Sobre punks em SP e circulação/recepção
de ideias
*
George Gomes Coutinho
Recomendo muito
esse papo
entre João Gordo e Henry Bugalho. É extremamente interessante. Aborda inúmeras
questões da conjuntura. Mas, eu vou me centrar especialmente em um dos tópicos da
conversa: um pouco da história do movimento punk paulistano/paulista em seus
primeiros passos narrada por João, um dos protagonistas da cena.
Por isso o vídeo
pode interessar também para quem busca observar empiricamente as
particularidades da produção, circulação e recepção de elementos simbólicos,
movimentos culturais, doutrinas, teorias, ideais, expressões artísticas e
escolas filosóficas longe de seus contextos originais de criação. Na minha
perspectiva o relato de João fornece elementos até mesmo para um estudo de
caso.
O movimento punk
nasce no contexto anglo-saxão e recruta seus membros majoritariamente entre os
jovens do lumpen e da classe
trabalhadora e, em menor medida, entre classes médias e alta. O movimento, até mesmo por sua composição social,
tem um potencial contestatório por dar voz a grupos que não estavam necessariamente
inseridos integralmente na sociedade de consumo. O punk por esta razão nasce
precariamente anti-establishment tanto no momento proto punk (pré-1976) quanto no
seu momento de consolidação (de 1976 até os primeiros anos da década de 1980).
O revival dos anos 1990 até o presente
misturou bastante as coisas e indicou até mesmo a sua instrumentalização pelo
establishment por razões que se explicam também na origem do movimento. O
movimento é plástico por sua natureza.
Sendo movimento
originalmente juvenil não houve exatamente um discurso/conteúdo programático
que unificasse e conferisse sentido ou visão-de-mundo para todos os punks. Não
há um manifesto do partido punk internacionalista e tampouco um jargão do tipo
“punks de todo mundo uni-vos”.
O punk é um movimento dotado de caráter
estético, urbano, artístico permeado por uma atitude minimalista combinado com
intervenção direta (o famoso lema “
do it yourself”). Até mesmo a
precariedade de acesso material aos bens culturais e equipamentos dos filhos da
classe trabalhadora e do
lumpen
explica essa vocação do faça você mesmo. Especialmente os músicos em questão
não tinham acesso a estúdios caros, instrumentos
premium, não frequentavam escolas de arte
,
etc..
Falo, reitero,
de um movimento juvenil que combina atitude e expressividade . Disto temos uma
enorme plasticidade do movimento. Há punks que gravitam da extrema direita até
a extrema esquerda. Há punks existencialistas... Há influências do punk nas
artes plásticas, literatura, movimentos da sociedade civil....técnicas de
gravação, compreensão de mercado fonográfico, organizações não governamentais...
Straight edges, skins, SHARPS, anarcopunks.... São derivações e subderivações.
Se temos também
intelectuais reconhecidamente oriundos ou influenciados pelo movimento, estes
não conseguiram estruturar valorativamente ou normativamente a íntegra de sua
tribo. Daí encontrarmos sob a mesma rubrica a invasão dos punks na
pós-graduação dos países anglo-saxões
e, ao mesmo tempo, punks que são parte do hooliganismo. Há as derivações White Power nacionalistas ultra-conservadoras. Mas, como descreve de maneira
magistral Steven Blush em seu “American Hardcore”
,
a despeito dos supremacistas brancos, os punks das duas costas norte-americanas
foram talvez o único grupo coletivo persistente contra o neoliberalismo da era
Reagan. Pulverizado e persistente.
Voltando ao
Brasil, o papo de João Gordo com Henry Bugalho confirma essa diversidade
interpretativa fática sobre o movimento: os filhos do lumpen e da classe trabalhadora paulistana (João é filho de
metalúrgico), construíram sua própria
leitura do que era o movimento. Embora determinados agentes fossem informados culturalmente
do contexto original (ele cita desde o produtor Antônio Bivar até Redson, vocalista da banda Cólera), o movimento paulistano importou a estética e criou uma cultura que
transitava entre a ação das gangues e a delinquência.
