quinta-feira, 9 de abril de 2020

Covid-19: um teste à resiliência dos Estados nacionais? (parte 1)

                                                                                                    Fonte: Foco Magazine (aqui).

Covid-19: um teste à resiliência dos Estados nacionais? (parte 1)

Paulo Sérgio Ribeiro

A epidemia do Covid-19 nos conduz ao debate sobre a globalização, uma expressão usual para designar uma gama de fenômenos que confere fisionomia própria à Modernidade, tendo sido popularizada há alguns anos no noticiário e estimulando desde então variadas abordagens teóricas sobre sua gênese no século XVI e desdobramentos no século XXI.

A interdependência sem precedentes dos povos, longe de ter feito do planeta um território comum, coloca-os diante de problemas inerentes à dinâmica de um mercado mundial que, entregue ao imperativos da acumulação capitalista, mostra-se incapaz de oferecer-lhes um fator de coesão, mesmo quando o que está em jogo é a sobrevivência do homo sapiens.

Longe de me fazer “apocalíptico”, é realmente perturbador enxergar os limites estreitos dos esforços empregados pelos Estados nacionais para salvaguardar pessoas quando deparamos com um cenário crítico para a saúde coletiva que atravessa fronteiras, quiçá, com velocidade tão vertiginosa quanto a das transações full time no mercado financeiro.

Contudo, é uma questão em aberto a resiliência do Estado nacional face às consequências imprevisíveis de uma modernidade que, paradoxalmente, sedimentou aquela relação de dominação; consequências as quais, como bem apontou George Gomes Coutinho em seu último texto (aqui), tendem a se intensificar com a sociedade de risco, esta prima facie do processo de globalização.

A perspectiva aqui adotada é fruto da interlocução com a filósofa francesa Catherine Colliot-Thélène, notadamente em seu artigo “O conceito de política posto à prova pela mundialização”[1], disponível na plataforma Scielo (aqui). Quais coordenadas analíticas Colliot-Thélène nos dispõe? Se as seguirmos, qual seria a localização da política e suas potenciais virtualidades quando se exige dos Estados nacionais o cumprimento de certas prerrogativas dentro de uma situação-limite como a que vivemos?

Em um momento que antecedera em quase uma década o crash de 2008, Colliot-Thélène indicava a crise de legitimidade dos regimes políticos ocidentais como sintomática do declínio de uma figura histórica determinada: o Estado Bem-Estar Social, que tomara corpo no pós-guerra e, por seu turno, indaga se a incapacidade de manter o escopo de sua política social pode ou não ser derivada de uma “transformação mais fundamental”[2], a saber, o deslocamento das instâncias de decisão para além de uma esfera do poder em torno da qual se articulava o conceito de política em sua acepção moderna: a soberania estatal.

Àqueles que decretam a perda de soberania dos Estados no atual estágio do processo de globalização, Colliot-Thélène faz duas ponderações. A primeira, de natureza factual: ainda que vigorem instâncias políticas e econômicas supranacionais (ONU, FMI entre outros) com poder de influência sobre a política interna dos países, não há necessariamente uma transferência de competências típicas dos Estados nacionais a novos poderes políticos, sejam estes regionais, supranacionais ou transnacionais.

Não obstante, ressalva a filósofa, ratificar tais competências ou funções estatais como insubstituíveis per se pouco ou nada diz sobre o atributo de soberania do poder estatal, considerando que este torna-se efetivo em sua dimensão propriamente simbólica: a integração e coesão sociais dentro de um território, antes de serem asseguradas pela coerção estatal pura e simples (poder de polícia), dependem de um senso de pertencimento a uma comunidade cuja orientação normativa seja a igualdade de direitos ou, simplesmente, de uma “identidade cidadã”.

A segunda ponderação é teórica e nos permite compreender como se constrói tal senso de pertencimento e, sobretudo, as prováveis implicações da sua corrosão. É instigante o modo como Colliot-Thélène se antecipa a um eventual rótulo de “estatólatra”. A seu ver, a centralidade do poder conferida por Weber à definição de política (um fio condutor de sua análise) não desmente a complexidade do espaço público – as disputas de narrativa em foros de opinião pública que pautam a ordem do dia - e o papel construtivo das lutas sociais – a participação organizada ou voluntarista das massas na resistência às decisões governamentais – como linhas demarcatórias da ação estatal.

Colliot-Thélène lembra-nos apenas o que nem sempre é tão óbvio assim: o Estado continua sendo uma instância de decisão, na medida em que possui a capacidade de organizar a política ao intervir nas redes de sociabilidade, as regulando e hierarquizando, ou, dito de outro modo, porque dele se exige tal capacidade quando “interpelado por indivíduos, grupos e coletivos, permanentes ou provisórios, que o fazem destinatário de seus protestos e reivindicações”[3]. Ora, até mesmo nossos liberais dublês de revisionistas, que flertam com o keynesianismo em seus prognósticos sobre a débacle econômica no Brasil, o confirmam.

Parafraseando Sigmund Freud[4], qual será o futuro desta formidável abstração chamada Estado moderno e qual a pertinência de responder a isso em uma época de tantas incertezas sob o espectro do Covid-19? Na segunda parte do texto, prossigo o diálogo com Colliot-Thélène, delineando, para os nossos próprios fins, aquilo que a filósofa francesa sinaliza como uma tensão entre a “socialidade estatal” e os processos sem sujeitos que defrontam a política com o beijo de morte da globalização.


[1] Cf. COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. O conceito de política posto à prova pela mundialização. Revista de Sociologia e Política, nº 12, 1999, pp.7-20.
[2] Op. cit., p. 8.
[3] Ibid., p. 10.
[4] FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. In: _______. Freud. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.85-128 (Coleção “Os Pensadores”).

Nenhum comentário:

Postar um comentário