Fonte: Revista Fórum.
O “caso ABIN”: colaboracionismo e recessão do radicalismo
Paulo Sérgio Ribeiro
É chegado dezembro. Um mês que, saturado de emoções como sempre o é, possui duração própria, dando de ombros para o mais do mesmo das folhas do calendário. Estas, é justo reconhecer, perderam qualquer serventia nos dias que se sucederam como um tempo morto, já que não é alvissareiro hipotecar nossas melhores expectativas para o virar de folha em janeiro sob uma democracia tutelada por militares revisionistas de 1964 e golpistas em 2016, consorciados de primeira hora[1] com interesses econômicos e corporativos que nos devolveram à “Belíndia” com a agenda ultraliberal de reformas a seguir seu curso.
Diante deste verdadeiro Mad Max chamado Governo Bolsonaro, bem poderíamos parar de batucar o teclado, admitir a derrota de 2018 em toda sua extensão e, tão logo, buscar distração com o que melhor nos apraz – isto, claro, para quem dispor de tempo e espaço sem sofrer pressões imediatas na luta pelo ganha-pão ou para, simplesmente, calar-se na rodinha de conversa –, mas recolher-se em meio a uma pandemia nos obriga a fazer o balanço entre escolhas individuais e um pacto coletivo.
Desde à emergência do Estado moderno enquanto forma-política do capital, a costura desse pacto se reedita a cada geração e, entre sua ascensão e declínio, os segmentos médios acabam por ter primazia na produção de símbolos que lhes emprestem, digamos, algum fator de coesão para uma "fuga para a frente" que acomodem as contradições do capitalismo em um mundo de trabalhadores(as) despossuídos(as).
Tais símbolos, por óbvio, não se ofertam sem disputas por corações e mentes em torno de um projeto de nação, ainda que as visões correntes sobre a globalização e os discursos críticos do pós-colonialismo aparentem, por razões opostas, decretar-lhe sumariamente um fim. Nação: uma amálgama étnica e cultural que nos vincula a uma sociedade proteiforme cuja consciência coletiva se articula por um conjunto de narrativas sobre o passado e o futuro.
Já tivemos oportunidade de esboçar os liames entre Estado e nação em face da emergência da “socialidade em redes” e os prognósticos nada alentadores que ela acarreta[2], mas aqui gostaria de me deter nos dilemas próprios aos segmentos médios que azeitam essa relação entre poder e identidade tomando por mote o “caso ABIN”.
Eis um preâmbulo do “caso ABIN”:
(1) As advogadas do Senador Flávio Bolsonaro, filho do Presidente da República, Jair Bolsonaro, constituídas para defendê-lo no caso das “rachadinhas”, solicitaram uma reunião em 25 de agosto de 2020, no gabinete presidencial do Palácio do Planalto, com Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Alexandre Ramagem, diretor da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN), apresentando-lhes documentos que supostamente evidenciariam o acesso ilegal, dentro da Receita Federal do Brasil (RFB), de informações levantadas por este órgão que alimentam os relatórios de inteligência financeira produzidos pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF).
(2) Em um dos seus relatórios, o antigo COAF, rebatizado Unidade de Inteligência Financeira (UIF), detectou movimentações suspeitas na conta de Fabrício Queiroz, ex-assessor do então deputado Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). Tal relatório foi o estopim para uma investigação do Ministério Público Federal (MPF) sobre a possível existência de um esquema fraudulento no antigo gabinete de Flávio Bolsonaro na ALERJ que teria em Queiroz o seu, digamos, “homem da mala preta” a recolher a quase totalidade da remuneração de funcionários fantasmas contratados.
(3) Flávio Bolsonaro, Fabrício Queiroz e mais 15 pessoas encontram-se denunciados pelo MPF por organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita, cabendo ao Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) aceitar ou não a denúncia. Caso aceite, Flávio Bolsonaro e os demais envolvidos serão réus.
Reportagem da Revista Época[3] aponta que a ABIN foi não só ouvidos para a defesa do senador Flávio Bolsonaro numa tarde qualquer de agosto, mas sua "consultora ad hoc" ao produzir relatórios que a orientassem sobre como obter documentos junto à RFB que balizassem a anulação do caso Queiroz, tendo por pressuposto a atuação de uma “organização criminosa” dentro daquele órgão que, alega a defesa do senador, operaria acessos não autorizados a dados fiscais protegidos por sigilo.
Os desdobramentos do caso das “rachadinhas” da inominável dupla Bolsonaro/Queiroz continuarão sendo um prato cheio para a crônica policial, gênero apropriado ao “clã Bolsonaro” em sua rota pavimentada entre o submundo da política fluminense e o distrito federal. Contudo, a exposição pública da ABIN, um órgão demasiado sensível para os interesses estratégicos do país, tornada suspeita de agir em defesa de um senador federal cujos rolos com a justiça, pasme, viraram assunto da segurança institucional da Presidência da República – a ABIN de Ramage é subordinada ao GSI de Heleno –, levou Moisés Mendes, um jornalista experiente e independente, a fazer uma provocação oportuna para o momento[4]: por que os servidores da ABIN e os demais quadros do Estado brasileiro não reagem à tamanha destruição institucional?
Para Mendes, além de especularmos sobre a base legal para o impedimento do presidente e a abertura de processos disciplinares nos órgãos envolvidos – ABIN e RFB –, cabe indagar como esses e demais órgãos estruturantes da república brasileira foram levados de roldão pelo colaboracionismo, na medida em que a extrema-direita instalada no poder testa, sem pudor nem temor, os controles internos daquelas instituições com o expediente típico de um Estado policial:
O uso da Abin só foi possível com a colaboração de gente de dentro de órgão, e não só de comandos. Quem colaborou?
