quarta-feira, 30 de junho de 2021

Pandemia, memória e justiça

Jogadores do clube de futebol uruguaio Villa Española em partida contra o Peñarol dizem "Nem esquecido, nem perdoado" à morte do coronel José Nino Gavazzo, agente de repressão na ditadura uruguaia. Fonte: Brasil de Fato. 


Pandemia, memória e justiça    

Paulo Sérgio Ribeiro

Em uma sessão da CPI da COVID, seu relator, Senador Renan Calheiros (MDB-AL), iniciou os trabalhos do dia com um ato de memória, a saber, a alusão ao Julgamento de Nuremberg, um paralelo com o destino dos próceres alemães do nazismo[1]. Citar um evento tão caro à autoimagem do Ocidente no pós-guerra evidenciaria, pois, um senso de responsabilidade histórica exigido pela matéria que os senadores têm em mãos, a saber, um possível crime contra a humanidade ou, não menos, um genocídio perpetrado pelo presidente da república, membros da alta administração federal e demais coadjuvantes surgidos da promiscuidade entre a burocracia estatal, empresários da estirpe de um “Véio da Havan” ou Carlos Wizard e o submundo do poder armado (alas golpistas das Forças Armadas, grupos fascistizados das polícias estaduais, garimpeiros, madeireiros, grileiros, milícias etc).

O ato, como esperado, teve pronta resposta dos senadores governistas na CPI. Para estes, tratar-se-ia simplesmente de uma fala “odiosa”, fora de contexto ou, quiçá, um “jogar para a plateia”. Ora, a virulência daquela reação diz muito sobre o nexo entre o que fazer para sobrevivermos – uma inflexão na política nacional de saúde que esteja à altura da complexidade da pandemia do novo coronavírus - e o que fazer para vivermos sem ignorar aqueles que se foram – a apuração de responsabilidade objetiva do Estado em um morticínio sabidamente evitável e, o que não é tão óbvio, a construção de uma memória nacional da pandemia que devolva um sentido a este luto coletivo.

Falar em gestão da memória no calor dos acontecimentos da CPI da COVID seria uma questão extemporânea? Se considerarmos que uma política do esquecimento é retroalimentada pela permissividade a práticas autoritárias de líderes, agentes ou apologistas de um Estado policial que flanaram pelas instituições ao longo da transição democrática, podemos responder sem titubear: não.

Contrarrevoluções do passado que impliquem violações em massa de direitos estão sujeitas ao escrutínio público com vistas a consolidar regimes políticos que tenham por fundamento a soberania popular. Tal revisão corresponde a uma política de memória, assumindo o Estado o dever de efetivar o direito à verdade tanto às vítimas do terrorismo estatal quanto às novas gerações para que se repactuem, em processos individuais e coletivos, limites éticos e padrões morais próprios aos direitos humanos.  

Como salienta Antônio Barros[2], temos de distinguir conceitualmente verdade hermenêutica de verdade factual. A primeira é a que se submete ou, melhor, é moldada pela disputa de opiniões inerente aos processos legislativos e ao debate público. Pelo próprio dissenso que variadas possibilidades interpretativas em torno de uma questão de interesse público suscitam, a força da persuasão tende a prevalecer sobre as proposições de validade universal. Não à toa, assistir a um cientista ser “inquirido” por um senador bolsonarista na CPI da COVID seja o mesmo que ver alguém jogando xadrez com um pombo... A segunda, por sua vez, equivale a um juízo de fato, isto é, àquilo que, sob pena de um constrangimento epistêmico, não se pode pôr em dúvida mesmo aqueles que se opõem ferrenhamente na luta ideológica. Exemplo: conservadores e progressistas reconhecem o caráter problemático das desigualdades raciais no Brasil, mas oferecem prognósticos concorrentes a este respeito quando adentram no debate econômico.

Não obstante, mesmo que admitamos que o processo de formação da opinião seja sempre um equilíbrio instável entre distorções deliberadas da realidade e a busca de um recorte da realidade que se ajuste a um diagnóstico do tempo presente, alguns pontos de partida podem ser traçados quando olhamos para a chamada Era Bolsonaro como a face mais sombria do país que sobreveio à Lei de Anistia de 1979.

