sexta-feira, 16 de novembro de 2018

Bienal do Livro em Campos: território livre


Bienal do Livro em Campos: território livre

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Li de ponta a ponta a programação da 10ª Bienal do Livro em Campos dos Goytacazes[1]. Posso dizer sem medo de errar que está um primor. Sua curadoria foi muito feliz na eleição dos temas a serem abordados entre os dias 20 e 25 de novembro, confirmando a Bienal como um espaço aberto e plural: diferentes pessoas, com ou sem familiaridade com os códigos da cultura erudita, terão a oportunidade de se deixarem afetar pelo mundo da literatura, renovando suas perspectivas sobre a realidade brasileira e elevando suas exigências diante da mesma.

O fomento à leitura é bem-vindo, haja vista a aridez na qual o brasileiro médio cultiva sua subjetividade e, quiçá, um tanto urgente diante da epidemia de "terra-planismo" que assola uma população cuja vontade coletiva é suscetível a toda sorte de mistificação de fundo reacionário.

Em que terreno pisamos aqui? Alguns dados da mais recente pesquisa "Retratos da leitura no Brasil"[2] ajudam a nos situar. Na metodologia empregada, definiu-se "leitor" como aquele que leu, integral ou parcialmente, pelo menos um livro nos três meses anteriores à pesquisa e "não-leitor" quem declarou não ter lido nenhum livro nos três meses anteriores à pesquisa, ainda que tenha lido nos últimos 12 meses. Tendo por base tais categorias de análise, os resultados indicam que 44% da população podem ser considerados "não-leitores", equivalendo a mais de 80 milhões de brasileiros(as).

Embora a região Sudeste tenha o menor percentual de população não-leitora (39%), não há por que subestimarmos os desafios postos à difusão da leitura em terras fluminenses. Provavelmente, o mais árduo deles seja trazer para a argumentação racional uma extrema-direita local que, sob a égide do bolsonarismo, apregoa a censura às artes e à docência. Ora, se a referida pesquisa sinaliza que quanto maior é o nível de escolaridade, mais recorrente é a menção a "atualização cultural ou conhecimento geral" como motivações para ler um livro, é provável que a campanha, em si patética, de boicote à Bienal do Livro não seja de todo fruto de ignorância, senão de sua exploração sistemática para fins moralmente duvidosos.

Por que precisaríamos da tutela de alguém para acessar um livro ou qualquer outro bem cultural? Ainda que não devamos ser inconsequentes ao dizer "sim" às nossas volições enquanto trabalhadores da cultura - algo que um comunicador como Silvio Santos, por exemplo, não se importa ao assediar sexualmente uma cantora em rede nacional[3] - seria um verdadeiro desserviço cercear iniciativas como a Bienal do Livro. Fazê-lo vai de encontro ao debate sobre o que sejam fronteiras legítimas entre arte, estética e moral, pois mataria no nascedouro aquilo que confere vitalidade à esfera pública: o pluralismo político.

Sintoma dessa interdição do pensamento é a nota de repúdio de um vereador campista a um dos convidados para a Bienal deste ano:


"Não estou fazendo nenhum julgamento dele, mas questiono a sua vinda à nossa cidade..."[4]. Desafio alguém a encontrar algum nexo lógico no posicionamento de Marcelo Perfil. Um lembrete ao vereador e àqueles que o têm "cobrado nas redes sociais": Wagner Schwartz é um homem livre para dialogar conosco sobre notícias falsas ou quaisquer outros assuntos de interesse público e a alusão que fazem ao seu trabalho artístico no Museu de Arte Moderna (MAM) prova apenas a fragilidade de argumentos moralistas.

Sim, Wagner Schwartz ficou nu no MAM. E daí? Ao contrário do que sugere a nota acima, a performance de Schwartz foi completamente distorcida com a repercussão dada a mesma por parlamentares e lideranças religiosas (cada vez mais indistinguíveis entre si nas casas legislativas deste país) cujos ativos políticos são capitalizados pelo chauvinismo de classe média


Wagner Schwartz em "La Bête".

Contextualizemos: em setembro de 2017, Wagner Schwartz ofertou ao público a performance La Bête ("O Bicho") como um exercício de intertextualidade com a obra de Lygia Clark, uma das mais consagradas artistas brasileiras. Aliás, não foi a primeira vez que atuou em "La Bête": desde 2005, apresentava-a no Brasil e na Europa e, em todas as ocasiões, a plateia se tornava co-partícipe ao manipular seu corpo nu como se fosse uma das figuras geométricas dobradiças da pintora e escultora mineira[5]

A circulação de um fragmento daquela performance - um vídeo que expõe uma criança, acompanhada de sua mãe, tocando o tornozelo de Schwartz - foi o estopim para acusá-lo de "pedófilo", impondo-lhe desde então severos constrangimentos (inclusive, ameaças de morte) devido a uma calúnia que ganhou ares de verdade com a atuação hiperativa dos haters com suas milícias virtuais. 

Afinal de contas, por que tanto pavor-pânico? O corpo humano é um elemento tangível que adquire plasticidade conforme os significados que possamos lhe atribuir no domínio das artes. Tive o prazer de assistir ao monólogo "Alma imoral", interpretado magistralmente por Clarice Niskier, que se inicia com um belo nu frontal e, também, poderia citar uma cena hilária do não menos inesquecível "Capitão Fantástico", filme que assume contornos metalinguísticos quando a personagem "Ben" indaga a um casal de velhinhos (e aos milhões de espectadores de Hollywood) o porquê do espanto ao vê-lo despido ("just a penis... every man has one"). 

Haveria outros tantos exemplos no teatro e no cinema que me fogem agora à lembrança. Fiquem à vontade para elencá-los. Diante desse leque de possibilidades, é tão difícil assim entender que a nudez possa ser objeto de fruição estética sem necessariamente se confundir com indução ao ato sexual? Noutros temos, Wagner Schwartz terá de ser censurado previamente em tributo à mediana mediocridade de alguns dos meus conterrâneos? 

Talvez essa histeria detonada por uma performance no MAM que, pasme, reverbera em nossa Bienal do Livro, evidencie o quão indispostos estamos diante da crise da identidade masculina. Um corpo masculino cuja nudez seja entregue em plena passividade à experimentação artística torna-se inadmissível dentro um imaginário social que compromete a todo tempo homens com um ideal de virilidade casta. Não surpreende, pois, que um homem de pau mole dentro de um museu assuste mais que a dengue...

Observemos de perto esta possível instrumentalização de pânicos morais por parte da extrema-direita no desenrolar da Bienal do Livro sem, contudo, deixar de saborear a agenda pública que a sua programação nos convida a participar: relações étnico-raciais, feminismo, legalização das drogas, a questão LGBT, laicidade do Estado, violência urbana, fake news entre outros. 

Que a literatura seja o nosso escudo e a nossa pátria comum. 

#euvouàbienal

[4] https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1852994351462681&set=a.285601264868672&type=3&theater
[5] https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/12/opinion/1518444964_080093.html  

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