sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Rússia, Ucrânia e OTAN: a história sempre importa¹

 

                                             Imagem: The New York Post via Getty Images

Elencar os fatos recentes decisivos para esse conflito não é o mesmo que identificar um "mocinho" nesse trágico evento. O texto abaixo propõe a avaliação de alguns fatos para evitar uma petição de princípios.


Por Jefferson Nascimento*


Tenho acompanhado certos posicionamentos críticos às posições da Rússia nessa crise. São mobilizados argumentos do tipo: “Putin não é de esquerda e, mesmo mencionando Lênin, recorre a um nacionalismo que contraria o internacionalismo comunista”, “Não é uma briga contra o imperialismo, mas um conflito do imperialismo russo” e, por outro lado, “Putin quer reconstruir a União Soviética”. Ok, consideremos que as afirmações estejam corretas. Como elas explicariam a ocorrência do conflito? Ser contra guerras é uma posição óbvia para a maioria das pessoas do mundo. No entanto, as guerras ocorrem. Quais os fatos motivam as partes em um conflito? Apesar da impossibilidade de esgotar todos os componentes de um acontecimento histórico, o esforço deste texto é resgatar fatos importantes para a compreensão desse conflito.

No discurso de quase uma hora em 21 de fevereiro, Putin empenhou mais de 15 minutos para tecer críticas à política bolchevique de reconhecer a autonomia das repúblicas soviéticas, em consonância com o ideal comunista de autodeterminação dos povos. Essa longa introdução deve ser lida com preocupação, pois fica claro o incômodo de Putin com a política das nacionalidades dos bolcheviques, que seria responsável pela desastrosa forma de dissolução da União Soviética. Putin enfatiza sua contrariedade aos comunistas e enumera o que considera “erros de Lênin, Stalin e seus camaradas”. Em seguida, o presidente russo enumera erros das novas oligarquias e das autoridades políticas ucranianas. Segundo ele, a corrupção generalizada colocou a população ucraniana em situação crítica, torrando as heranças oriundas do Império Russo e da União Soviética, inclusive desmontando o importante parque industrial que era motivo de orgulho soviético. Além da corrupção, a opção da elite ucraniana foi construir um Estado artificial, sem relação com a história e cultura local, influenciada por modelos ocidentais. Mencionou a expansão do neonazismo, do autoritarismo, a continuidade da corrupção, a escalada da violência política na Ucrânia após o chamado golpe de Maidan (denominada “Revolução Maidan” pela extrema-direita), apoiada inclusive por serviços de inteligência de países ocidentais. O sinal de alerta está nas razões pelas quais Putin contesta o princípio da autodeterminação dos povos e isso pode ser lido por duas chaves. Externamente, um recado claro às demais ex-repúblicas soviéticas que se alinharem à OTAN e colocar em risco a integridade russa. Internamente, enfatizar o que considera “erros” dos bolcheviques, nesse caso em que a opinião pública o apoia, é uma forma de ampliar os custos para a defesa do legado soviético e, assim, estancar o crescimento da esquerda comunista. Afinal, em 2018, 66% dos russos se sentiam arrependidos do colapso da União Soviética e, em 2021, o Rússia Unida, de Putin, perdeu 21 cadeiras enquanto o Partido Comunista ampliou sua bancada.[i]

De fato, em qualquer ambiente de assimetria de poder não existe tranquilidade duradoura aos mais fracos. Portanto, novos avanços do imperialismo russo não podem ser descartados. Todavia, exclusivamente ao caso Rússia-Ucrânia-OTAN há indícios claros da escalada das provocações à Rússia que vamos historicizar abaixo.

1)   O acordo de independência da Ucrânia, assinado em 1991, previa a entrega das armas nucleares em território ucraniano para desmobilização na Rússia.[ii]

2)     Sem essa devolução, a Ucrânia seria a terceira potência nuclear do mundo, o que talvez explique a relutância da Ucrânia na devolução dos armamentos. Tal relutância culminou, em um acordo firmado em 14 de janeiro de 1994 entre Ucrânia, Rússia e Estados Unidos.[iii]

3)     A presença dos Estados Unidos no acordo de 1994 se deu no contexto do “Parceria pela Paz”, formulado durante o governo Clinton, visando pacificar as relações com o Leste Europeu por meio de “uma cooperação limitada” da OTAN com países da região. Na ocasião, Boris Yeltsin apresentou a posição russa: não aceitava seus vizinhos (à época, falava de Polônia e Romênia) como membros plenos da OTAN. E a inclusão da Ucrânia na aliança militar ocidental sequer era cogitada.[iv]

4)     Em 1997, na Cúpula de Paris, foi criado o Conselho OTAN-Rússia. Assim, a OTAN e a Rússia não seriam mais adversárias e trabalhariam para a criação de “uma área pacífica e duradoura euroatlântica”.[v]

