Nova configuração cristofascista de Bolsonaro: evangélicos começam a se desprender do Bolsonarismo*.
“Nem só de Deus há mudez.
Nem Deus é só três,
nem se usa a mesma luz mais de uma vez”.
Arnaldo Antunes
Fábio Py
*
Publicado originalmente pelo Instituto
Humanitas Unisinos.
Neste
texto, indico que com avanço da pandemia do Covid em 2021 ocorre
certo desvencilhar de algumas lideranças cristãs do projeto bolsonarista. Isso por conta do número de
mortos nas camadas populares, e também pelo desapego governamental às
medidas de isolamento social. A menor adesão de lideranças
eclesiásticas às comemorações da Páscoa deste ano sugerem o
enfraquecimento da articulação da base religiosa do governo.
Assim,
a Páscoa de 2021 foi mais uma festividade cristã
vivida sob o impacto do Covid-19 e sob as amarras do governo
Bolsonaro. Nada mais taxativo sobre isso do que a perspectiva de que
em junho de 2021 deve-se bater o número catastrófico de meio
milhão de mortos no Brasil. Não se pode deixar de destacar que a atual
gestão é culpada desse número horripilante, pelo desprezo à população e à falta
de logística na crise. Ao mesmo tempo, o genocídio diário que
estamos expostos também suja as mãos de sangue dos líderes dos
cristianismos hegemônicos que a apoiam desde 2018.
Pontuo
que ocorre em 2021 uma nova configuração governamental com os cristianismos,
não tão intensa como em 2019 e 2020, contudo, ainda relevante. Tal como argumentei no ano passado, a Páscoa de
2020 foi símbolo monumental da construção da imagem de Bolsonaro como
messias político no início da pandemia. Agora, para melhor desenhar esse
momento de avanço denso da pandemia gostaria de separar cenas
midiáticas da Páscoa de 2021 e compará-las com as de 2020. Para assim
se reconhecer as artimanhas da cúpula bolsonarista para manter
certa conexão da persona pública do presidente com a figura do “bom cristão”.
A
Páscoa: ritual central do cristianismo bolsonarista midiático
Para a
análise da semana a Páscoa de 2021, a proposta e observá-la de
forma comparativa, destacando elementos que não são tão claros, e indicar novas
configurações/relações com o cristianismo hegemônico. Abaixo, as cinco “cenas
midiáticas” expostas pela comunicação de Bolsonaro na semana
pascoal.
Primeira
cena
A
primeira cena das redes sociais foi postada no Domingo
de Ramos, que marca a semana que antecede a Páscoa, dia em que
se celebra a chegada de Jesus na cidade de Jerusalém. Na peça divulgada,
aparece Bolsonaro levantando um quadro de Jesus, cercado por
apoiadores. Ora, na Páscoa de 2020, o domingo de Ramos foi
diferente. Um dia de jejum e oração. Contudo, neste ano, a data foi utilizada
para ser o dia da convocação, perdendo força de dia simbólico de início
da Semana Santa. Até porque, no universo evangélico, o Domingo de
Ramos não tem valor celebrativo.
Agora,
a imagem expõe Bolsonaro como defensor do cristianismo, o presidente
carrega Jesus entre os seguidores no parlamento. A icônica foto parece ser uma
exemplificação do que afirma: “O Brasil é laico, mas (o presidente) é cristão”.
Assim, a imagem sugestiona que carrega cristo no Congresso, com um texto abaixo
convocando para o jejum do dia 29, escrito: “teremos um dia de jejum e oração
pelo bem e liberdade da nação”. Porque, na lógica presidencial, a liberdade
religiosa vem sendo desrespeitada pelos governadores ao adotarem
medidas restritivas impossibilitando a população de trabalhar. Na sequência,
arremata essa ideia ao escrever: “seguiremos lutando contra o vírus e o
desemprego, pela vida, mas sem perder a dignidade”. Com a cena, indica que
o dia do jejum foi convocado para que lutem pelas duas coisas:
pela “saúde da nação e contra o desemprego”. Voltando a usar a tese econômica
típica de seu cristofascismo pandêmico ao usar o cristianismo
para entregar a população ao vírus e à morte.