A citação do
filme Warriors (no Brasil a tradução
do título é “Selvagens da Noite”) ilustra de
maneira exemplar o contexto cognitivo que estes jovens punks se inseriram para construir
a sua versão particular do movimento. Para além da imitação estética do
movimento compartilhada com outros punks de nacionalidades diferentes,
justamente eles compreendiam que o comportamento punk envolveria a disputa
violenta por território urbano. Isso por um filme, ora vejam, que nos chega
pelas mãos da TV Globo e era reprisado exaustivamente nos momentos de exibição
cinematográfica da emissora.
Este que vos
escreve se recorda de ter assistido ao tal filme citado por João um sem número
de vezes durante a infância. Contudo, não deixa de ser irônico que um movimento
que se auto-interpreta enquanto anti-establishment
tenha se informado justamente por uma TV que é em tudo representante do establishment no imaginário político e
social brasileiro.
Prosseguindo,
João reconhece que só mudou sua concepção sobre o que era ser punk na segunda
metade da década de 1980 no meio das turnês internacionais do Ratos de Porão em
algum tipo de intercâmbio onde as informações que lhe chegam quase por acidente.
Antes João era um punk que assimilou, junto a outros jovens paulistanos, que ser
punk que não seria muito diferente de ser um “fascistinha” como ele mesmo classifica, tendo seus arroubos
homofóbicos e redundando até mesmo em um tapa na cara de Cazuza.
Cabe notar ainda
que nas recepções de um movimento plástico como o punk podemos ter derivações em um mesmo
país. No caso brasileiro ainda parte dos jovens punks de Brasília eram
recrutados entre os filhos de alto escalão das carreiras de Estado. Alguns
destes eram filhos de servidores da carreira diplomática que tinham acesso aos
lançamentos da produção fonográfica estrangeira quase que simultaneamente ao
que os punks consumiam na Inglaterra ou nos EUA.
Para os punks de
Brasília talvez mesmo a ditadura civil-militar em vigência não fosse exatamente
um problema que os impedisse de consumirem determinados produtos da indústria
cultural. Muito provavelmente estes, onde muitos ainda tinham conhecimento da
língua inglesa, conseguiam ir além da “filosofia”, digamos assim, das gangues
paulistanas. O que não os impediu de terem problemas especialmente com a
polícia em seu papel costumeiro de agentes
da repressão moral e uniformização moral/estética da sociedade
Tudo isso para
retomar um ponto que assinalei lá acima: é preciso conhecer concretamente os
processos de recepção de elementos simbólicos, movimentos culturais, doutrinas,
teorias, ideais, expressões artísticas e escolas filosóficas longe dos seus
contextos originais de criação. Isso vale para o punk e para outras tribos
urbanas. Mas, vale igualmente para movimentos mais complexos do campo
doutrinário politico. A reprodução canônica só decorre onde é possível a
assimilação em caráter sistemático. De outro modo vemos sim, na realidade
social, misturas diferentes de “filhotes de cruz credo” com “Deus me livre”. E
estes existem e são explicáveis se refizermos inversamente o caminho que os
gerou. Talvez este seja um dos maiores trabalhos que precisaremos fazer em prol
da busca por uma opinião pública menos insalubre, menos contaminada por tanto
lixo semiótico.
* Disponível em: https://fotografia.folha.uol.com.br/galerias/7312-punk-nos-anos-80, acesso em 06 out. 2020.
Em
contraposição algo socialmente e esteticamente diferente não era infrequente em outra vertente mais
ou menos contemporânea
do rock: o rock progressivo.
Exemplos notáveis destes indivíduos icônicos são Dexter Holland, vocalista do Offspring,
Greg Graffin, mentor do Bad Religion e professor/pesquisador e Milo Aukerman,
professor adjunto na Universidade de Delaware e fundador do Descendents.
BLUSH, Steven.
American hardcore: a
tribal history. Los Angeles; New York: Feral House, 2001.
A
canção “Veraneio Vascaína” dos brasilienses da banda Capital Inicial ilustra
esta relação de tensão e estranhamento entre as forças da segurança pública e
os jovens punks daquele momento.
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