Quem pragueja contra o comunismo sabe o que é liberalismo? (parte
3)
Por Paulo Sérgio Ribeiro
Sumariadas as linhas conceituais da “justiça com equidade” (ver
parte 2), principiemos pela leitura do programa de governo de Fernando Haddad
(PT)[1]. Tendo por fio condutor o
Plano Nacional de Educação (PNE) aprovado para o decênio 2014-2024, nesse
programa eleva-se a educação à condição de “prioridade estratégica” que obedece
às seguintes diretrizes:
a) Forte atuação na
formação dos educadores e na gestão pedagógica da educação básica, na
reformulação do ensino médio e na expansão da educação integral;
b) Concretização das
metas do PNE, em articulação com os planos estaduais e municipais de educação;
c) Institucionalização
do Sistema Nacional de Educação, instituindo instâncias de negociação
interfederativa; criação de política de apoio à melhoria da qualidade da gestão
em todos os níveis e aperfeiçoamento do SAEB;
d) Criação de novo
padrão de financiamento, visando progressivamente investir 10% do PIB em
educação, conforme a meta 20 do PNE; implementação do Custo-Aluno-Qualidade
(QAQ) e institucionalização do novo FUNDEB, de caráter permanente, com aumento
da complementação da União; retomada dos recursos dos royalties do petróleo e
do Fundo Social do Pré-Sal;
e) Fortalecimento da
gestão democrática, retomando o diálogo com a sociedade na gestão das políticas
bem como na gestão das instituições escolares de todos os níveis.
Das diretrizes expostas, chama-me atenção a proposta de
redefinição dos padrões de financiamento para alcançar 10% de investimento do
PIB em educação. Trata-se de uma meta que exigirá um verdadeiro rearranjo
distributivo e cujas chances reais de ser efetuada perpassam o comprometimento
das rendas petrolíferas com o investimento público em educação. Nos termos
originais do marco regulatório da exploração dos campos do pré-sal, delimitavam-se
75% dos royalties do petróleo para a educação e 25% para a saúde, além de 50%
de todos os recursos do Fundo Social do pré-sal para ambos os setores. A base
legal para essa repartição de investimentos, sancionada no então Governo Dilma[2], sofreu drásticas
alterações sob o Governo Temer[3] e, na prática, tornou-se
letra morta com a Emenda Constitucional nº 95, que restringe os gastos
primários do governo federal por 20 anos e que, diga-se, teve o voto de aprovação do
deputado federal Jair Bolsonaro[4].
Diante deste contingenciamento, como o programa de Haddad focaliza
a educação infantil e o ensino fundamental? Na primeira, em consonância com a
educação integral, estabelece-se a expansão “com qualidade” das vagas em
creches e o fortalecimento das políticas voltadas para a pré-escola. No
segundo, são previstos ajustes na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em
contraponto a “imposições obscurantistas” - uma menção indireta a projetos
de lei inconstitucionais sob o rótulo "Escola sem partido" -,
assim como uma “forte política nacional de alfabetização” que confira
tratamento qualificado às especificidades locais dos educandos. Para o ensino
fundamental, também são previstas medidas de valorização e formação
profissional dos professores e professoras a partir do fortalecimento do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). Por seu
intermédio, estudantes universitários de Pedagogia e de Licenciatura atuarão
nas escolas públicas em sinergia com a tentativa de promover um salto
qualitativo no processo de alfabetização das crianças.
Como o programa de Jair Bolsonaro (PSL)[5] delineia esses dois
segmentos da política educacional? A primeira menção a essa política é feita na
seção “Linhas de ação” na forma de um binômio Saúde/Educação:
Saúde e Educação:
eficiência, gestão e respeito com a vida das pessoas. Melhorar a saúde e dar um
salto de qualidade na educação com ênfase na infantil, básica e técnica, sem
doutrinar.
Na última oração – “sem doutrinar” – evidencia-se uma percepção do
processo de ensino-aprendizagem que é, no mínimo, ilógica. Ora, a socialização
escolar não se resume à transmissão de conhecimentos de ordem cognitiva, ainda
que os seus agentes estivessem deliberadamente comprometidos com a
exclusividade dessa função social da escola. Qualquer profissional de educação
sabe melhor do que ninguém que há uma tensão permanente entre as famílias e a
escola no tocante à expectativa de aquisição de comportamentos e declará-la
extinta seria o mesmo que, digamos, revogar as leis da física
newtoniana...
Adiante, postula-se a tese de que “gastamos como os melhores” e
“educamos como os piores”, aludindo à posição do país no Programa Internacional
de Avaliação de Estudantes (PISA). De fato, nosso desempenho educacional
encontra-se aquém do desejável. Os resultados colhidos através do PISA em 2015[6] sinalizam que os alunos
brasileiros tiveram um desempenho abaixo da média dos alunos nos países da
Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Naquele ano,
obtivemos em ciências 401 pontos, enquanto a média dos demais países ficou em
torno de 493 pontos; em leitura 407 pontos, em comparação à média de 493
pontos; e em matemática 377 pontos, comparados à média de 490 pontos.
