Feliz Ano
Velho
Por Paulo Sérgio Ribeiro
Ser colaborador em um blog proporciona experiências fascinantes tais
como a sintonia do que publicamos. Eis o que me aconteceu ao ler o
texto inaugural deste 2019 escrito por Márcio Malta, o nosso Nico. Apesar de professarmos a Sociologia como responsabilidade pública, com todos os tributos que
por vezes rendemos ao estilo de redação científico, é bom lembrar que o formato do blog se presta essencialmente à
função expressiva da língua, o que nos devolve à singularidade de “todo aquele
que nos empresta sua testa”, para reverenciar um dos versos do atemporal Chico
Buarque.
Se assim o é, aproveito a oportunidade para iniciar os meus trabalhos
por aqui com um tom mais “pessoal” do que de costume.
Gostaria de falar da travessia que começamos a partir de hoje como bem
sintetizou Nico em “O que representa o governo Bolsonaro?”, tendo por enfoque o
que exigirá de nós, partícipes do campo progressista da política
brasileira, um senso tático e, talvez, um esforço sobre-humano: conviver com
quem nos é declaradamente hostil sob o governo de extrema-direita de Jair
Bolsonaro. Sobreviver para resistir e resistir para sobreviver. Antes fosse
só um jogo de palavras...
Os “bolsonaros” estão soltos por aí. Têm de todo tipo. A fauna é
variada, sabemos. Divirto-me especialmente com aqueles(as) que nos enviam
mensagens de paz nas festividades de fim de ano. É como se dissessem: “Gozamos
com o terror institucionalizado, mas temos bom coração”. De minha parte,
pergunto: de que nos valeria transigir com um simulacro de democracia? O ensaio
de “pax armada” que marcou o rito de posse do presidente eleito aí
está para quem quiser ver. Uma grotesca mostra da continuidade de um governo
ilegítimo que se instaurou em 2016, considerando os seus alinhamentos
programáticos com a agenda ultraliberal de Michel Temer.
Ora, alguém poderia contra-argumentar: gostemos ou
não, é o que a vontade coletiva decidiu e qualquer objeção a isso seria
antidemocrático. Em tese, não haveria por que discordar de uma ponderação desse
tipo. No entanto, nunca é demais lembrar os não poucos sinais de que será
mínimo o espaço democrático para a oposição ao governo federal e aos seus símiles estaduais, pois, concordando com a psicóloga Eni Gonçalves de Fraga[1], estamos sob a iminência de uma ditadura
civil-militar em que, ironicamente, os líderes da autocracia burguesa não
precisam fazer nada mais do que “seguir” os seus liderados.
É
uma ditadura às avessas. É uma ditadura que vem das ruas. Dessa vez não é de
cima pra baixo. É de baixo pra cima. Os bolsonaros saíram à luz do dia para
impor uma nova (antiga) ordem, elegendo o seu maior representante, que teve a
audácia de colocar a cara no sol, porque sabia que estava em consonância com o
coletivo. Ele apareceu com segurança e tranquilidade. Porque o trabalho e o
esforço não é dele. É do povo. Ele não precisa sequer fazer discurso, debater,
argumentar. Porque não é disso que se trata. Não é isso que determina a sua
eleição[2].
Se os “odiadores da política” aderem em massa
àqueles que continuam a fazer política profissional lhes incitando a regressão
dos costumes em um círculo vicioso, quais opções nos restam sem, necessariamente, abrir mão da via
institucional? Admito não ter resposta pronta e acabada para isso. Apego-me apenas ao “paradoxo da tolerância” do qual nos fala Karl Popper. Para o
filósofo da ciência austríaco, seria risível (se trágico não fosse) certos
chavões dos bolsonaristas de plantão como “É preciso esperar o que vai
acontecer” ou “Torcer contra de nada adianta”. Repeti-los seria o mesmo que combinar com um canibal aonde ir depois do jantar...
Falando sério, por que o paradoxo que Popper esculpiu
no imediato pós-guerra se mostra à prova do tempo? Basicamente, porque a
política, como construção provisória de consensos, requer de cada um(a) enxergar
a si mesmo(a) como membro de um todo que assim se constitui pela liberdade de
todos os indivíduos em particular. Ora, diria Popper, tolerar os intolerantes põe
em risco a própria tolerância, na medida em que não é possível detê-los
pela força da argumentação lógica; pelo contrário, eles redobram a sua força
justamente pela rejeição a quaisquer argumentos.
Sendo assim, insistir em relativizar manifestações
de intolerância do governo Bolsonaro e dos seus “seguidores” é perder de vista
aquilo que é a última garantia da luta por autoconservação: a desobediência
civil. Se esta for mesmo a tarefa do momento, quais práticas e saberes políticos seremos
capazes de mobilizar para resistir ao autoritarismo?
Temos um ano inteiro para descobrir.
[1]
https://jornalggn.com.br/fora-pauta/um-olhar-da-psicologia-sobre-o-fenomeno-coiso-por-eni-goncalves-de-fraga
[2] Ibid.
ibidem.
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