sábado, 2 de março de 2019

Regimes previdenciários: a última fronteira do capital financeiro?

Regimes previdenciários: a última fronteira do capital financeiro?

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Cada país possui um regime previdenciário ou algo que o valha. Grosso modo, um regime previdenciário nada mais é do que um conjunto de regras com o qual se garante às pessoas um seguro diante dos riscos sociais.

O que viriam a ser “riscos sociais”? Nossa legislação dedicada à Seguridade Social reconhece a incapacidade física, parcial ou absoluta, o desemprego involuntário, a doença, os acidentes de trabalho, a velhice, a maternidade, a prisão e a morte como riscos para os quais é devida uma responsabilização coletiva.

Como ocorre essa “responsabilização” no Brasil? Temos um sistema protetivo, a chamada Seguridade Social, que compreende três ramos: Saúde, Assistência Social e Previdência Social. O último tem sido alvo de muita controvérsia desde o golpe de 2016, quando a reforma da previdência voltou a ser a ordem do dia.

Do que se trata a Previdência Social ou, noutros termos, de qual regime previdenciário estamos falando? Em verdade, há dois regimes (modelos) previdenciários no Brasil: o modelo de repartição simples, de caráter obrigatório e contributivo, que espelha os objetivos fundamentais da República; e o modelo de capitalização, também denominado de Previdência Complementar, de caráter facultativo.

Esquematicamente:
Por que “repartição simples”? Porque se dividem entre os contribuintes da Previdência Social as despesas com o pagamento dos benefícios em manutenção, com vistas a garantir arrecadação suficiente e necessária para supri-los em determinado período. Na repartição simples, temos o chamado pacto entre gerações: a geração atual (trabalhadores ativos) contribui para o custeio dos benefícios previdenciários da geração passada (trabalhadores inativos) e, por sua vez, terá os seus benefícios assegurados pelas novas gerações de trabalhadores que ingressarem nos regimes públicos de previdência. Quando se alcança uma equação favorável entre natalidade e longevidade, de um lado, e taxa de emprego formal, de outro, obtém-se um círculo virtuoso nesse pacto intergeracional.

Por que “caráter obrigatório e contributivo”? Porque a porta de entrada, por assim dizer, naqueles regimes públicos de previdência é o exercício de atividade remunerada lícita. No RGPS, seus contribuintes obrigatórios são trabalhadores submetidos à Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) ou àquilo que “sobrou” dela após a reforma trabalhista imposta pelo governo ilegítimo de Michel Temer; no RPPS, seus contribuintes são servidores públicos, ativos e inativos, e pensionistas da União, bem como dos estados-membro e municípios que instituam seus próprios regimes previdenciários.

Há uma conexão de sentido entre os atributos da Previdência Social brasileira – “repartição simples” e “caráter obrigatório e contributivo” –, quando enxergamos a complementaridade entre um princípio fundamental da República, a solidariedade, e o princípio constitucional da equidade inerente a Seguridade Social. Ivan Kertzman (2011, p.48) assim esclarece o princípio da solidariedade:

A solidariedade do sistema previdenciário obriga contribuintes a verterem parte de seu patrimônio para o sustento do regime protetivo, mesmo que nunca tenham a oportunidade de usufruir dos benefícios e serviços oferecidos.

Cobram-se tributos proporcionais à capacidade econômica do contribuinte e prestam-se benefícios e serviços a quem realmente necessitar, realizando-se assim justiça no caso concreto (equidade). Nas palavras de Kerztman (op. cit., 53-54):

[...] deve-se cobrar mais contribuições de quem tem maior capacidade de pagamento para que se possa beneficiar os que não possuem as mesmas condições.

Desnecessário dizer que nem sempre se faz jus à equidade na Previdência Social, um tema para outro texto.


Já o modelo de capitalização, relativo à Previdência Complementar, é de caráter facultativo, oferecendo aos seus participantes planos de benefícios na modalidade de contribuição definida. Esse regime previdenciário pode ter tanto natureza pública quanto privada.

No primeiro caso - natureza pública -, são abrangidos servidores públicos de cargo efetivo por intermédio de entidades fechadas de previdência complementar instituídas por lei de iniciativa do Poder Executivo do respectivo ente federativo.

No segundo - natureza privada -, contemplam-se: a) membros ou colaboradores de uma empresa ou entidade que aderirem ao regime de previdência complementar organizado por entidades fechadas de previdência privada. Estas atuam de maneira autônoma em relação ao regime público (RGPS) e têm por fundamento a constituição de reservas que garantam o benefício contratado; e b) qualquer pessoa que se vincule a um regime de previdência complementar por meio da aquisição de um plano de capitalização ofertado por uma instituição financeira. Neste caso, trata-se de um regime de previdência complementar aberto.

No que tange a esses regimes previdenciários, o que está proposto na reforma previdenciária do Governo Bolsonaro? Propõe-se a obrigatoriedade do modelo de capitalização para os trabalhadores(as), impelindo-os(as) a fazer uma poupança para a velhice por sua conta e risco. 

Dito de outro modo, romper-se-ia de vez com o pacto entre gerações, pois a aposentadoria estaria circunscrita a uma noção de responsabilização individual: quem, conforme sua capacidade contributiva, puder financiar a própria aposentadoria durante sua vida laborativa, faça-o e, pasme, sem reclamar das variáveis em jogo para gozar futuramente do benefício, notadamente a taxa de juros que dita a rentabilidade dos recursos investidos - uma primazia do mercado financeiro cujas organizações conduzirão o modelo de capitalização, confirmando assim o velho adágio de que a miséria só acaba no dia em que parar de dar lucro...

Para Patrícia Pelatieri[1], coordenadora de pesquisas do DIEESE[2], estaríamos diante de uma verdadeira reforma estrutural a exigir não um processo legislativo ordinário, mas uma tormentosa Assembleia Constituinte, dada a contrariedade que a Proposta de Emenda Constitucional nº 6/2019 - a PEC da previdência - apresenta em relação ao capítulo reservado à Seguridade Social na Constituição de 88. 

Considerando os interesses em disputa, haverá linhas de defesa suficientes para suportar as “invasões bárbaras” da elite financeira nos fundos públicos da Seguridade Social?

A ver.

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