Diante das severas insuficiências na aprendizagem escolar,
lança-se um prognóstico que, à primeira vista, parece auspicioso: inverter as
prioridades, concentrando, pois, esforços na educação infantil, fundamental e
média. Qual diagnóstico lhe serve de base? Mudar (sem precisar como) a Base
Nacional Curricular Comum (BNCC), eliminar a “aprovação automática” e expurgar
a “ideologia de Paulo Freire” no processo de alfabetização. Uma vez mais,
vaticina que um dos maiores entraves no setor é a “forte doutrinação”.
Desnecessário dizer que tal afirmação vai de encontro ao que pedagogos e demais especialistas em diferentes latitudes do globo pensam. Basta lembrar que a Organização das Nações Unidas (ONU) ratifica o reconhecimento de Paulo Freire
como patrono na educação brasileira. Mas não nos distraíamos com bobagens.
Fixemos o olhar em uma proposição sui generis contida em seu
programa:
Educação à distância:
deveria ser vista como um importante instrumento e não vetada de forma
dogmática. Deve ser considerada como alternativa para as áreas rurais onde as
grandes distâncias dificultam ou impedem aulas presenciais.
Eis uma resolução que, em sendo implementada, tornaria o Estado e
a sociedade brasileiros divorciados daquilo que é, digamos, a quintessência do
liberalismo. Recordemos: tornar-se gente, na acepção genuinamente
liberal do termo, decorre de uma bem vinda “invasão” do Estado no reduto
familiar com vistas a incorporar seus membros em um processo
de cidadanização. Seu instrumento por excelência é a escola
pública, universal e gratuita que, mesmo sem deixar de aclimatar-se às
peculiaridades regionais, tem de promover a participação integral dos indivíduos na socialização de conhecimentos e comportamentos que seja
a um só tempo causa e efeito de uma nação que se possa chamar de conclusa.
Aqui, sequer podemos dizer que se adota uma concepção de justiça social afeita
à liberdade natural, pois, como vimos, mesmo nesta versão
minimalista do liberalismo social, é pressuposta a formação escolar em
condições equitativas para que um indivíduo adulto tenha sido capacitado a
empreender a si mesmo em uma economia competitiva de mercado.
Pasmem, qual o sentido de uma criança de uma família pobre do
semiárido nordestino ou do Alto Amazonas ter acesso a um conteúdo didático por
meios audiovisuais sem estar integrada à sala de aula? As famílias das áreas
pouco acessíveis deveriam suportar em seus próprios ombros a socialização dos
custos da integração nacional sem uma presença robusta do Estado na
educação básica? Seria razoável negar a uma criança as virtualidades do saber
não instituído que apenas a convivência em uma comunidade escolar mais ampla do
que suas relações familiares podem assegurar? Contar-se-iam com pais e/ou
responsáveis aptos a dirigir os estudos à distância das crianças sob sua
guarda?
A pertinência de tais perguntas ante os desafios que a “educação
2.0” está a exigir em uma sociedade complexa como a brasileira, atravessada
pelas iniquidades de uma elevada desigualdade socioeconômica entre classes
sociais, confirma a olhos vistos o quão iliberal é
Bolsonaro em seu programa de governo. Os fantasmas alimentados em torno do
comunismo não passam de um véu para as fragilidades de uma agenda
educacional que carece de um plano de ação que encadeie objetivos e metas.
Conclusão: no programa de governo de Haddad, prevalece uma
concepção de justiça social subjacente à igualdade liberal de
oportunidades, na medida em que preconiza uma alocação redistributiva
de recursos que gere oportunidades educacionais para segmentos da população em
relativa desvantagem sem, necessariamente, sacrificar o estilo universalista da sua política social. Já no programa de Bolsonaro, predomina uma perspectiva da
educação que, a considerar a recorrência das falácias em torno do “perigo
vermelho”, acaba por traduzi-la em um problema moral sem outra fundamentação
senão os velhos preconceitos de uma caserna militar que carece de luz e
oxigênio.
Por fim, é bom lembrar: um governo estadual ousou recentemente
navegar contra a maré montante do neoliberalismo no país. Trata-se do governo
do Maranhão[7],
que incluiu em sua carta náutica uma medida de recomposição salarial na
educação básica que propiciou um novo piso remuneratório a servidores efetivos e
contratados, comprometendo 115 milhões na sua folha de pagamento. Um professor
iniciando a carreira no Maranhão com jornada semanal de 40 horas terá
remuneração de R$ 5.750,83. Já o que inicia com jornada de 20 horas, receberá
R$ 2.875,41. De longe, a melhor remuneração para a docência nos níveis
fundamental e médio dentre os estados da federação, efetuada no governo de um
comunista, Flávio Dino (PCdoB). Surpreendente? Nem tanto.
[2] http://www.brasil.gov.br/governo/2013/09/sancionada-lei-que-destina-royalties-do-petroleo-para-saude-e-educacao
[3]
https://www.redebrasilatual.com.br/politica/2016/10/partidos-que-hoje-querem-mudar-regras-do-pre-sal-se-posicionaram-de-forma-diferente-anos-atras-6194.html
[4]
http://g1.globo.com/politica/noticia/2016/10/saiba-como-cada-deputado-votou-em-relacao-pec-do-teto-de-gastos.html
[7]
https://www.cpp.org.br/informacao/noticias/item/10576-com-reajuste-maranhao-pagara-mais-alto-salario-de-professor
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