Eis que que Sérgio Silva, o polímata da Unirio, coloca mais uma das suas criações no mundo.
“Irracionalismo
de conveniência: ensaio sobre a pós-verdade” nos chega pela editora curitibana
Appris e sintetiza o conjunto de inquietações teóricas e politicas do autor.
Sérgio não só revisita autores tão diferentes como Foucault ou Adorno. Bebe na
fonte destes, penso que para ganhar fôlego e fúria, e os renova para decifrar
os desafios destas inquietantes primeiras décadas do século XXI.
Para quem quiser
ter um petisco do debate, recomendo o vídeo abaixo da conversa de Sérgio com o
querido Fabrício Neves (Unb) sobre o trabalho recém-lançado:
Também abaixo
socializo o prefácio que elaborei para este livro do Sérgio. Aos navegantes
aviso que tive a honra de ter sido orientado por Sérgio em uma das minhas vidas
na UENF. Hoje eu e ele podemos dizer que somos amigos na universidade e brothers
de armas. Ou, para ser mais preciso, brothers nas artes das seis cordas.
Finalizo dizendo
que igualmente muito me honrou o convite para escrever este prefácio. Sem
dúvida minha contribuição não dá conta da complexidade e da sofisticação da
proposta corajosa de Sérgio. Mas,
funciona como um convite para o leitor fazer o mergulho neste lançamento.
Boa leitura!
Das conveniências do irracionalismo - Prefácio
de “O irracionalismo de conveniência: ensaio sobre a pós-verdade, fake News e a
psicopolítica do fascismo digital” de Sérgio Pereira da Silva. Editora Appris,
Curitiba, 2021
George Gomes Coutinho
A crise do setor financeiro e imobiliário em 2008 nos EUA. A conformação
das novas e perversas dinâmicas do sistema internacional. A ascensão e
previsível queda da Terceira Via inventada, recauchutada, testada e torpedeada
por seu perfil conciliatório e pusilânime com as estruturas sociais brutais do
mundo pós-fordista. A persistência da pauperização, da precarização do mundo do
trabalho, das promessas não cumpridas e tampouco remotamente entregues no mundo
do caráter corroído discutido por Richard Sennett[1]
há tempos atrás. O suposto empresário de si, o “empreendedor” envolto em
fantasias e auto-mistificações falsamente douradas, incensado a partir de nada,
frustrado, oprimido, adoecendo sistematicamente e criando índices de sofrimento
mental ainda não detectados em outros momentos históricos. A mônada com pés de
barro.
Em meio a tudo isso há ainda a pandemia de Covid-19 enquanto escrevo que
denunciou e segue denunciando em cores, áudios, movimento e índices as
diferentes faces da desigualdade em todos os aspectos por todo globo terrestre.
Esta sociedade complexa, intrigante e com traços distópicos incomoda e
pressiona por respostas. É com este momento, onde temos tudo e não temos nada
diante de nós, que Sérgio Silva e seu trabalho se defrontam. Diria que autor e
obra corajosamente se defrontam com
mais uma das grandes crises modernas nadando de peito aberto em mar revolto.
Mas, não obstante a humanidade já ter passado por momentos disruptivos e
francamente vertiginosos, Sérgio e seu livro ressaltam menos o que há de
cíclico em nossa conjuntura, o retorno da roda, e mais os elementos
particularmente trágicos que singularizam o que vivemos. Trata-se de um trabalho de diagnóstico do tempo presente.
Antes de prosseguir penso ser relevante fazer um paralelo com um autor
que se apresenta como alma gêmea e, não obstante a sua ausência no trabalho de
Sérgio, apresentou um opúsculo em 2009 que se coloca em comunicação tão íntima
com a proposta deste livro que podemos dizer que ambos funcionam como vasos
comunicantes. Falo do crítico cultural Mark Fisher (1968-2017) e seu Realismo Capitalista[2].
Sérgio Luiz Silva e Mark Fisher são teóricos críticos em estilo livre[3].
Fisher assinalava com alguma ironia, por vezes sarcasmo e muita indignação o
cenário de terra arrasada do mundo
pós-neoliberal, tudo isso em uma narrativa que vai da cultura erudita ao pop na
velocidade da luz. O ocidente após Thatcher, Reagan, Consenso de Washington e
afins não enveredou acriticamente somente em fórmulas austericidas que
redundaram em índices assassinos de concentração de riqueza. Esta sociedade que
vivemos hoje e que não nasceu ontem, sendo tudo engendrado nas últimas décadas
na verdade, contaminou algo além da imaginação de editoralistas da mídia convencional,
policy makers e agentes coletivos ou
individuais do setor financeiro. Fisher
denunciava nada menos que subjetividade humana mutilada, decepada pela
violência simbólica de slogans como “there´s
no alternative” tal como triunfante já bradou o thatcherismo. Tanto se fez,
tanto se repetiu que não há nada além de capitalismo (e desta modalidade
específica de capitalismo), que o homem comum assim olhou diante de si um
abismo que fornece um presente eternamente cinzento e bárbaro. Um Dia da
Marmota sem final feliz. E, como
sabemos, no risco de flertar em demasia com o abismo o observador pode ser
engolido confundindo-se simbioticamente com a escuridão.
