E eis que me peguei recorrendo ao meu fiel
amigo, o dicionário Houaiss, ansioso ao perceber-me incapaz de definir o que
vem a ser um “número”. Aquilo que é óbvio costuma esconder inúmeras (perdão
pelo trocadilho) armadilhas, pois revela apenas parte(s) de si, deixando o que
é crucial, muitas vezes, devidamente escondido ou – se preferir – subtraído da
fachada. Houaiss rapidamente revelou que minha dúvida sobre o significado da
palavra não era vã: dezenas são as acepções do substantivo masculino “número”.
A primeira delas, no entanto, parece ser a mais usual: “soma de todas as
unidades, dos elementos de uma série, conjunto etc”. Para quem, tal como eu,
possui conhecimentos limitados da Matemática, essa primeira acepção parece promissora,
mas quando cruzamos a matemática básica com nossas curiosidades
sócio-antropológicas, a primeira acepção do Houaiss começa a mostrar suas
insuficiências. A beleza numérica está em sua capacidade de abstração, pois o
número 1 pode ser usado tanto para representar a quantidade de sacos de cimento
para uma determinada tarefa quanto a quantidade de filhos que uma pessoa teve.
Em termos matemáticos, o número é perfeito, mas em termos antropológicos,
filosóficos e éticos, a situação pode ser diferente. Pois, nesse caso, a
igualdade da expressão numérica nem sempre se revela. Seguindo na pesquisa
etimológica, encontrei no verbo “numerar” alguma luz para as questões que me
afligiam: “pôr números em” algo, ou “dispor em ordem numérica”. Os números e a
numeração, nesse sentido, podem ser pensados como meios de classificação e
ordenamento do mundo. São instrumentos para racionalizar o universo, tornar as
medidas possíveis e realizar a quantificação daquilo que, de outro modo,
pareceria mera desordem. Os números podem, assim, trazer a ordem e afastar o
caos. Ao mesmo tempo, os números podem ser formas rápidas e reduzidas de
quantificar o caos ordenado: são as cifras exorbitantes, os números
estarrecedores etc. Os números existem e são neutros, quem os transforma em
agentes sociais, com capacidades benéficas ou cruéis, são os humanos. Comecei a
pensar sobre o tema quando a contagem oficial, deveras subnotificada, de mortos
por Covid-19 no Brasil ultrapassou o número 5.000. Cinco mil. O número em si
diz pouco e muito ao mesmo tempo. Pois, quando falamos de 5.000 kg de arroz
estamos falando de algo que difere de 5.000 kg de ouro, do mesmo jeito que
difere do que entendemos e valoramos como 5.000 pessoas. Os números não são
culpados, mas aqueles que os distorcem ou subjugam são. Quando pensamos que
agora já temos mais de seis mil mortos por Covid-19, devemos lembrar que esses
números estão ligados a pessoas que faziam parte de inúmeras famílias que
permanecem vivas e despedaçadas. Essas famílias, que compõem um número de
pessoas que sou incapaz de calcular, possuem histórias, sonhos, projetos,
afetos, trabalhos e muitas outras coisas que dificilmente alguém conseguiria
traduzir em números. São famílias que perderam partes de si: pais, irmãos,
avós, tios, tias, mães, irmãs, avôs, maridos, esposas, filhos, filhas etc. As
estatísticas do Ministério da Saúde não quantificam as dores das perdas, do
mesmo modo que não quantificam a quantidade de erros que proporcionaram a
propagação do vírus e o aumento vertiginoso do número de mortes. Sabíamos desde
o início que o vírus se propagaria, que sua taxa de letalidade não ceifaria
mais que 10% dos contaminados e que as mortes seriam inevitáveis. Todavia,
medidas não foram tomadas para reduzir a contaminação e, assim, o número de
vítimas: pois o impacto seria menor se
os 10% de mortos fossem em um universo de dez mil e não de cem mil contaminados
– número que tende apenas a crescer. Entre números, erros e argumentações
néscias, o Governo Federal apresentou uma proposta de auxílio de R$200 para os
trabalhadores informais e a Câmara dos Deputados impôs um auxílio de R$600, o
que levou multidões de pessoas a agências bancárias, em filas desumanas que não
obedeceram o halo social de 1,5m e que multiplicaram as probabilidades de
contágio entre seus componentes, os bancários e todos os agentes envolvidos no
processo. R$600 foi o valor ofertado para saciar as necessidades básicas de
cerca de 45 milhões de pessoas que foram chamadas de “invisíveis” em um país
onde o salário “mínimo” é de R$1.045. São muitos números, todos eles abstratos,
mas capazes de despertar reflexões – também elas abstratas – sobre questões
muito concretas de nossas falhas humanas. Enquanto os números aumentam e se
sobrepõem para tentar ordenar e expressar a realidade que vivemos, deveríamos
tentar utilizá-los para preservar vidas; pois um discurso “patriótico” que
apenas considera bandeira e hinos, esquecendo-se da etimologia que liga
“patriótico” a “compatrício” – enfatizando que o sentimento mor está relacionado
à solidariedade entre as pessoas de uma mesma nação -, é algo que, se fosse
traduzido em números, encontraria o valor zero. O que faz uma pátria são seus
membros e não podemos dar de ombros quando perdemos um compatrício por falhas
de nossa gestão; tampouco podemos desconsiderar que o eleito para guiar a nação
expressou desprezo diante da morte de milhares de brasileiros e
brasileiras. Não há número que expresse
a dor de quem perdeu entes queridos nessa pandemia; tampouco existem números
capazes de expressar o absurdo de palavras proferidas pelo presidente diante do
número que contabilizava os mortos pela doença.
Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.
* Artigo publicado originalmente no site do Jornal Folha da Manhã, em 03 de Maio de 2020 - https://www.folha1.com.br/_conteudo/2020/05/artigos/1261005-carlos-valpassos-o-que-fazemos-com-esses-numeros.html
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