Do reacionarismo para a imaginação política interditada
Do reacionarismo para a imaginação política interditada
George Gomes Coutinho
Carreatas da
morte. Pessoas de verde e amarelo nas ruas e praças bradando contra medidas de
distanciamento social. Berram contra governadores e prefeitos que consideram corruptos,
isso a despeito de ostentarem a insígnia da invariavelmente suspeita CBF no
peito. Consideram que a economia deve ser protegida übber alles como diria aquele slogan famoso. As mortes e o
sofrimento são fatalidades incontornáveis do destino. “E daí?” não é mesmo?
Buscam um remédio a todo custo. Pode ser chá
de boldo ou cloroquina. Afinal, se há remédio não há razão para que as pessoas
fiquem em casa. Em meio a tudo isso discursos de ódio xenofóbicos. Há um “vírus
chinês” e tudo o mais que lhe seja correlato, seja o próprio povo ou o Partido
Comunista, deve ser encarado com nojo, desprezo ou violência.
Sem dúvida temos acima fragmentos da atuação
da extrema-direita que grassa no Brasil da Pandemia de Covid-19. Concordando
com Ribeiro da Silva Jr (aqui) há a indiscutível presença do reacionarismo ou
aquilo que Lynch já chamou de “conservadorismo culturalista” com fortes tintas
autoritárias e anti-liberais. Há o que podemos definir como uma extrema-direita
militante, organizada e dotada de alguma clareza ideológica sobre os seus
valores, ideais, elementos simbólicos e normativos que devem constituir um
projeto de Brasil para este século XXI.
Mas, vamos tentar supor que
nem todos e todas que tenham ido para as ruas protestar nestes tempos de distanciamento
social estejam organicamente vinculados a um projeto autoritário e reacionário
de poder. Nas eleições de 2018 conhecemos o desconcertante voto “BolsoLula” ou
“LulaNaro”
onde a genuína busca por “melhorar a vida” fez com que parte do eleitorado fosse
capaz de votar no 13 e no 17 a despeito dos debates inerentes ao cipoal
ideológico. O que mobiliza este eleitorado é a aposta em obter incrementos
positivos, mesmo que conjunturais, apostando no rito e consequente sucessão
eleitoral como uma via para obtenção destes objetivos.
E se parte do
grupo raivoso presente nas ruas simplesmente sofrer do déficit de imaginação
política ante o enfrentamento, por um caminho humanista, totalizante e empático,
da pandemia? E se uma imaginação política pautada pela solidariedade for
interditada, combatida e até mesmo ridicularizada por determinados grupos e
setores que compõe a polifonia de nossa opinião pública?
O termo
imaginação política foi apresentado por Wanderley Guilherme dos Santos (1935-2019)
ainda na década de 1960.
Em última instância ele localizava, desde 1822, um conjunto de autores,
temáticas e obras onde o Brasil era imaginado em suas instituições, políticas,
modelos de governo, processos de auto-compreensão, etc.. Enfim, produção
espiritual que não se pode enquadrar propriamente como articulação teórica
sistemática, mas, animava e anima os debates e ações políticas concretas. São as
articulações de nossa cultura política que segue dos panfletos ao que podemos chamar
de “obras fundadoras”
do nosso processo de nation state
building. Produtos culturais de origem diversa que alimentam nossa opinião
pública.
Também é dado no campo da imaginação
política o repertório do debate onde o possível
se apresenta. E o impossível também.
É importante
notar que parte dos grupos que vão para as ruas em plena pandemia protestar
contra as medidas de distanciamento recomendadas pela Organização Mundial de
Saúde talvez façam desta forma por simplesmente não vislumbrarem outra
alternativa. Para ser mais preciso, não lhes foi dada uma alternativa concreta
e segura para a manutenção de sua própria sobrevivência. Seja enquanto política
pública ou por conta de um debate político interditado.