Neste cenário em que o arbítrio se coloca como relação necessária e o interesse mal compreendido impõe uma ontologia postiça é que se apresentam os
sintomas discutidos por Sérgio em nossa contemporaneidade. Pós-verdade, fake
news, barbarização da opinião pública, autoritarismo, reedição do fascismo em
versão atualizada 2.0 e necropolítica. Em meio a tudo isso um capitalismo mais
do que anti-iluminista que se apresenta até mesmo com traços pós-humanos. Pulsão
de morte em ritmo de videoclipe.
As consequências desta sociedade não redundaram somente em indivíduos
dopados em um ciclo de consumo dia após dia de sujeitos aprisionados na
maldição da obsolescência programada. O projeto é de uma sociedade de tiranos e
narcisicamente orientada. Algo que a filosofia política há poucos séculos atrás
chamaria simplesmente pelo nome de guerra
de todos contra todos. Minha base humanista não vê a menor chance de isso
render bons frutos. E não tem dado.
Desta franca deterioração situada além dos limites da opinião pública,
que redundou na ressurgência dos projetos autoritários em diferentes graus e vitoriosos
nos processos de concorrência eleitoral, é difícil não reconhecer que ambos os
lados do espectro político contribuíram de maneira direta ou indireta. Nos
governos no flanco esquerdo, para além de abraçarem sem maiores questionamentos
o receituário fiscal, há aquela
arrogância costumeira. Oras, aos campeões morais o sucesso é inevitável! No
lado direito, compartilhando a mesma cartilha de políticas públicas fornecida
pelo ultraliberalismo, a insuficiência de enfrentarem de maneira honesta seus
próprios demônios. Entre progressistas e conservadores, em uníssimo, a falta de
imaginação política e de compreensão das experiências do século XX e das
demandas do século XXI. Neste ínterim, segue o mundo concreto desabando na
cabeça de milhões de pessoas que não sonhavam e não imaginavam mais qualquer
outro tipo de futuro. Eis o cenário onde grassa o chorume analisado neste
trabalho.
Sérgio compreendeu o caráter multivariado das patologias do nosso tempo. Se
armou com as armas de uma teoria crítica renovada que não abre mão da tradição
do materialismo multidisciplinar. Desejo e necessidade são olhados com lupa em
suas contradições, complementariedades e dinâmica. Teoria social, psicanálise,
sociologia e epistemologia são ferramentas habilmente combinadas. Como se não
bastasse ainda há Habermas, Foucault, Adorno, Elias, dentre outros, que são
mobilizados criativamente em novas sínteses arriscadas e que, por vezes, podem
fazer com que ortodoxos de diferentes matizes sintam certo desconforto. Mas,
pouco importa. O objeto em sua complexidade se coloca em posição de prioridade
analítica e as ousadias teóricas se justificam mais do que qualquer outra
coisa. Importa é compreender em minúcias o inferno semiótico em que estamos.
O livro de Sérgio é critica e compreensão.
Fornece um quadro interpretativo poderoso para compreendermos como a opinião
pública se tornou o ringue de vale tudo que conhecemos. E há, também, em meio
aos meandros argumentativos e analíticos que explicam o fascismo nosso de cada dia, espaço para uma esperança rebelde e
sutilmente subversiva. A utopia de Sérgio envolve a aposta em uma terapêutica
do diálogo como cura para a barbárie. Uma
atuação voltada interativamente para o entendimento, um uso da razão em uma
plenitude expressiva muito além do embotamento coisificado fornecido pela
sociedade dos cliques de curtir/descurtir. A utopia de Sérgio é pulsão de vida.
É interesse bem compreendido embebido do que há de melhor na tradição
iluminista com a qual Sérgio se agarra angustiado.
Por fim, tal como o título denuncia, temos sim um Irracionalismo de conveniência cinicamente mobilizado como resposta
aos afetos, frustrações e desalentos do horizonte árido dado pelo realismo
capitalista. Mas, o trabalho do Sérgio apresenta, na verdade, todas as inconveniências deste irracionalismo. O
preço a ser pago pelo uso de tal playbook
pode ser alto demais, insuportável eu diria. A questão é que temos tempo ainda
de evitarmos um ponto de não retorno. E este livro dá, nas brechas, algumas
possibilidades enquanto nos explica o funcionamento da hidra.
Campos
dos Goytacazes, 13 de maio de 2021.
Referências
BERMAN,
Marshall. Tudo o que é sólido desmancha
no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Cia das Letras, 1989.
FISHER, Mark. Capitalism realism: is there no alternative?
London: Zero Books, 2009.
HOLLERAN, Max.
Marshall Berman´s freestyle marxismo. In: New
Republic. New York City, New Republic, n. 14, abr. 2017.
SENNETT,
Richard. A corrosão do caráter:
consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo: Rio de Janeiro:
Record, 1999.
[1] SENNETT,
Richard. A corrosão do caráter:
consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro:
Record, 1999.
[2] A
edição brasileira foi publicada pela Autonomia Literária em 2020.
[3]
Devo esta expressão a Max Holleran em artigo publicado no ano de 2017 na
revista New Republic. Holleran
definiu o não menos inventivo Marshall Berman como praticante de um marxismo em estilo livre (freestyle marxism). Penso que o termo
aqui se adeque como mão e luva.
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