Mistura explosiva: endividamento,
fome e o “novo” Bolsa Família*
*
Publicado originalmente no Blog
do Pedlowski.
Luciane Soares da Silva**
Desde
o início da pandemia em fevereiro de 2020, no Brasil, assistimos a um processo
de deterioração das condições gerais de vida da população em todas as cidades.
A visibilidade desta deterioração estava no aumento do número de famílias
vivendo nas ruas, nas filas de emprego, na impossibilidade de cumprimento do
isolamento social nas favelas. Vimos de perto formas de improvisação dos
governos municipais, de negação do governo federal e de autoritarismo de
governos estaduais que tentaram forçar seus servidores ao retorno presencial em
mais de uma ocasião. Um elemento comum deve ser destacado ao longo de
toda a pandemia: a capacidade de organização da sociedade civil nos processos
de resistência e fraternidade política. Nas favelas, foi mais comum que funcionassem
ações coletivas para alimentação e medidas sanitárias do que ação efetiva das
Prefeituras. Sindicatos da educação, da justiça e categorias organizadas
rechaçaram as investidas de retorno ao trabalho de forma atabalhoada e
colocando vidas em risco. Cidadãos comuns reuniram forças e organizaram
entregas sistemáticas de alimento à centenas de famílias em situação de
pobreza e extrema pobreza. Movimentos de produção rural e pequenos
agricultores doaram toneladas de alimentos à população.
Os
meses passaram, as mortes por COVID-19 aumentaram e passamos a lidar com duas
frentes de problemas: uma crise sanitária e outra humanitária. Os auxílios
recebidos não foram suficientes para enfrentar a insegurança alimentar que já
estava na mesa dos brasileiros. Principalmente mulheres que chefiam famílias e
vivem de trabalho informal. Principal grupo a perder suas fontes de renda com a
pandemia. Não havia mais como vender alimentos em festas, realizar diárias,
ocupar-se de trabalhos estéticos e uma infinidade de ocupações que dependem de
um mercado de alimentação, lazer, turismo, serviços em geral.
Chegamos
ao fim de 2021 com o fechamento natural deste quadro: o acirramento da pobreza.
Na Portelinha, comunidade localizada em Campos dos Goytacazes, é certo arriscar
que mais de 50% das famílias vive quadro de desemprego e insegurança alimentar.
Para além disto, é possível supor que esta realidade pode ser amplificada para
a cidade e capitais. São milhões de desempregados e as cenas de pessoas
revirando o lixo não produz qualquer efeito sobre o governo federal. Temos a
comprovação de que o ministro da economia tem lucrado como nunca ao longo dos
meses recentes. E é certo dizer que ele odeia pobres.
Que
temos um presidente genocida, não é preciso repetir. Temos uma tarefa pela
frente no dia 15 de novembro. E a considerar a gravidade do quadro de fome e
desemprego no país, esta tarefa não é fácil. Será necessário reafirmar as
bandeiras que foram levantadas ao longo destes dois anos. Sobre a importância
do funcionalismo, do SUS, da Universidade, da Ciência. Será necessário
denunciar os crimes ambientais cometidos pelo governo Bolsonaro e seus
apoiadores. Mas talvez seja igualmente necessário fazer o diálogo com aqueles
que neste momento estão revirando todo e qualquer lugar no qual possam
encontrar alimento. A experiência da fome é limítrofe pois estabelece
para quem a vive, uma condição de não humanidade. Em um cenário de desigualdade
no qual vemos estas diferenças de forma ampliada, será preciso quebrar algumas
paredes e direcionar energia ao contato com periferias, zonas rurais, população
em situação de rua e outros territórios em vulnerabilidade.
Com
a chegada do Natal, dos embrulhos, perus, luzes, férias, viagens, todos este
quadro parecerá ainda mais distópico. Com a segunda dose no braço, famílias
planejam realizar encontros interrompidos. Quando as festas acabarem estaremos
de frente para uma eleição. O candidato Bolsonaro pretende levantar sua
popularidade com um novo auxílio. O Programa Auxílio Brasil pretende substituir
o Bolsa Família. Além de ainda não ter uma clara dotação orçamentária, o
programa institui penduricalhos meritocráticos. Existem pontos questionáveis
sobre a relação entre creches e rede privada, uma vez que os municípios ficarão
fora desta intermediação[1],
bagunçando relações que podem ser melhor administradas a partir da esfera
municipal. Das muitas mudanças cujo objetivo parece ser “incentivar” crianças,
jovens e adultos a produzir melhor, a mais assustadora é certamente a que
propõe consignar o auxílio. Exatamente: um incentivo ao micro empreendedorismo
de pessoas em condição de extrema pobreza. Neste texto não será possível
detalhar as implicações e fragilidades contidas na proposta. Mas vale a pena
citar o conteúdo original da Medida Provisória 1.061 de 9 agosto de 2021 que
institui o Programa Auxílio Brasil e o Programa Alimenta Brasil[2]:
Da
consignação
Art.
23. Os beneficiários de programas federais de assistência social ou de
transferência de renda poderão autorizar a União a proceder aos descontos em
seu benefício, de forma irrevogável e irretratável, em favor de instituição
financeira que opere modalidade de microcrédito, para fins de amortização de
valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos e financiamentos, até o
limite de trinta por cento do valor do benefício, nos termos do regulamento.
Supondo
que o auxílio seja suficiente para cobrir o valor atual de uma cesta básica em
São Paulo, o que o governo pretende ao instituir um “consignado” sobre valores
que mal possibilitam a alimentação de uma família?
Sabemos
que há um risco real de que este auxílio reabilite Bolsonaro entre os mais
pobres. Isto porque a economia não crescerá em 2022 no ritmo necessário para
sanar a precariedade vivida por estas famílias. E possivelmente ele usará este
instrumento para percorrer o Brasil em sua campanha. O Bolsa Família sempre foi
o coração das administrações petistas. Não são poucas as críticas feitas ao
programa, não são poucos os defensores do programa. O certo é que vivemos uma
inflação galopante que inviabiliza qualquer recuperação da mínima dignidade da
população em situação de extrema pobreza. A linha entre os remediados e os
miseráveis vão perdendo seus contornos. É certo que alguém colhe estes
dividendos. Economicamente. Politicamente.
Nosso
desafio neste dia 15 de novembro é manter o diálogo com a população, evitando
que um genocida assuma o poder por mais quatro anos a partir da consignação
da miséria alheia.
[1] https://piaui.folha.uol.com.br/o-que-muda-no-novo-bolsa-familia/
[2] https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.061-de-9-de-agosto-de-2021-337251007
** Socióloga. Professora da Universidade Estadual do
Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Chefe do Laboratório de Estudos da
Sociedade Civil e do Estado (LESCE). Diretora da Associação de Docentes da UENF
(ADUENF).
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