João Alberto Silveira Freitas
Paulo Sérgio Ribeiro
Se branco fosse, vivo estaria. Simplismo? Não. Apenas uma mórbida confirmação do genocídio negro perpetrado por brasileiros(as) às vésperas do Dia Nacional da Consciência Negra. O fato: João Alberto Silveira Freitas, um homem negro de 40 anos, foi espancado ontem, sem chance de defesa, até a morte por seguranças privados de uma corporação francesa – Carrefour – em um dos seus estabelecimentos comerciais em Porto Alegre/RS, dando um nome e um rosto ao velho “normal” descrito pelo Anuário Brasileiro da Segurança Pública[1]. Em sua edição mais recente (2020), tendo por referência o ano de 2019, dois dados saltam aos olhos: das vítimas de violência letal no Brasil, 74,4% atingem negros e, no tocante à vitimização decorrente de intervenções policiais, 79,1% lhes acomete[2].
Ante a constância da vulnerabilidade social de homens e mulheres negros(as) à violência em suas múltiplas manifestações racistas, temos de indagar sobre as razões possíveis da arbitrariedade sobre os seus corpos aqui e alhures. Em “Contra-história do liberalismo”[3], Domenico Losurdo sugere apontamentos tão perturbadores quanto as imagens do brutal assassinato do senhor João Alberto.
Ao focalizar a construção do pensamento liberal nos dois lados do Atlântico a separar o império inglês de suas colônias no hemisfério norte até o século XVIII, Losurdo revela em detalhe as incongruências de uma visão de mundo que encontraria na escravidão racial seu anteparo em um emergente capitalismo cuja lógica desumanizante não daria margem a veleidades iluministas.
Losurdo é incisivo: o que é o liberalismo? A resposta, feita com suficiente fôlego empírico em sua obra, poderia assim ser contextualizada: filósofos, como John Locke entre tantos outros expoentes daquela tradição de pensamento, que elegeram a liberdade como o alfa e o ômega de um concepção de boa vida, justificariam o poder absoluto sobre homens e mulheres tornados bens semoventes sob o escravismo colonial como prova de coerência de sua luta contra qualquer poder despótico que interviesse na propriedade privada entendida como um direito natural. Tratar-se-ia, em sua forma e conteúdo, de assegurar vida longa ao mito fundador de uma sociedade nacional politicamente emancipada (EUA), mas comprometida (eternamente?) com o seu complexo de colono:
Se a honra da metrópole como lugar privilegiado da liberdade estava salva, não obstante a permanência da escravidão na sua extrema periferia, para os colonos, essa visão cometia o erro de confundir e assimilar ingleses livres, escória carcerária e povos de cor.
[...]
Independentemente até do problema da representação, a delimitação espacial da comunidade dos livres é percebida como uma exclusão intolerável. Por outro lado os colonos, ao reivindicar a igualdade com a classe dominante inglesa, aprofundam o abismo que os separa dos negros e dos peles-vermelhas. Se em Londres se faz a distinção entre a área da civilização e a área da barbárie, entre o espaço sagrado e o profano, contrapondo em primeiro lugar a metrópole às colônias, os colonos americanos são levados por sua vez a localizar a linha de separação em primeiro lugar no pertencimento étnico e na cor da pele: em base ao Naturalization Act de 1790, só os brancos podem ser tornar cidadãos dos Estados Unidos[4].
EUA e Brasil diferem quanto às vicissitudes do seu racismo institucionalizado, mas olhar para a contradição insolúvel do ideário de liberdade que caracteriza a autoconsciência dos(as) estadunidenses e o preço de levá-la adiante, caso não subestimemos o movimento “Black Lives Matter” detonado pelo assassinato igualmente brutal de um homem negro – George Floyd – por agentes policiais, coloca-nos diante do nosso próprio complexo de colono. Ora, não estaríamos diante dos impasses trágicos da delimitação, por exclusão, de uma “comunidade dos livres” entre nós?
O senhor João Alberto ousou ser livre ao acessar as dependências de um hipermercado e delas foi expulso como um corpo sem vida por dois homens brancos, agentes de segurança privada, sendo um deles também policial militar[5]. Excelsa realização de nossa subcidadania: Mercado e Estado personificados como uma só força contra alguém que não seja legatário de uma ordem capitalista cuja estrutura de poder se edifica sobre as bases duradouras do colonialismo.
O que advirá do holocausto negro testemunhado na capital gaúcha retirará o véu de nossas iniquidades neste 20 de novembro? Haverá sublevações populares como as que se seguiram à morte de George Floyd nos EUA? Não levanto tais questionamentos me fazendo incendiário. Só desconfio que, se sobrevierem atos de revolta antirracista como uma onda crescente nas ruas de nosso(?) país, apelar à ordem dirá muito sobre o lugar de fala e o lugar de escuta de cada um(a).
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