terça-feira, 28 de setembro de 2021

O que “Camarada”, de Jodi Dean, nos ensina sobre a desorientação da esquerda brasileira?


O que “Camarada”, de Jodi Dean, nos ensina sobre a desorientação da esquerda brasileira?

Paulo Sérgio Ribeiro

O mês de setembro testemunhou uma manifestação da extrema direita que tanto reflete a inviabilidade de Jair Bolsonaro na corrida presidencial como confirma que a base social do bolsonarismo adquiriu moto-próprio para rebaixar o teto da nossa imaginação política em um eventual cenário de vitória da esquerda (ou centro-esquerda) em 2022. Este apontamento aparenta ser consensual dentre analistas mais argutos da conjuntura nacional. Todavia, ao olharmos com maior relevo para o ato realizado em 12 de setembro e, mais recentemente, para a escaramuça envolvendo um ator com posicionamento coerente na construção de nossa democracia – José de Abreu – e a deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP)[1], adentramos numa zona nebulosa da disputa de ideias que organiza o campo progressista.

O Movimento Brasil Livre (MBL) e o movimento “Vem pra Rua Brasil” convocaram atos contra Bolsonaro em São Paulo e noutras capitais prometendo reunir sem sectarismo diferentes atores políticos para tal ordem do dia. Porém, no seu principal palco, a Avenida Paulista, não foi surpresa o protesto ter sido uma deixa para o “Nem Bolsonaro, nem Lula”[2], reforçando pois o antipetismo como a corrente de opinião duradoura da fração protofascista dos setores médios, assim como um recurso sempre à mão para uma direita liberal travestida de “terceira via” em sua busca inglória por um presidenciável capaz de vocalizar a falsa simetria entre um democrata autêntico, Lula, e um indigente em todos os sentidos que a ditadura civil-militar nos legou.

Fato é que os atos de 12 de setembro foram um verdadeiro fracasso, servindo tão somente para devolver o MBL e o Vem Pra Rua à sua condição de idiotas inúteis do conservadorismo brasileiro, que, não obstante, continua sendo a esfinge que nos ameaça devorar. Se no dia 07 de setembro, os partidos da centro-esquerda e os movimentos populares puderam – com certas vacilações táticas, é verdade – contrapor-se à malta verde-amarela que se impôs em número expressivo na capital paulista, no dia 12 ocorreriam iniciativas que, no mínimo, demonstram ser distante a tão sonhada unidade de ação no campo progressista: a deputada estadual Isa Penna (PSOL-SP) e o deputado federal Orlando Silva (PCdoB-SP) emprestarem sua voz em um evento cuja estética e propósitos são inconciliáveis com a própria causa antifascista que seus partidos historicamente encarnam.

Não entro no mérito das motivações – verbalizadas ou não – de tais parlamentares. Afinal de contas, eles respondem a uma disciplina partidária e esta deverá ser aplicada pelas respectivas direções dos partidos. Em bom português: PSOL e PCdoB que assumam os seus “BOs”. Tento avaliar apenas como esse constrangimento evidencia um estado de desorientação (e de omissão?) da esquerda brasileira diante da tensão entre socialismo e liberalismo que perpassa as lutas pelo monopólio do poder social, ganhe tais concepções de mundo as roupagens que houver.

Ora, se a alegação de Isa Penna de que é necessária uma interlocução com pessoas comuns de perfil direitista mesmo em manifestações públicas da extrema direita[3] e de Orlando Silva, que atribuiu aos seus críticos a pecha de “gabinete do ódio” da esquerda[4] pareça, em princípio, razoável por figurar uma tentativa de construir pontes a partir dos valores de uma esquerda que aceita com resignação a centralidade da luta institucional, há em suas posições a premissa equivocada de que a disputa por hegemonia corresponda à busca de uma linha média entre adversários que não são apenas adversários, mas inimigos intransigentes na luta de classes.