A Lei nº 6.683/1979, promulgada na ditatura civil-militar, concedeu anistia a presos, exilados ou àqueles que estiveram na clandestinidade por terem praticados crimes políticos, bem como aos agentes da repressão que tenham praticado assassinato, tortura, desparecimento forçado e demais violações de direitos humanos entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Equiparar as formas de crítica, de protesto e de desobediência civil experimentadas nos anos 1960 e 1970 a uma pretensa “legitimidade” do regime de exceção que se instalava no Brasil é uma premissa que, na referida lei, é observável pela exclusão da anistia àqueles que foram presos por terem se engajado na luta armada contra o regime.

Para José Carlos Filho[3], a ambiguidade da Lei da Anistia matizou o processo de redemocratização entre nós. Se, por um lado, a anistia foi uma demanda pela reabertura política que ensejou uma mobilização social que se faria decisiva na campanha pelas Diretas Já (1983-84) e na Assembleia Constituinte (1987-88), por outro, representou uma justiça de transição conservadora, uma vez que promoveria o “esquecimento institucional” dos crimes contra a humanidade e, por conseguinte, a impunidade dos seus autores e executores. Como bem sintetiza José Carlos Filho:

 

Em outras palavras, militares, policiais, juízes, promotores, políticos e demais funcionários públicos que participaram ativamente do processo de perseguição política aos opositores do regime ditatorial continuaram nos seus postos de trabalho como se nada houvesse acontecido (SILVA FILHO, 2018, p. 1287-1288).

 

O fragmento em destaque nos serve para não subestimar a heterogeneidade dos grupos de interesse que sustentam uma ditadura. Não obstante, indagar como chegamos ao descalabro da pandemia é indagar como Jair Messias Bolsonaro chegou à Presidência da República e, de modo complementar, qual papel o partido militar desempenha na transição democrática e, sobremaneira, no pós-golpe de 2016. Marcelo Pimentel, coronel e oficial de artilharia formado na Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN) em 1987, elabora uma definição coerente dessa grande eminência parda da “Nova República”. A seu ver, trata-se de “um grupo coeso, hierarquizado, disciplinado, com algumas características autoritárias e claras pretensões de poder político, dirigido por um núcleo de generais formados nos anos 1970 na Academia Militar das Agulhas Negras, que integraram ou integram o Alto-Comando do Exército”[4].

A interdição do debate sobre a ditadura civil-militar dentro das próprias Forças Armadas em termos, digamos, mais realistas do que o revisionismo histórico que nomeia o golpe de 1964 de “revolução redentora” é sugestivo do quão herméticas suas corporações podem ser e de como a socialização na caserna tem, paradoxalmente, na subversão da ordem constitucional uma espécie de salvo-conduto para a transgressão disciplinar intramuros.

Para confirmá-lo, bastaria recordarmos a controversa retirada do então capitão Jair Bolsonaro dos quadros do Exército brasileiro[5]: em 1986, a revista Veja publica em sua seção “Ponto de Vista” artigo de autoria de Jair Bolsonaro, a serviço do 8º Grupo de Artilharia de Campanha, intitulado “O salário está baixo”, uma infração que lhe infligiria a prisão administrativa e, ironicamente, notoriedade entre oficiais da ativa e da reserva. No ano seguinte, a mesma revista Veja noticiou o planejamento da operação “Beco sem saída” que teria em Jair Bolsonaro seu principal artífice. A operação, que não chegou a ser executada, consistia em detonar explosões em unidades da Vila Militar sediada na AMAN, caso o reajuste concedido aos militares pelo governo federal ficasse abaixo de 60%.

Os resultados de uma sindicância feita pelo Exército concluíra que Jair Bolsonaro e outro capitão, Fábio Passos da Silva, deveriam ser expulsos da corporação por conceberem tal operação, levando o Ministro do Exército à época, Leônidas Pires Gonçalves, a submetê-los ao Superior Tribunal Militar (STM). Contudo, o STM decidiu pelo não afastamento de ambos os capitães, em face de inconsistências no processo. Em 1988, Bolsonaro vai para a reserva conservando sua patente de capitão e, a partir de 1990, inicia sua carreira política como vereador eleito no Rio de Janeiro pelo extinto Partido Democrata Cristão (PDC), arregimentando sua base eleitoral no antigo reduto militar.

