domingo, 15 de dezembro de 2019

Relevem, leitores


Relevem, leitores

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Haverá algo mais batido do que escrever sobre a dificuldade de... escrever? Ou, dito de outro modo, artifício bem surrado esse de testemunhar o vazio existencial que, vez ou outra, assalta todo aquele que empresta sua testa para ofertar mal tracejadas linhas a quem interessar.

Fato é que estive um tempo fora como quem vai ali comprar cigarros. Definitivamente, isso não se faz.

Relevem, caros leitores (provavelmente, dois ou três) por tamanha negligência. Um saudoso e, não menos, cáustico cronista da blogsfera campista certa vez disse que era “bissexto” na periodicidade de minhas publicações. Vá lá, tivesse razão. Ainda assim, desculpas de nada valem sem, digamos, uma renovação de votos com o “trio” leitor que até então dedicava generosa atenção a este aprendiz de publicista.

Apesar do prazer incomunicável de escrever ser um leitmotiv do trabalho intelectual, há neste um estado de compromisso, caso reconheçamos que, antes de ser happening, trata-se de um estar no mundo inerente àquele que (teimosamente?) atribui às ciências sociais um sentido de missão pública.

Sem ilusões: a noção de “público” aqui é prenhe de consequências.

Na acepção “clássica” do termo que a filósofa alemã Hannah Arendt[1] sumariou em referência à pólis grega, domínio público constituía um espaço de relações entre homens que eram livres, na medida em que se associavam para disputar a excelência do melhor argumento sobre seu destino comum e, iguais, uma vez que assumia-se que a comunidade política assim estabelecida teria por fundamento a força da persuasão no lugar da violência pura e simples.

Desnecessário dizer que a persuasão nem sempre paga tributos à lógica interna de um argumento baseado em juízos de fato e, não menos, que não faltam acusações (nem sempre justas, a meu ver) à Arendt por uma suposta idealização da ágora ateniense em face do caráter restrito do status político dos seus partícipes: mulheres, escravos e estrangeiros não tinham voz nem vez na cidade-Estado.

De todo modo, vale reter do seu diagnóstico sobre a modernidade pós-Auschwitz aquilo que nos faculta de modo único uma condição humana: a capacidade de “governar a si mesmo” quando agimos na presença de outros.

Nem a privatividade do espaço doméstico – reino da necessidade, por excelência – nem o espaço público organizado para as trocas comerciais decorrentes daquela necessidade – que confirma o cativeiro que alimentar continuamente um corpo relega aos meros mortais – podem substituir, por completo, a liberdade passível de se viver no seio da esfera pública: não estar sujeito à pressão imediata pela sobrevivência, assim como não ser servo nem senhor de alguém.

Afinal, quem são meus pares? Procurá-los confirma-me que estou “condenado” a ser livre.

Se agir livremente não se realiza sem a companhia de outros, então admitimos que nossas volições tomam forma em um espaço intermediário, isto é, em um mundo que, apesar de comum a todos, tanto nos agrega quanto nos divide. Estimados três leitores, dar de cara com essa obviedade foi, para mim, um mergulhar no escuro que é mudar de cidade/região. Outras paisagens, outros códigos, outro horizonte ou, quiçá, a falta do mesmo, já que em Minas, assim diz um querido colega de trabalho, sempre há um morro a limitar nossa visão.

Sem recair aqui em determinismos geográficos, confesso que uma metáfora me compraz: sou um homem da planície e, como tal, sinto falta de olhar além do horizonte... Reabilitar um senso de realidade leva tempo e toma espaço. Por isso, quem sabe, tenha me retirado para dentro de mim mesmo em reverência à geografia da zona da mata mineira.

O que escrevemos para o público não nos pertence, mesmo que aparente ser uma motivação de foro íntimo.

Se escrever a partir das ciências sociais implica um senso de pertencimento à sua história, havemos de assegurar, através deste blog, uma porta aberta aos(às) interlocutores(as) que creditem à tarefa de pensar sociologicamente outras realidades possíveis que não sacrifiquem o domínio comum de nossas existências aos tantos oportunismos de ocasião que assolam a comunicação na dita “Era da Pós-Verdade”.

Compromisso assumido, tentarei ser mais regular nas publicações, ainda que 2020 seja um ano bissexto...

Saudações aos navegantes.

Obs.: O título inicial deste texto era "Escusas aos leitores", mas eis que mais de um amigo sinalizou que tal expressão é usada habitualmente por um certo juiz de Curitiba que sapateia em cima dos direitos fundamentais e assassina vez sim e outra também o Português. Sendo assim, peço desculpas mais uma vez.

[1] Cf. ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.

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