Segunda cena
Na
segunda cena, do dia 29, o dia do jejum, o presidente publica um material sobre
a data. Sobre a celebração, é importante destacar que vários líderes
evangélicos não estiveram na atividade no Planalto, como Silas
Malafaia e outros. Assim, se em 2020 uma dezena deles participaram, em
2021, não. No vídeo de 2020 apareceram 36 lideranças, agora, apenas três das
grandes igrejas evangélicas, ou seja, uma ampla diminuição no apoio. Agora, de
fato, seus três participantes foram escolhidos meticulosamente.
Além
de serem personas das grandes corporações cristãs, eles simbolizam as regiões
do país: Rene Terra Nova do Norte,
Manaus-Norte/Nordeste; Estevam Hernandes do Sudeste, São
Paulo-Sul/Sudeste; e Cesar Augusto do Centro, Goiânia-Centro.
Salientando que apóstolo é a maior estratificação religiosa encontrada
nas Igrejas cristãs. A maioria dos participantes carrega título de
apóstolos. Na Bíblia, os apóstolos tiveram a responsabilidade
de após a morte de Cristo carregarem a mensagem de Jesus. Não existiria o cristianismo sem
seu testemunho. Logo, são os fundadores e mantenedores da religião. Nas igrejas
brasileiras, o título de "apóstolo" carrega tanto esse legado
histórico, como também, indica domínio territorial, tal como os bispos.
Assim,
somados, os três líderes simbolizam toda geografia brasileira representada no
evento/jejum de finalidade de “abençoar a nação”. Eles dizem no vídeo que
"oraram e jejuaram para abençoar a nação brasileira”. Já, o apóstolo César
Augusto afirma “estamos aqui representando todas as igrejas evangélicas,
povo católico que crê no nosso Senhor Jesus Cristo. Cremos que foi um divisor
de águas, o Brasil não será o mesmo depois desse jejum que
fizemos”. Como era de se esperar, o vídeo apela à fé do povo, colocando Bolsonaro no
centro das atenções, levando as orações como escolhido por Deus.
No
seu fim, o presidente diz uma pequena frase, de quem é muito pouco acostumado a
ambiência das Igrejas: “Jejum pelo Brasil, orações que mudam o destino de uma
nação”. Na frase o valor do jejum, do apego religioso na luta contra a peste
do Covid-19. Ao mesmo tempo, se coloca como líder cristão
do Brasil no qual proclama o ato profético junto três representantes
da mais alta casta evangélica para corroborar na peleja religiosa
por novos tempos sobre o país. O que se conecta direto com a convocação do dia
anterior, destacando-o como servo de cristo e junto aos poderes sacerdotais da
nação.
Terceira
cena
Após
o jejum, a rede social permanece três dias sem qualquer mensagem
religiosa. Na verdade, essa é uma diferença brutal da Páscoa de 2020 para a de
2021. A de 2021 casou com as comemorações do golpe Militar de 1964, ditadura tão
importante para os traços fascistas de Bolsonaro. Ao mesmo tempo,
nesse hiato de mensagens cristãs, seu foco se tonifica na defesa do governo
diante da escalada de mortes na pandemia. Assim, logo após o
silêncio sobre temas religiosos nas redes sociais, posta sobre a Sexta-Feira
Santa, justamente no dia que é lembrado o martírio final e morte de Jesus.
