Da janela de Isabel*
As chuvas desta semana trouxeram inúmeros transtornos para o Estado do Rio de Janeiro. Como é de costume, as questões ambientais costumam afetar de maneira desigual diferentes estratos da população – os transtornos causados por um mesmo índice pluviométrico são maiores nas periferias das cidades que nas áreas nobres. A questão é que,nas periferias, os problemas ambientais costumam ser adicionados a diversos problemas sociais. Como se não bastasse a precariedade das redes de esgoto, a falta de calçamento, a poluição de córregos, a coleta de lixo deficitária, o transporte público sucateado e outras coisas mais, ainda podem surgir questões de outra ordem. Explicarei. Com o advento das redes sociais, ficou muito simples acompanhar, mesmo que a distância, questões decotidianos diversos. Durante os últimos dias, tenho acompanhado as postagens – de textos e vídeos – de uma de minhas melhores alunas, Isabel, moradora da periferia de São Gonçalo. A princípio, suas postagens estavam tratando dos problemas causados pelas chuvas na região. Da janela de Isabel, era possível ver a chuva cair e alagar o Salgueiro. Na quinta-feira, o cenário, que já estava suficientemente complicado, recebeu um ingrediente a mais: uma operação policial para “combater o tráfico de drogas”. Eis que os vídeos de Isabel passaram a expor um helicóptero sobrevoando as casas. Os inúmeros tiros disparados marcavam as imagens e despertavam a angústia de quem se dava conta de que não era possível ter qualquer previsibilidade sobre o destino dos projéteis: uma barbárie sanguinolenta fantasiada de “combate à criminalidade”. Uma política pública de segurança que despreza a segurança de trabalhadores, trabalhadoras, jovens e crianças, é uma falácia que exibe o desprezo do Estado brasileiro em relação à vida das parcelas mais pobres. Nada disso é novidade, é apenas a conhecida política de extermínio que já ceifou a vida de inúmeros inocentes, promovendo um sadismo classista de Estado. A janela de Isabel não tem vista para o mar, mas tem uma vista privilegiada do que é o Estado brasileiro e do que é o Estado de exceção que vivemos.
Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.
*Texto publicado no Jornal Folha da Manhã em 18 de Janeiro de 2020.
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