Sobre
polarização e doisladismo no Brasil de Bozoasno.
Márcia Cristina
Mérida Aguiar*
Tive
contato com o conceito em moda hoje, “polarização”, faz tempo. Muitas vezes,
vem sendo usado sem qualquer referência à sua construção histórica mais recente
e, por vezes, para se dizer sabe-se lá o quê.
Conheci,
usei, estudei “polarização” referindo-se às duas potências da Guerra Fria, EUA
X URSS, que num confronto de décadas, se destacavam como polos.
A
palavra "polo" diz sobre poder, capacidade, potência de lados
opostos, se não iguais, pelo menos com alguma equivalência ou correspondência.
Não
há uma só vez que eu escute ou leia a palavra polarização sobre o Brasil
contemporâneo, que não me lembre destes elementos: dois polos se confrontam por
possuírem poderes equivalentes.
Nunca
tinha ouvido a expressão referindo-se às situações desiguais. No entanto, no
Brasil do Bozoasno, esta palavra abriu mão da equivalência, princípio básico da
polarização e passou a substituir tudo que até então era tratado por lados em
oposição, lados assimétricos, lados desiguais, lados que não se enfrentam em iguais
condições.
De
repente, estamos nadando contra o afogamento neste mar de doisladismos.
Parece
até que nos foi furtada a possibilidade de pensar e agir, afinal, este discurso
não reflete a desigual relação de forças, os instrumentos de afirmação e as
formas de (luta pela) existência.
Em
meio a esta bruma confusa que surge no novo léxico, passamos à exposição
digladiadora sendo tratada como debate, sem chance de entendimentos ou de
divergências civilizadas, por exemplo, entre pressupostos científicos e
formulações que chegam pelo tio do zap.
Parece
que abandonamos a premissa primordial do debate: é preciso que se fale a mesma
língua, ou que se tenha alguma possibilidade de tradução (não que tenham as
mesmas ideias a serem defendidas), mas algum chão comum é o basal na elaboração
de um debate.
Nas
braçadas dadas entre os doisladismos, muito se defende o direito de opinião. É
esquisito observar como parece que tudo que resulta da conexão cérebro - boca
seja tratado como opinião. Sou do tempo em que a opinião concorria e se
diferenciava do delírio, da mentira deslavada, da pós-verdade, do blefe, da
retórica etc. e, note, todas as formas discursivas fazem este caminho entre o
cérebro e a boca e isto não é suficiente para tornar todo texto que venha deste
percurso seja considerada opinião.
São
muitas as confusões de fundo que resultam em tornar o que vivi no 29M em mais
um evento da polarização, em experiência de equivalências.
Eu
bem sei que a História não ensina nada a ninguém. Entretanto, nesta história,
há a figura do estudante, do estudioso, do curioso, do produtor e também do
aprendiz do conhecimento histórico.
O
que o doisladismo me aponta, do ponto de vista histórico, são os desperdícios
de conquistas históricas. Tem história, mas carece de aprendiz. Um exemplo: em
todas as sociedades, o homicídio passou por algum grau de reprovabilidade.
Entretanto, foi na modernidade que se consagrou o direito à legítima defesa,
situação que o indesejável homicídio é permitido.
O
princípio da legítima defesa, estudado em vários povos não modernos, estendido
do individual ao coletivo, esteve presente na consagração do direito de
resistência à opressão. Exatamente este direito, o de resistir. Sem ele, não
seríamos modernos, pois foi ele que garantiu a “evolução” das formas de
organização das sociedades.
Legitimamente,
para superar os paradoxos da opressão dos povos, foi a luta, a resistência que
desinstalou o absolutismo francês, a descolonização da América do Norte e, só
para ficar bem no começo de uma longa história moderna de lutas legítimas
contra o arbítrio, contra o Estado que se coloca contra seus próprios
governados.
Sem
esta referência histórica básica, a gente vem se perdendo, se afogando neste
mar de doisladismo.
É
muito estranho ouvir: estamos polarizados! "Temos dois lados iguais, a
oposição não pode aglomerar porque lutou contra isto até agora e se assim fizer
está repetindo o outro polo".
Quanta
desconsideração histórica! Em 29 de maio, eu fui para rua ao encontro dos meus
iguais. Aglomerei? Prefiro primeiro dizer o que não foi feito: o espírito da
praça São Salvador não era de deboche com o vírus. Todos de máscara e álcool
para higiene (quem estava sem máscara recebia gentilmente uma, acompanhada de
álcool). As pessoas que se mantiveram distantes até agora não se tocavam, não
se abraçavam, e todos se beneficiando da brisa do Rio Paraíba, a céu aberto.
Não vi ninguém com escárnio com a pandemia, nem com os mortos, nem debochando
da falta de ar que a covid produz. Muito menos cultuamos bonecos infláveis de
caixa de remédio já demonstrado ser sem qualquer eficácia.
O
que fizemos na praça? Demos um primeiro passo público, coletivo, contra quem
nos oprime.
Eu
não queria ter quebrado a quarentena, nem nestes parâmetros de cuidado que tive
na 29M. Sigo sendo contra aglomerações. E não contradigo nenhuma recomendação
dos cientistas em relação à pandemia. Não mudei de opinião em relação à
necessidade dos cuidados adotados nestes tantos meses de terror. Simplesmente
assumi o risco.
A
aceitação do risco surgiu da pergunta: qual seria o momento de começar a
manifestar, externalizar que não darei margem para o prosseguimento do crime
contra a humanidade que assola nosso país?
Temos
um Estado que age (não só se omite) para nos matar. Que não se importa com
nossas vidas, que deseja mesmo, malthusianamente, um controle populacional
demográfico, para tornar o ideal da pasta da Economia uma realidade. É um
Estado que guarda uma granada para colocar nos nossos bolsos, que lamenta que
estejamos vivendo mais e melhor, que culpa a vida pelo “rombo da previdência”,
que quer salvar os grandes e que quer que os pequenos e médios se fodam (não
posso colocar entre aspas, pois não estou transcrevendo, mas estas são falas ou
do "asno" ou do “gênio” da economia – “gênio” que participou da
construção de um Chile que neste momento está em superação, exatamente porque
houve o exercício do direito de resistir à opressão).
Fui
à manifestação do 29M com muito orgulho e esperança. É luta, é direito de
resistência, é busca para diminuir as desigualdades. Não tem nada a ver com
polarização, já que um dos lados, este que estou, está sendo massacrado. Não
tem nada a ver com dois lados diferentes e igualmente legítimos.
Tenho
sincero respeito por quem, neste momento, optou por não passar por este risco,
porém, não compartilho de mesmo reconhecimento com quem supõe que diante de um
Estado genocida, só devemos ir à rua quando não houver risco, pois isto não
acontecerá. Quando não houver o risco de um vírus, haverá o risco de milícias
ou de policiais mandados, o risco dos fundamentalistas, o risco de deixar
crescer a tragédia que estamos vivendo etc. Esqueçam o tempo em que fazer uma
manifestação era estar todos de boas com a cara pintada na rua. De agora em
diante, os riscos se multiplicarão, basta que observemos o que aconteceu em
Recife.
Na
luta contra a opressão, o que se quer é a queda do lado opressor, ilegítimo,
arbitrário, absurdo e bárbaro. Não me peçam o reconhecimento do outro lado,
pois eu fui às ruas em legítima defesa.
29
de Maio,
Márcia
Mérida
* Professora de História, Advogada, Mestra em Políticas Sociais.
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