Ora, um governo que se proclama tão cristão, não poderia esquecer desse dia. E,
a cena construída tem uma curiosidade. Ela traz Jesus na cruz morto em
penumbra. Contudo, o versículo bíblico citado na Sexta-Feira Santa de 2020 e de
2021 é o mesmo. Ora, nas duas Páscoas nas suas Sextas-Feiras
Santas posta-se 1Pedro 2,24: “Ele mesmo levou em seu corpo os nossos pecados
sobre o madeiro, a fim de que morremos para os pecados e vivêssemos para a
justiça, por suas feridas vocês foram curados”.
Claro
que 1Pedro 2,24 é um versículo famoso sobre cristologia, quando resume o significado da mensagem da
salvação em cristo para os cristãos. Embora seja muito utilizado no rol das
igrejas, existem muitos outros que dizem o mesmo. Assim, ou os intelectuais
teológicos de Bolsonaro perderam a criatividade, ou, vem
diminuindo o apoio teológico ao presidente. Já que a cúpula governamental sabe
pouco do vocabulário cristão-evangélico. Um último detalhe da
imagem: ela é mais obscura do que a de 2020, o que sugere o sofrimento diante
do platô de 3 mil mortes diárias no Brasil.
Quarta
cena
No sábado
de Aleluia de 2020, Bolsonaro postou um vídeo falando da
facada que sofreu, de sua quase morte e do milagre que Deus fez para levá-lo a
chefe da nação. Mas, em 2021, a equipe de Bolsonaro não
indicou nada tão teológico no Sábado de Aleluia. Nesse dia tão especial
para cristianismo, de lembrança do sofrimento dos discípulos e
discípulas de não ter Jesus por perto, não há referência alguma. É um dia de
alta carga teológica e o único comunicado vai na direção da “liberdade
religiosa”. Postou-se sobre as “Celebrações religiosas presenciais” indicando que o Ministro Nunes Marques assinou uma medida cautelar
para “Estados, DF, Municípios se abstenham de editar ou de exigir o cumprimento
de decretos ou atos administrativos locais que proíbam a reavaliação de
celebrações religiosas presenciais”. Logo, Bolsonaro queria
garantir as celebrações nas igrejas no domingo de Páscoa,
defendendo a pauta dos líderes das grandes igrejas. Contudo, ao mesmo tempo, a
indicação de abertura dos templos permite aglomerações, logo a maior
circulação do Covid e o aumento das mortes.
Quinta
cena
Por
fim, a quinta cena postada ocorreu no dia da Páscoa. Ela foi a
única mensagem religiosa do dia ápice do cristianismo, já, no
domingo de 2020, postou duas cenas. Com a única postagem do dia mostra uma
perda do fôlego das interlocuções cristãs em relação a 2020, contudo, segue
afirmando presidente cristão. Alimentando a imagem dele ser bom conhecedor
do cristianismo ao mostrar a imagem do túmulo vazio, sem
Jesus. Nela há uma luz entrando e escrito em garrafais “Ele vive” - referência
a Jesus ter ressuscitado. Ora, se em 2020 estampou o versículo seguinte de
demonstração pública da fé, de João 3,16, neste ano, de 2021, o
versículo utilizado é outro de João “Eu sou a ressurreição e a
vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá”.
Com
esse jogo midiático mostra que é um cristão e conhecedor do
tema dá ressurreição de Cristo por meio da comprovação do túmulo vazio e a
vitória de Jesus sobre a morte. Agora, se em 2020 utilizou um versículo
clássico da cristologia pontuando sobre Deus/Jesus e a
salvação, agora, o destaque recai sobre a questão da vida após a
morte, da vitória sobre a morte. O que se relaciona com o genocídio que se vive. Com ele, busca como presidente
cristão, consolar o país indicando a esperança de uma vida após o megaton que
abate o Brasil.