Quem fez o serviço para os advogados de Bolsonaro dentro da Abin? Quem permitiu o acesso a informações que acabam denunciando, com nomes, os funcionários da Receita visados pela Abin?
[...]
Todos os que convivem com os operadores das tarefas determinadas pelos chefes a serviço de Bolsonaro sabem quem faz o quê e quem é vilipendiado por essas ações[5].
Perguntas certeiras, não resta dúvida. Contudo, creio que o colaboracionismo descrito pelo arguto jornalista não seja apenas o efeito de represálias em uma estrutura de comando corrompida pelo familismo amoral[6] do Governo Bolsonaro e blindada, de um lado, pelo corporativismo da caserna militar e, por outro, pelo reagrupamento da direita no parlamento com um Bolsonaro mercador de interesses fisiológicos do “centrão”. Ora, se Bolsonaro e sua criatura – o bolsonarismo – foram gestados bem antes de um governo de extrema-direita concretizar-se como um cenário sem volta, talvez possamos ler também esse colaboracionismo como um sinal perturbador da recessão do radicalismo da classe média.
Antônio Cândido[7] concebe o radicalismo enquanto conjunto de ideias e atitudes que serve de contrapeso ao movimento conservador que sempre predominou entre nós. Trata-se não propriamente de um pensamento revolucionário, pois, ao contrário de outras formações sociais como a uruguaia, a peruana, a chilena e a cubana, nunca fora decorrente de uma “doutrina politicamente avançada”[8] com suficiente abrangência em nosso debate público, mas de um posicionamento de autores outsiders cujas obras promovem um “modo progressista de reagir ao estímulo de problemas sociais prementes”[9].
O pensamento radical, sendo germinado nas classes médias e em certas frações das classes dominantes, é marcado pela ambivalência: ao mesmo tempo em que nos conduz a identificar-se com interesses pontuais do segmento potencialmente revolucionário da sociedade, as classes trabalhadoras, seus cultores se veem em rebelião contra sua própria classe, mas só até certo ponto. Assim, os problemas sociais na ótica do radicalismo de classe média, diante da impossibilidade de concebê-los enquanto expressão objetiva dos antagonismos entre as classes subalternas e a classe dominante, acabam circunscritos à nação como um todo, uma espécie de caução simbólica das soluções conciliatórias.
Todavia, Cândido não toma por menos a potencialidade transformadora do pensamento radical, uma vez que este venha a constituir-se em fator de ampliação da consciência do possível:
[...] em países como o Brasil o radical pode ter papel transformador de relevo, porque é capaz de avançar realmente, embora até certo ponto. Deste modo pode atenuar o imenso arbítrio das classes dominantes e, mais ainda, abrir caminho para soluções que, além de abalar a rija cidadela conservadora, contribuem para uma eventual ação revolucionária. Isso porque nos países subdesenvolvidos, marcados pela extrema desigualdade econômica e social, o nível de consciência política do povo não corresponde à sua potencialidade revolucionária. Nessas condições o radical pode assumir papel relevante para suscitar e desenvolver esta consciência e para definir medidas progressistas mais avançadas no que for possível. Digamos que ele pode tornar-se um agente do possível mais avançado[10].
Malgrado o radicalismo de classe média poder ser, em face de sua ambiguidade, também depositário de elementos de mitigação dos conflitos – algo que Cândido nomeia como “oportunismo inconsciente” – essa vertente do pensamento político é passível de contrapor-se ao velho transformismo, qual seja, ao conservar mudando. Desde as jornadas de junho de 2013 e, ato seguido, as manifestações de massa “verde-amarela” pelo impedimento da Presidenta Dilma Rousseff, ficou patente que predomina nos segmentos médios uma interdição da imaginação política que recoloca o conservadorismo na ordem do dia.
O “caso ABIN” evidencia nada além do que o comprometimento de uma instituição que, pela própria excelência de sua atividade-fim, deveria estar melhor resguardada do “oportunismo” talvez nem tão inconsciente assim da fração proto-fascista da classe média nela recrutada por concurso público. Se houve um tempo em que conservadores e progressistas conciliaram pela defesa da soberania nacional – bastaria lembrar aqui da campanha “O petróleo é nosso!” nos anos 1950 –, agora prevalece o “salve-se quem puder” em carreiras de Estado cujos quadro técnicos carecem de uma visão de Brasil.
Nem sei se seria o caso de recriminar aqueles(as) que queiram sair do Brasil, pois, sabe-se lá, não seja o Brasil que deles já se foi.
[1] Revista Fórum. “Villas-Bôas e Etchegoyen tiveram encontro secreto com Temer um ano antes do golpe”. Edição de 13/10/2020. Disponível aqui.
[2] Desenvolvemos esta análise no texto “Covid-19: um testa à resiliência dos Estados nacionais”, dividido em duas partes (aqui) e (aqui).
[3] Revista Época. "ABIN fez relatório para orientar defesa de Flávio Bolsonaro na anulação do caso Queiroz". Edição de 11/12/2020. Disponível para assinantes aqui.
[4] Blog do Moisés Mendes. "Os servidores precisam reagir aos crimes de Bolsonaro". Publicado em 12/12/2020. Disponível aqui.
[5] Idem.
[6] REIS, Elisa. Desigualdade e solidariedade: uma releitura do "familismo amoral" de Banfield. Encontro Anual da ANPOCS. Disponível aqui.
[7] CANDIDO, A. Radicalismos . Estudos Avançados, [S. l.], v. 4, n. 8, p. 4-18, 1990. Disponível aqui.
[8] Ibid., p.4.
[9] Idem.
[10]
Ibid., p.5.
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