A imaginação política acerca das políticas
sociais e assistenciais por parte dos setores dos dois lados do espectro
político sempre foi crítica. Não seria diferente em nossa conjuntura, por mais
chocante que possa soar. Estes do lado destro
da política brasileira são os grupos que se encontram atuando no Governo
Federal e em outros níveis de governo, em parte do mainstream da imprensa em jornais, revistas e TV. Também encontram
representantes em associações empresariais, no setor financeiro, dentre
economistas profissionais, etc.. Para estes qualquer ação remotamente dotada de
natureza redistributivista é vista em perspectivas diferenciadas que se
complementam em termos práticos: desde reduzidas a um mínimo constrangedor sob
o argumento da racionalização fiscalista, o tal cobertor curto, até serem
combatidas por gerarem um suposto desincentivo ao trabalho. Por vezes políticas
sociais e assistenciais são até mesmo satanizadas e seus usuários
estigmatizados.
Estas
disposições que explicam parte da constelação que forma a nossa opinião pública
ajudam a entender o caminho acidentado de nossa Renda Básica Emergencial.
Primeiramente sequer era algo concebível. Depois se apresentou em sua faceta
esquálida, os famosos R$ 200,00 da
equipe de Paulo Guedes. Por fim, após os já tradicionais e persistentes embates
entre legislativo e executivo no Governo Bolsonaro, chegamos aos R$ 600,00 em 3
parcelas mensais, algo que ainda não
soluciona a questão.
O design da política pública foi feito para repelir os
setores mais vulnerabilizados da sociedade: 1) aqueles que não detém cidadania
formal no mercado (não são portadores de cidadania bancária digamos assim); 2)
não detém a documentação necessária (não são reconhecidos formalmente pelo
Estado); 3) não são “nativos digitais” (apresentam todas as dificuldades
formais e concretas para que obtenham uma cidadania digital plena). Por conta dos
motivos elencados há o risco de termos 7,4 milhões brasileiros elegíveis para
este política pública sem qualquer cobertura.
Uma tragédia.
Dificuldades
não menos relevantes podem ser indicadas quando falamos de micro e pequenos
empresários que não raro constituem a fauna das tais carreatas da morte.
Grupos que não tem caixa para aguentarem os meses de distanciamento social sem
o auxílio de algum tipo de linha de crédito que lhes permita, sob 0% de juros
ou taxas similares, manterem seus negócios e os empregos agregados. Na ausência
de uma efetiva política de crédito temos as alternativas que envolvem
dilapidar patrimônio, demissões, falências, etc. justamente de fatia do empresariado que
emprega trabalhadores formais e informais em grande monta. Mas, Guedes foi
enfático na reunião de abril, a tal reunião de horrores, onde afirmou: “Nós vamos ganhar dinheiro usando recursos públicos pra salvar
grandes companhias. Agora, nós vamos perder dinheiro salvando empresas
pequenininhas”.
Neste caso temos a demonstração de como funciona a imaginação política de
indivíduos e grupos mais próximos ao “andar de cima” da sociedade brasileira.
Em ambos os casos, seja nas expressões de nossa
imaginação política que criminalizam políticas sociais ou assistenciais ou na
preferência claramente expressa em prol do grande empresariado em detrimento de
micros e pequenos, temos a interdição da solidariedade. É uma imaginação
política que inviabiliza, até repele, qualquer tipo de medida de Welfare, de Bem-Estar Social. Seja por
conta de um repertório supostamente racionalizante ou no campo semântico que
considera políticas sociais, assistenciais ou até mesmo políticas econômicas
para pequenos empresários simplesmente uma baboseira.
Não é simples. Mas, inserir mecanismos de
solidariedade que envolvam práticas concretizadas em politicas públicas é parte do exercício de imaginação política que
diga que tipo de Estado-Nação queremos durante e após pandemia. É tarefa
urgente e civilizatória para o Brasil. Talvez seja um dos caminhos possíveis para
honrarmos o sofrimento coletivo que estamos vivenciando, incluso milhares de
mortes desnecessárias, onde a imaginação política interditada simplesmente se
demonstrou insuficiente para lidar com esta conjuntura.
As
criticas de parte do campo da extrema esquerda e da esquerda propriamente são
de outro teor, o que envolve, dentre outros apontamentos, o esmaecimento da
luta de classes. Não irei entrar nos meandros desta crítica neste momento pelo
simples fato de que estes grupos não se encontram com instrumentos de tomada de
decisão na conjuntura ao ponto de serem óbices ao enfrentamento adequado da
pandemia em suas consequências sociais e econômicas.
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