Assim,
mesmo que em menor quantidade e com diferentes rearranjos em relação à 2020,
o ritual da Páscoa de 2021 é substancial, pois tenta
estampar Bolsonaro como um cristão vigoroso, servo fiel a
deus, mesmo em tons mais diminutos que no ano passado. Esse novo arranjo da
cúpula governamental de 2021 busca consolar a população apontando a figura de Bolsonaro como
um presidente escolhido por deus. Visa reafirmar diante da
carnificina, que vive como religioso e conhecedor dos ensinamentos bíblicos.
A
Páscoa de 2021 e o novo momento do cristofascismo de Bolsonaro
A
equação vivida no Brasil em 2021 indica
o alastramento da pandemia e de largo impacto social
causado pelo aumento exponencial no número de mortos pela
doença. Por isso, o corpo de intelectuais teológicos de Bolsonaro,
espalham na semana simbólica cristã uma série de cenas que conectam à persona
presidencial com temas e emblemas do cristianismo hegemônico. Eles fazem isso o
desenhando como cristão verdadeiro que defende o Brasil. Mesmo assim, não podem
negar que se vive um novo momento na gestão Bolsonaro, foi isso que
se percebeu na análise comparativa dos rituais das Páscoas.
Antes,
mesmo a Páscoa de 2021 não seguindo o mesmo ritmo de
atividades da anterior, é possível perceber a fórmula do cristofascismo
unindo Bolsonaro aos líderes religiosos, acionando uma ampla campanha de
apoio, sendo o presidente destacado como líder escolhido por deus para liderar
a nação no momento.
Assim
observa-se no novo arranjo do discurso cristofascista de 2021 (autoritário
e ancorado no cristianismo hegemônico) a preocupação de indicá-lo como líder e
alguém apto para comandar a mudança de sentido para nação brasileira diante da
cólera do Covid. Como se vem dizendo, compreende-se que essa reconfiguração
do tom religioso nas suas mídias sociais não é um mero detalhe. Isso,
porque desde o início do ano de 2021 (com o aprofundamento das mortes pelo
Covid) às partes mais periféricas vem sendo mais maciçamente castigadas pela
doença, são 70% dos mortos. E, logo, se periferias brasileiras foram
tomadas pelas igrejas evangélicas, aos poucos vem ocorrendo
um descolamento
das igrejas do bolsonarismo.
O
que se relaciona com certo deslocamento de importantes lideranças evangélicas
da base do governo, como, por exemplo, o magnata pastor-presidente da Assembleia
de Deus de Belém, Samuel Câmara, que é também
presidente nacional da Convenção das Assembleia de Deus do Brasil e
proprietário da Rede Boas Novas. Câmara em 2020
foi figura constante nas atividades da Páscoa, contudo em 2021 não
participou. Pois, admite que “têm restrições ao comportamento de Bolsonaro nesse momento”,
não podendo se ter “líder da nação que não defende o uso da máscara e a
vacinação”.
Assim,
o que se vê é um novo momento do projeto político que une
lideranças das grandes corporações cristãs e os arroubos
fascistas de implementação do ultraliberalismo no Brasil.
A boa notícia é que nem tantos pastores e padres estão colados a Bolsonaro,
contudo, ele segue seu trajeto da “teologia do poder autoritário”, só
que está cada vez mais ligado aos artífices do bloco político do centrão,
lutando junto a eles para espalhar suas políticas de confisco econômico, das
liberdades científico-cultural e de caça aos heterodoxos. Esta nova fase em que
o governo Bolsonaro se divide mais entre os grupos cristãos
hegemônicos e o centrão é parte de sua nova sensibilidade política e que segue
mantendo a tônica do discurso “terrivelmente cristão” até pelo embate
que se avista para 2022.
Referências
bibliográficas:
CARDOSO,
C. F.; PÉREZ BRIGNOLI, H. O método comparativo na História. Em: Os métodos da
História. Rio de Janeiro: Graal, 1983, p. 409-419.
PEIRANO,
Mariza. Rituais ontem e hoje, Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
PY, Fábio. Pandemia cristofascista. São Paulo: Recriar, 2020.
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