A necessidade da luta, a urgência por justiça: uma nota para Cícero Guedes*
* Publicado originalmente no Blog do Pedlowski.
Luciane Soares da Silva**
Hoje completamos um ano e dois dias do julgamento do assassinato de Cícero Guedes. Me dirijo especialmente aqueles que não conhecem a história de Cícero, alagoano, trabalhador da terra e mais um brasileiro negro a experienciar os horrores da condição de trabalho análogo a escravidão.
O julgamento de Cícero em 2019 foi importante para pensar o Brasil. Principalmente a ação do Judiciário. O resultado não diferiu de tantos outros. E a justiça não foi feita. Mas o que esperar de uma cidade marcada pelo braço de latifúndio e da cana, das relações desiguais e do racismo? A capacidade de organização e resistência de Cícero em Cambaíba nos servem de exemplo e dever. Exemplo de como é possível repensar o direito à terra e à justiça social. Dever de prática cotidiana com uma luta que seja capaz de alimentar os corpos e principalmente, libertar as consciências das formas de subalternização impostas pelas elites brasileiras no saudosismo autoritário que sentem da escravidão.
Cabe lembrar ainda do significado histórico de Cambaíba. Para a Comissão Nacional da Verdade, a usina pode ter sido utilizada para incineração de corpos sob o regime ditatorial em 1974. De lá para cá o local foi desfigurado em uma tentativa de apagamento da memória e das lutas populares. De lá para cá muita terra improdutiva permaneceu assim por obra e ação do Estado.
Temos como dever pela morte de Cícero e de tantos outros ativistas dos direitos humanos no Brasil, exigir a justiça e a partilha da terra. A forma de resolução de conflitos faz com que o Brasil ocupe desde 2019 o vergonhoso lugar de terceiro país que mais mata ativistas. Ficando atrás da Colômbia e das Filipinas. Particularmente ativistas ligados a luta pela terra e o meio ambiente.
O governo Bolsonaro intensificou estes ataques. Em 2019 foram ao menos 24 mortes, segundo reportagem do El País de julho deste ano. Chama atenção a morte de lideranças indígenas enquanto a Amazônia queima ao longo de meses sob a pasta de Ricardo Sales.
Cícero, conhecido de todos nós na cidade, dos movimentos sociais, estudantes, professores, população, significa a dignidade que nos falta nos momentos em que arrefecemos e acreditamos ser possível viver sem que se faça justiça aos mortos pelo Estado. Frequentemente a mando do capital que aqui tem a cara dos donos de terra. Proprietários que enviaram jagunços para nos intimidar em agosto de 2019, quando visitamos Cambaíba[1] após declaração do presidente sobre a morte de Felipe Santa Cruz, torturado cruelmente nas mãos da ditadura civil militar brasileira.
No Dia Internacional dos Direitos Humanos faremos a necessária discussão sobre memória e justiça. Um ciclo que se fechou, dando esperanças de um futuro democrático, abre-se como uma roda nefasta girando sobre a cabeça daqueles que ousam opor-se a um governo recheado de militares. Um governo negacionista.
Ao voltar para o Mapa da Fome durante uma pandemia e sofrer o descaso do presidente, caberá a nós a tarefa de zelar e seguir exigindo saúde para famílias negras vivendo em miséria. E justiça para aqueles que tombaram sob o peso de um Estado que segue tratando a bala aqueles que ousaram exigir de volta à terra que lhes é devida. Porque a lavraram, a fizeram florir e alimentaram este país com seus braços.
Justiça para Cícero Guedes e para todos os mortos pelo Estado no Brasil.
[1] https://blogdopedlowski.com/2019/08/01/o-caso-riocentro-cambahyba-e-a-luta-pelo-direito-a-verdade/
** Luciane Soares da Silva é docente da Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf), onde atua como chefe Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado (Lesce), e também participa da diretoria da Associação de Docentes da Uenf (Aduenf).
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