A circunstância desse julgamento – secreto, sem acesso à imprensa – e o seu resultado são, para o jornalista Luiz Maklouf Carvalho – autor do livro “O cadete e o capitão”, que aborda a trajetória militar de Jair Bolsonaro – expressivos do “espírito de corpo militar”, assim como de sua “hostilidade à imprensa” durante a transição democrática[6]. Aqui, podemos refazer nossa indagação com maior detalhamento: como um ex-militar que chegara a ser julgado por seus pares por ter arquitetado um atentado à bomba contra a AMAN não só chega à Presidência da República como “quarteliza” o primeiro escalão do governo federal com mais de seis mil militares da ativa e da reserva em seus postos-chave?

Uma hipótese: por menor que seja a honorabilidade do ex-capitão junto ao Alto-Comando do Exército devido ao seu histórico de indisciplina – um autêntico “bunda suja” -, o partido militar não teria por que ignorar na projeção nacional de Jair Bolsonaro um “ativo político” para regressar ao Planalto como condottiere de ocasião do golpe parlamentar de 2016: uma ruptura institucional cujos elementos de exceção mostrar-se-iam mais difusos do que em 1964 com o lawfare no Poder Judiciário mas, nem por isso, refratáveis à tutela das armas. João Cézar Castro Rocha, autor do livro “Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas do Brasil”, avalia o discurso bolsonarista como tributário de uma “mentalidade revisionista e revanchista no Exército porque considera que os militares venceram a batalha, no golpe de 1964, mas perderam a guerra, a guerra pela opinião pública”[7] e faz um alerta, no mínimo, perturbador:

 

Nós nos aproximamos do momento mais grave da vida brasileira desde a redemocratização. Teremos uma recessão econômica cuja recuperação não se encontra ainda no horizonte, e o colapso do governo Bolsonaro é inevitável, porque não se pode governar sem dados objetivos. A armadilha da guerra cultural é essa: você se mantém numa aparência de êxito permanente, mas você não consegue fazer nada. Você está totalmente preso na armadilha do seu próprio êxito aparente, que é virtual e em boa medida alimentado por robôs. Quanto maior o colapso do governo, maior a virulência da guerra cultural e maior a tendência dessa guerra virtual transbordar para as ruas. Não dá para governar um país criando inimigos o tempo todo. (...) Nós vivemos hoje a iminência, um risco sério de um golpe autoritário, que será mais violento que a ditadura militar porque esse desejo de eliminação das instituições não fazia parte da ditadura militar. A ditadura militar queria criar instituições à sua imagem e semelhança. O bolsonarismo pretende destruir instituições. Nós só poderemos deter esse processo se compreendermos a lógica perversa que domina esse governo[8].

 

Entender essa lógica perversa, na aceleração da conjuntura em que nos encontramos, requer indagar se uma nova “operação de esquecimento” sobre o extermínio não apenas do “inimigo interno” da vez – os partidos de esquerda, as minorias organizadas, as lideranças do campo, os povos originários -, mas da população em geral estará em andamento em mais um capítulo da nossa história em que o monopólio da força é corrompido por uma burguesia em guerra contra toda nação.



[1] Portal G1. CPI da Covid tem discussão após Renan citar julgamento de Nuremberg. Edição de 25/05/2021. Disponível aqui.

[2] Cf. BARROS, Antônio Teixeira de. O debate parlamentar sobre a Comissão Nacional da Verdade no Congresso Nacional Brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 2020, vol. 35, nº 104. Disponível aqui.

[3] Cf. SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Justiça de transição e usos políticos do Poder Judiciário no Brasil de 2016: um golpe de estado institucional? Revista Direito & Práxis, vol. 9, nº 3, set. 2018. Disponível aqui.

[4] Carta Capital. O Brasil é refém do Partido Militar, diz coronel. Edição de 30/05/2021. Disponível aqui.

[5] As informações biográficas de Jair Bolsonaro foram consultadas no Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Disponível aqui.

[6] Portal G1. Aversão de militares à imprensa ajudou a absolver Bolsonaro em 1988, diz autor de livro. Edição de 31/07/2019. Disponível aqui.

[7] Agência Pública. “Quanto maior o colapso do governo, maior a virulência da guerra cultural”, diz pesquisador da UERJ. Disponível aqui.

[8] Idem.

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