Fonte: Foco Magazine (aqui).
Covid-19: um teste à resiliência dos
Estados nacionais? (parte 1)
Paulo
Sérgio Ribeiro
A epidemia do Covid-19 nos conduz ao
debate sobre a globalização, uma expressão usual para designar uma gama de
fenômenos que confere fisionomia própria à Modernidade, tendo sido popularizada
há alguns anos no noticiário e estimulando desde então variadas abordagens teóricas sobre
sua gênese no século XVI e desdobramentos no século XXI.
A interdependência sem precedentes dos
povos, longe de ter feito do planeta um território comum, coloca-os diante de
problemas inerentes à dinâmica de um mercado mundial que, entregue ao
imperativos da acumulação capitalista, mostra-se incapaz de oferecer-lhes um
fator de coesão, mesmo quando o que está em jogo é a sobrevivência do homo
sapiens.
Longe de me fazer “apocalíptico”, é
realmente perturbador enxergar os limites estreitos dos esforços empregados
pelos Estados nacionais para salvaguardar pessoas quando deparamos com um
cenário crítico para a saúde coletiva que atravessa fronteiras, quiçá, com
velocidade tão vertiginosa quanto a das transações full time no mercado
financeiro.
Contudo, é uma questão em aberto a resiliência do Estado nacional
face às consequências imprevisíveis de uma modernidade que, paradoxalmente,
sedimentou aquela relação de dominação; consequências as quais, como bem
apontou George Gomes Coutinho em seu último texto (aqui), tendem a se
intensificar com a sociedade de risco, esta prima facie do
processo de globalização.
A perspectiva aqui adotada é fruto da interlocução com a filósofa
francesa Catherine Colliot-Thélène, notadamente em seu artigo “O conceito de
política posto à prova pela mundialização”[1],
disponível na plataforma Scielo (aqui). Quais
coordenadas analíticas Colliot-Thélène nos dispõe? Se as seguirmos, qual seria
a localização da política e suas potenciais virtualidades quando se exige dos
Estados nacionais o cumprimento de certas prerrogativas dentro de uma
situação-limite como a que vivemos?
Em um momento que antecedera em quase uma década o crash de 2008, Colliot-Thélène indicava
a crise de legitimidade dos regimes políticos ocidentais como sintomática do
declínio de uma figura histórica determinada: o Estado Bem-Estar Social, que
tomara corpo no pós-guerra e, por seu turno, indaga se a incapacidade de manter
o escopo de sua política social pode ou não ser derivada de uma “transformação
mais fundamental”[2],
a saber, o deslocamento das instâncias de decisão para além de uma esfera do
poder em torno da qual se articulava o conceito de política em sua acepção
moderna: a soberania estatal.
Àqueles
que decretam a perda de soberania dos Estados no atual estágio do processo de
globalização, Colliot-Thélène faz duas ponderações. A primeira, de natureza
factual: ainda que vigorem instâncias políticas e econômicas supranacionais
(ONU, FMI entre outros) com poder de influência sobre a política interna dos
países, não há necessariamente uma transferência de competências típicas dos
Estados nacionais a novos poderes políticos, sejam estes regionais, supranacionais
ou transnacionais.
Não
obstante, ressalva a filósofa, ratificar tais competências ou funções estatais
como insubstituíveis per se pouco ou
nada diz sobre o atributo de soberania do poder estatal, considerando que este
torna-se efetivo em sua dimensão propriamente simbólica: a integração e coesão sociais
dentro de um território, antes de serem asseguradas pela coerção estatal pura e
simples (poder de polícia), dependem de um senso de pertencimento a uma comunidade
cuja orientação normativa seja a igualdade de direitos ou, simplesmente, de uma
“identidade cidadã”.
A
segunda ponderação é teórica e nos permite compreender como se constrói tal
senso de pertencimento e, sobretudo, as prováveis implicações da sua corrosão.
É instigante o modo como Colliot-Thélène se antecipa a um eventual rótulo de
“estatólatra”. A seu ver, a centralidade do poder conferida por Weber à
definição de política (um fio condutor de sua análise) não desmente a complexidade
do espaço público – as disputas de narrativa em foros de opinião pública que
pautam a ordem do dia - e o papel construtivo das lutas sociais – a participação
organizada ou voluntarista das massas na resistência às decisões governamentais
– como linhas demarcatórias da ação estatal.
Colliot-Thélène
lembra-nos apenas o que nem sempre é tão óbvio assim: o Estado continua sendo
uma instância de decisão, na medida em que possui a capacidade de organizar a
política ao intervir nas redes de sociabilidade, as regulando e hierarquizando,
ou, dito de outro modo, porque dele se exige tal capacidade quando “interpelado
por indivíduos, grupos e coletivos, permanentes ou provisórios, que o fazem
destinatário de seus protestos e reivindicações”[3]. Ora,
até mesmo nossos liberais dublês de revisionistas,
que flertam com o keynesianismo em seus prognósticos sobre a débacle econômica no
Brasil, o confirmam.
Parafraseando
Sigmund Freud[4],
qual será o futuro desta formidável abstração chamada Estado moderno e qual a
pertinência de responder a isso em uma época de tantas incertezas sob o
espectro do Covid-19? Na segunda parte do texto, prossigo o diálogo com Colliot-Thélène, delineando, para os nossos próprios
fins, aquilo que a filósofa francesa sinaliza como uma tensão entre a “socialidade
estatal” e os processos sem sujeitos que defrontam a política com o beijo de morte da globalização.
[1] Cf. COLLIOT-THÉLÈNE, Catherine. O conceito de política
posto à prova pela mundialização. Revista
de Sociologia e Política, nº 12, 1999, pp.7-20.
[2] Op. cit., p. 8.
[3] Ibid., p. 10.
[4]
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. In: _______. Freud. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.85-128 (Coleção “Os
Pensadores”).
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