Admitir tal intransigência em sua positividade, claro, requer senso de proporção diante do efetivo poderio que seus contendores disponham. Definitivamente, este atributo da vocação política faltou a José de Abreu ao fazer um “retuíte” de uma mensagem violenta endereçada a Tabata Amaral, que também se fez presente na Avenida Paulista em 12 de setembro. Não há como negligenciar as implicações éticas de um homem intimidar uma mulher. José de Abreu fez merda e não tardou a reconhecê-lo ao afirmar, em entrevista concedida à pedagoga e ativista feminista Lola Aronovich, que pedirá desculpas publicamente à Tabata Amaral[5].

Por óbvio, Tabata Amaral não teria por que deixar por menos. Não só notificará o ator na Justiça[6] como maneja desde então o incidente para fazer de um problema concreto – o machismo dentre homens de esquerda – o mote para investir em um discurso vazio: superar a “polarização” entre centro-esquerda e centro-direita que, conjugado ao imperativo moral da denúncia da violência política calcada no sexismo, torna-se um belo estilingue para a direita liberal que se apropria dos clichês das lutas identitárias para dar um verniz civilizatório à sua agenda regressiva.

Doravante, creio ser um desserviço enxergar nesse episódio um tamanho maior do que ele tem por dois motivos autoevidentes:

1.   José de Abreu nunca esteve à venda e não precisa ser pautado moralmente por uma preposta do capital financeiro que comove a esquerda “namastê”;

2.   Em relação a esta circunstancial oposição de direita ao Governo Bolsonaro, a realidade brasileira subverte a máxima de Carl Schmitt: o inimigo do meu inimigo nem sempre é meu amigo.

Dada a impossibilidade de seguir cegamente a máxima schmittiana, podemos lembrar aqui das lições de Jodi Dean[7] sobre uma relação política que tenha por fundamento a camaradagem. Para Dean, qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser camarada:

 

A noção de que qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser um camarada reforça o modo pelo qual “camarada” dá nome a uma relação que é, ao mesmo tempo, uma divisão. A camaradagem tem como premissa a inclusão e a exclusão: qualquer um, mas nem todo mundo, pode ser um camarada. Não é uma relação infinitamente aberta ou flexível: trata-se de uma relação que pressupõe divisão e luta. Existe um inimigo. Mas, ao contrário da descrição clássica de Carl Schmitt do político em termos da intensidade do antagonismo entre amigo e inimigo, a camaradagem não diz respeito ao inimigo. O fato do inimigo, da luta, é a condição ou o cenário da camaradagem, mas não determina a relação entre os camaradas. Camaradas são aqueles que se encontram do mesmo lado da divisão. Em relação a essa divisão, eles são o mesmo. Sua condição comum é a de se encontrar do mesmo lado. Dizer “camarada” é anunciar um pertencimento, e a condição comum de estar do mesmo lado (DEAN, 2021, p.106).

 

Isa Penna, Orlando Silva e José de Abreu cometeram erros, mas não tenho por que deixar de reconhecê-los como camaradas. Já a misoginia que se volta contra Tabata Amaral  sem dúvidas, execrável  não a torna necessariamente uma “aliada” na longa luta travada contra os donos do poder.



[1] Folha de S. Paulo. “Se encontro na rua, soco até ser preso”, retuitou José de Abreu. Edição de 24/09/2021. Disponível aqui.

[2] El País. O Brasil que não quer Bolsonaro nem Lula consegue um apoio tímido nas ruas. Edição de 12/09/2021. Disponível aqui.

[3] Revista Fórum. Isa Penna: Não tenho nenhuma ilusão de construir uma nova sociedade com o MBL. Edição de 11/09/2021. Disponível aqui.

[4] Diário do Centro do Mundo. Orlando Silva defende Tico Santa Cruz e reclama de “dois” gabinetes do ódio. Edição de 13/09/2021. Disponível aqui.

[5] Fala Lola Fala. Live com Zé de Abreu sobre seu machismo. Disponível aqui.

[6] Isto é. Tabata Amaral decide notificar José de Abreu na Justiça após publicação. Edição de 22/09/2021. Disponível aqui.

[7] DEAN, Jodi. Camarada. Um ensaio sobre pertencimento político. São Paulo: Boitempo, 2021.

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