Regimes
previdenciários: a última fronteira do capital financeiro?
Por Paulo Sérgio Ribeiro
Cada país
possui um regime previdenciário ou algo que o valha. Grosso modo, um regime
previdenciário nada mais é do que um conjunto de regras com o qual se garante às pessoas um seguro diante dos riscos sociais.
O que
viriam a ser “riscos sociais”? Nossa legislação dedicada à Seguridade Social
reconhece a incapacidade física, parcial ou absoluta, o desemprego
involuntário, a doença, os acidentes de trabalho, a velhice, a maternidade, a
prisão e a morte como riscos para os quais é devida uma responsabilização
coletiva.
Como
ocorre essa “responsabilização” no Brasil? Temos um sistema protetivo, a
chamada Seguridade Social, que compreende três ramos: Saúde, Assistência Social
e Previdência Social. O último tem sido alvo de muita controvérsia desde o
golpe de 2016, quando a reforma da previdência voltou a ser a ordem do dia.
Do que se
trata a Previdência Social ou, noutros termos, de qual regime previdenciário
estamos falando? Em verdade, há dois regimes (modelos) previdenciários no
Brasil: o modelo de repartição simples, de caráter obrigatório e contributivo,
que espelha os objetivos fundamentais da República; e o modelo de
capitalização, também denominado de Previdência Complementar, de caráter
facultativo.
Esquematicamente:
Por que
“repartição simples”? Porque se dividem entre os contribuintes da Previdência
Social as despesas com o pagamento dos benefícios em manutenção, com vistas a
garantir arrecadação suficiente e necessária para supri-los em determinado
período. Na repartição simples, temos o chamado pacto entre gerações: a geração
atual (trabalhadores ativos) contribui para o custeio dos benefícios
previdenciários da geração passada (trabalhadores inativos) e, por sua vez,
terá os seus benefícios assegurados pelas novas gerações de trabalhadores que
ingressarem nos regimes públicos de previdência. Quando se alcança uma equação
favorável entre natalidade e longevidade, de um lado, e taxa de emprego formal,
de outro, obtém-se um círculo virtuoso nesse pacto intergeracional.
Por que
“caráter obrigatório e contributivo”? Porque a porta de entrada, por assim
dizer, naqueles regimes públicos de previdência é o exercício de atividade
remunerada lícita. No RGPS, seus contribuintes obrigatórios são trabalhadores
submetidos à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) ou àquilo que “sobrou”
dela após a reforma trabalhista imposta pelo governo ilegítimo de Michel Temer;
no RPPS, seus contribuintes são servidores públicos, ativos e inativos, e
pensionistas da União, bem como dos estados-membro e municípios que instituam
seus próprios regimes previdenciários.
Há uma
conexão de sentido entre os atributos da Previdência Social brasileira –
“repartição simples” e “caráter obrigatório e contributivo” –, quando
enxergamos a complementaridade entre um princípio fundamental da República, a
solidariedade, e o princípio constitucional da equidade inerente a Seguridade
Social. Ivan Kertzman (2011, p.48) assim esclarece o princípio da
solidariedade:
A solidariedade do sistema previdenciário obriga
contribuintes a verterem parte de seu patrimônio para o sustento do regime
protetivo, mesmo que nunca tenham a oportunidade de usufruir dos benefícios e
serviços oferecidos.
Cobram-se
tributos proporcionais à capacidade econômica do contribuinte e prestam-se
benefícios e serviços a quem realmente necessitar, realizando-se assim justiça
no caso concreto (equidade). Nas palavras de Kerztman (op. cit., 53-54):
[...] deve-se cobrar mais contribuições de quem tem
maior capacidade de pagamento para que se possa beneficiar os que não possuem
as mesmas condições.
Desnecessário
dizer que nem sempre se faz jus à equidade na Previdência Social, um tema para
outro texto.
Já o modelo de capitalização, relativo à Previdência
Complementar, é de caráter facultativo, oferecendo aos seus participantes
planos de benefícios na modalidade de contribuição definida. Esse regime
previdenciário pode ter tanto natureza pública quanto privada.
No primeiro caso - natureza pública -, são abrangidos
servidores públicos de cargo efetivo por intermédio de entidades fechadas de
previdência complementar instituídas por lei de iniciativa do Poder Executivo
do respectivo ente federativo.
No segundo - natureza privada -, contemplam-se: a)
membros ou colaboradores de uma empresa ou entidade que aderirem ao regime de
previdência complementar organizado por entidades fechadas de previdência
privada. Estas atuam de maneira autônoma em relação ao regime público (RGPS) e têm
por fundamento a constituição de reservas que garantam o benefício contratado;
e b) qualquer pessoa que se vincule a um regime de previdência complementar por
meio da aquisição de um plano de capitalização ofertado por uma instituição
financeira. Neste caso, trata-se de um regime de previdência complementar
aberto.
No que tange a esses regimes previdenciários, o que
está proposto na reforma previdenciária do Governo Bolsonaro? Propõe-se a
obrigatoriedade do modelo de capitalização para os trabalhadores(as),
impelindo-os(as) a fazer uma poupança para a velhice por sua conta e risco.
Dito de outro modo, romper-se-ia de vez com o pacto
entre gerações, pois a aposentadoria estaria circunscrita a uma noção de responsabilização
individual: quem, conforme sua capacidade contributiva, puder financiar a própria aposentadoria durante sua vida laborativa, faça-o e, pasme, sem reclamar das
variáveis em jogo para gozar futuramente do benefício, notadamente a taxa de juros que dita a rentabilidade dos recursos
investidos - uma primazia do mercado financeiro cujas organizações conduzirão o modelo de
capitalização, confirmando assim o velho adágio de que a miséria só acaba no dia em que parar de dar lucro...
Para Patrícia Pelatieri[1],
coordenadora de pesquisas do DIEESE[2],
estaríamos diante de uma verdadeira reforma estrutural a exigir não um processo
legislativo ordinário, mas uma tormentosa Assembleia Constituinte, dada a
contrariedade que a Proposta de Emenda Constitucional nº 6/2019 - a PEC da
previdência - apresenta em relação ao capítulo reservado à Seguridade Social na
Constituição de 88.
Considerando os interesses em disputa, haverá
linhas de defesa suficientes para suportar as “invasões bárbaras” da elite financeira nos fundos públicos da Seguridade Social?
A ver.
[1] https://www.brasildefato.com.br/2019/02/25/pesquisadora-do-dieese-explica-por-que-so-os-bancos-ganham-com-a-pec-da-previdencia/
[2]
Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.
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