Racismo,
Universidade e as disputas pelos sentidos do mundo.
Por
Luciane Soares da Silva*
Existem textos que são escritos de
uma única tacada. A conjuntura, a necessidade da denúncia são aliados na
construção dos argumentos. Não se deve esperar para apresentar um
posicionamento. Faço esta advertência, pois correrei um risco muito grande hoje.
De qualquer forma, outros correram antes de mim.
No início dos anos 2000, em um
Congresso com cientistas portugueses, discorria sobre ocorrências de delegacia
envolvendo injúria racial após a Constituição de 1988. Fui interrompida por uma
professora que, muito preocupada com o espanto do grupo de 11 pesquisadores,
tentava defender a representação do Brasil como um paraíso racial. Quando a
indagaram sobre as “cotas”, experimentei o primeiro momento constrangedor de
inúmeros que veria ao longo de uma década: aos prantos, fez uma defesa pessoal
de sua orientação racial democrática. De como era ter orientandos do CNPq
negros.
Como pesquisadora formada no sul do
país, vivi ao longo de 6 anos situações que muito recentemente são
classificadas como “racismo” institucional. Desde piadas em bancas de seleção
com personagens negros cômicos de filmes americanos até o questionamento da
vocação para pesquisa. Sem contar as classificações obscuras em concursos nos
quais a banca permaneceu olhando pela janela durante minha prova-aula e
bocejando. Todos sabem como isto acontece, mas não é possível criticar um
círculo de poder se você ainda tem a pretensão de ingressar em uma
Universidade.
São esses os inconvenientes que o
professor José Jorge de Carvalho ousou denunciar ao tomar posição no “caso Ari”.
Arivaldo Alves foi reprovado em uma disciplina obrigatória do curso de doutorado
no departamento de Antropologia da Unb em 1998. Algo inédito nos 20 anos de
existência daquele programa. Lembro de José Jorge na UFRGS contando quantos
professores negros tínhamos na Universidade. Um deles era meu orientador,
cabo–verdiano. Não lembro de outros durante o tempo que estive lá. E não creio
que haja um número muito representativo em 2019. José Jorge indagava se
tínhamos os dados sobre evasão nos cursos das principais Universidades. Por que
concentrar-se em 20% de reserva de vagas?
Naquele ano, um muro amanheceu
pichado na frente da faculdade de Direito na João Pessoa com a frase “Negro, só
se for no RU, cotas não”. A referência era ao restaurante universitário, no
qual comi por seis anos e o local em que, de fato, podíamos ver os não brancos.
As “cotas” foram atacadas, livros foram escritos com vários argumentos sobre a
dificuldade da classificação racial, sobre importar um problema que não existia
no Brasil. Lembro de estudantes defendendo a meritocracia.
O Brasil de 2019 é bem diferente
daquele. As primeiras turmas de UERJ e da UENF (pioneiras na política de ação
afirmativa) já estão formadas e desmentem hipóteses iniciais sobre desempenho
de cotistas. As Federais também sofreram o impacto das políticas e é possível
perceber maior heterogeneidade quanto a cor em alguns cursos. Se olharmos para
o corpo docente das Universidades, vemos algo curioso: alunos não brancos e de
classes trabalhadoras ingressam em cursos de doutorado. Mas se realizarmos um
levantamento nos últimos dez anos nos concursos públicos, veremos que segue o
mesmo padrão de cor de décadas anteriores.
Quais as hipóteses para este
fenômeno? Tenho amigos formados na UFF, USP, UFRJ, UFMG, UFRGS, UERJ, UFBA...
por pesquisadores reconhecidos internacionalmente, com uma biografia de dedicação
à pesquisa, com formação na Europa, Estados Unidos, com publicações nas
melhores revistas. Como explicar seu desempenho em concursos? Um ponto: creio
que as ações afirmativas não servem como resolução para desigualdades
estruturais com base em cor. Mas sabemos o peso do reconhecimento pelo título
conferido no século XXI para aqueles cujas famílias não têm uma única pessoa com
ingresso no ensino superior.
Mas me parece que a entrada na
carreira docente representa o passo que não demos. Representa a discussão de
uma outra epistemologia científica, o deslocamento concreto dos objetos de
observação (tanto na área de saúde como na geografia ou no urbanismo). Se temos
como professor um homem negro, residente na Maré e que estuda favelas (e de
fato, ele existe com estas características), alteramos um ponto nos discursos
sobre um dos temas mais interessantes na ciências sociais brasileiras. Outro
lugar de observação, outra forma de entrada em campo, outras possibilidades
teóricas e políticas.
Creio que todos têm um acordo formal
sobre isto. Como temos acordo sobre a necessidade de combater o racismo. Mas o
que temos hoje é um outro tipo de reserva de vagas: aquelas que definem os
sentidos do mundo. E que, ao definirem, estabelecem os lugares de poder. E, como
conseqüência óbvia, a forma da distribuição dos recursos e da reprodução nos
termos estudados por Pierre Bourdieu. Não é apenas uma questão de escolha
teórica. Longe disto. Há também o uso do discurso dos estudos culturais, dos
estudos de gênero e outros como forma de autoconsagração. Atuação magistral no
campo da retórica. Mas que não se aplica às regras de seleção dos novos
professores. O fato concreto é que não há nenhuma disposição para alterar este
quadro e basta dar uma olhada nos resultados de concursos recentes para
confirmar este texto.
Melhor seria se permanecessem as
cátedras. É uma ironia. Mas pouparia muito sofrimento aos que entram em
concursos com 50 candidatos e aceitam regras que jamais os incluirão. Que
sequer explicarão a diferença de décimos que os colocou em segundo lugar (estas
explicações nunca poderão ser dadas, pois democratizariam o processo). Quanto a
mim, que furei o bloqueio sem qualquer obtenção de justiça em nenhum destes
lugares, seguirei na disputa pelos sentidos do mundo. Porque não se pode
acreditar em uma ciência sem dissenso e fenotipicamente homogênea. Eu estive
prestes a dedicar este texto a quatro professores ... mas percebi que seria
injusto não completar a lista. E o texto já está longo demais. Além disto, não
faz mais diferença.
* Socióloga. Professora Associada à
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Chefe do
Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (LESCE/CCH/UENF) e
Presidenta da Associação de Docentes da UENF (ADUENF).
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