”, posto que
verificável pela confrontação de hipóteses e teorias, capaz de realimentar
futuras pesquisas a partir de um novo patamar de inquirição da realidade nelas
circunscrita. Neste sentido, a releitura de uma obra canônica tange o risco de
subordinar a pesquisa a argumentos de autoridade que, no melhor dos casos,
revelariam erudição suficiente para uma exegese igualmente canônica.
Tal “risco” seria elevado em nossa
ambiência cultural, devido à obsessão pela questão nacional, que estimularia,
por exemplo, revisões permanentes dos “clássicos” do pensamento político-social
brasileiro. Quais seriam os móveis dessa obsessão? A rigor, vigora a pretensão
de uma elaboração discursiva “autêntica” sobre a realidade brasileira,
difundida com maior ou menor refinamento em nossas ciências sociais frente as
suas congêneres europeia e anglo-americana que, não obstante, tende a gerar
efeitos regressivos na elaboração teórica stricto sensu. Noutros
termos, o sacrifício de nossa imaginação sociológica – decorrente da
focalização de temas/obras situados localmente como critério de relevância sem
rival na produção de conhecimento – traduz certo acanhamento diante do problema
sociológico como problema teórico tout court. Logo, a importância
secundária atribuída à teoria apenas reafirmaria os papéis intelectuais
prescritos na comunidade científica internacional, que chancelam a estreiteza
de nossas iniciativas na fronteira do conhecimento:
Nessa ótica [da ciência social produzida localmente], boa ciência é aquela que, com alguma reverência aos modelos e abordagens “quentes” do momento, se dirige a problemas empíricos e práticos prementes, os quais vêm a ser os problemas socialmente relevantes na sociedade em que vivemos. Omite-se, assim, a ponderação crucial de que não saberemos sequer definir com propriedade nossos problemas empíricos e práticos se não tivermos condições de refletir com sofisticação adequada a respeito deles, vale dizer, se não formos teoricamente sofisticados (REIS, 1997; colchetes meus).
F. W. Reis defende que a superação
desses óbices se apóia numa reversão de expectativas quanto à noção de
“singularidade” da formação social brasileira. Assimilá-la criticamente nos
obrigaria a não confundir o esforço endógeno em teoria social com uma ideia
equívoca de precedência do “Brasil” no preenchimento de nossa curiosidade
intelectual. Esta, a seu ver, somente se converterá num recurso manejável para
a participação paritária na produção de conhecimento em escala mundial se o
caso brasileiro for um caso entre outros para os cientistas
sociais nativos. Para tanto, o repertório aquilatável em nossa socialização
científica prescinde de uma postura “cosmopolita e aberta” [5] e, não menos, de uma reconfiguração de
nossas áreas temáticas segundo proposições generalizantes que, por um lado, não
limitem seus respectivos trabalhos a “descrever” o Brasil e, por outro, liberem
seus autores do encargo de fornecer insumos (casos concretos) para a teoria
social cujos empreendimentos mais ousados continuam restritos a poucos nichos
acadêmicos fora do país.
Obviamente, o diagnóstico de F. W.
Reis tem a anuência de parte da comunidade científica brasileira afeita ao
postulado de objetividade com o qual, diga-se, o politólogo mineiro projeta uma
via de aprimoramento para pesquisa social sem recuar diante das clivagens
metodológicas entre as ciências humanas e as demais áreas de conhecimento.
Entretanto, F. W. Reis baliza seu diagnóstico numa crítica que, embora
incisiva, não nos motiva para além de uma espera (resignada?) pela efetividade
do seu desiderato: “fortalecer a qualidade do treinamento teórico-metodológico,
em termos que valorizem o modelo analítico e sistemático do trabalho científico” [6]. Doravante, seus apontamentos críticos a
respeito dos déficits qualitativos das ciências sociais brasileiras permitem,
curiosamente, introduzir o programa de Gildo Marçal Brandão (a parte final
desse texto, que reservo para outra publicação), mesmo que a analogia com a
limpeza de terreno feita pelo filósofo alagoano nessa área temática não
obscureça sua divergência com o modelo de ciência social preconizado por seu
colega mineiro.
[1] Cf.
Gildo Marçal Brandão, Linhagens do pensamento político brasileiro,
São Paulo, Hucitec, 2010.
[2] O diálogo
com Fábio Wanderley Reis e Gildo Marçal Brandão deve-se à filiação de ambos à
Ciência Política, disciplina pela qual tecem um panorama das ciências sociais
brasileiras segundo pontos de vista alternativos e, por vezes, antagônicos.
Todavia, não menos relevante é o cotejo das perspectivas de Elisa Pereira Reis
e de Gilberto Velho na entrevista que concederam com Fábio Wanderley Reis há duas décadas sobre
a situação das ciências sociais no país e que se revela flagrantemente atual. Cf. Elisa Pereira Reis; Fábio
Wanderley Reis; Gilberto Velho, As ciências sociais nos últimos 20 anos: três
perspectivas, Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 12, n.º
35, out. 1997.
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