5)     Em novembro de 2001, em acordo firmado em Praga, a OTAN colocou como critério para sua ampliação rumo ao Leste Europeu a “aquiescência russa”. Ou seja, há 21 anos a concordância russa era requisito para OTAN expandir para o Leste.[vi]

6)     Em maio de 2002 em Reykjavík, a Rússia e a OTAN, lideradas respectivamente por Putin e George W. Bush, firmaram um acordo em que a Rússia participaria das decisões do bloco com o mesmo peso que os membros, exceto em questões internas da OTAN.[vii]

7)     Em 27 de maio de 2002, nas vésperas da assinatura do Tratado de Roma, que formalizava o acordo anterior, a Rússia reafirmou sua contrariedade em relação à adesão de países do antigo bloco soviético na OTAN.[viii]

8)     Dois dias depois, o Tratado de Roma foi assinado com alterações em relação ao acordo de Reykjavík: a Rússia teria um papel consultivo para as questões nucleares, a defesa antimísseis e o combate ao terrorismo, sem ser participante do bloco e sem poder de veto à inclusão de novos membros. Estava revisto e selado o Conselho OTAN-Rússia.[ix]

9)     Em 2006, o descontentamento da Rússia com a postura da OTAN é exposto. O acordo de 2002 havia ocorrido com a continuidade da incorporação dos países bálticos à OTAN (Letônia, Estônia e Lituânia), além de outros do Leste (Bulgária, Eslováquia, Eslovênia e Romênia). Em 2006, no entanto, o ministro da defesa Serguei Ivanov denunciou o desrespeito aos acordos: a OTAN estava financiando infraestrutura e posicionando equipamentos militares nesses países. O Tratado de Roma não dava à Rússia o direito ao voto, porém os acordos em relação ao Leste não haviam sido revogados. Logo, a conclusão da incorporação desses países próximos à Rússia não deveria ser acompanhada de infraestrutura militar, como estava ocorrendo.[x]

Além dos impasses entre Rússia e OTAN, a questão da Ucrânia é complexa. Existem províncias de maioria pró-Rússia, como Donetsk e Lugansk (em Donbass), e outras alinhadas ao nacionalismo ucraniano. Essa instabilidade sempre foi usada de modo estratégico. Pelo lado da Rússia, para manter a Ucrânia como fronteira com o Ocidente. Pelo lado Ocidental, como uma possibilidade de se proteger e pressionar militarmente a Rússia. O acordo de Minsk de 2015, fixava termos para pacificar a relação Rússia-Ucrânia que não foram cumpridos. Por outro lado, mesmo com o fim da Guerra Fria, os objetivos de enquadrar aqueles que possuem elevado poder militar nunca saíram das pretensões da Casa Branca e do Pentágono.

Não à toa, os Estados Unidos passaram a apoiar a extrema-direita ucraniana para, através do seu nacionalismo, enfrentar os setores pró-Rússia. Nesse assunto, não há diferença entre Republicanos e Democratas. John McCain (republicano) participava de comícios do Svoboda. Na mesma época, a secretária-assistente de Estado do governo Obama, Victoria Nuland (hoje diplomata), se encontrava com lideranças do mesmo partido. Em 2014, esses vínculos já eram conhecidos e divulgados.[xi] Recentemente, veio à tona os negócios do filho de Biden na Ucrânia e, nos Estados Unidos, cresceu a pressão para o reconhecimento do regime instalado na Ucrânia após a tal “Revolução Maidan” como autoritário.

Para contextualizar, o Svoboda é um partido ultranacionalista associado a diversos grupos neonazistas, com destaque ao Pravy Sektor (no Ocidente, conhecido como Right Sector). Essa associação trouxe para o partido pautas antissemitas, supremacistas, anticomunistas, antianarquistas e contrárias à influência russa. O então presidente do Svoboda, Oleh Tyahnybok, proclamava a necessidade de libertar a Ucrânia da “máfia judaico-moscovita”. O vice-presidente do partido, além de citar constantemente Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda durante o nazismo, criou uma think tank chamada Centro de Pesquisa Política Goebbels. O Svoboda não restringiu sua atuação à Ucrânia e passou a articular a chamada Aliança dos Movimentos Nacionais Europeus.[xii]

Como foi possível notar em manifestações de apoio à Bolsonaro, o Svoboda e seus movimentos neonazistas tampouco se restringiram à Europa. Lembrem-se das falas de Sarah Winter, Daniel Silveira e outros bolsonaristas: “Vamos ucranizar o Brasil”. Lembrem-se ainda das bandeiras do Pravy Sektor nessas manifestações e dos tais “300 pelo Brasil”.  A proposta da bolsucranização do Brasil era clara: a conquista do Parlamento pela extrema-direita em consórcio com movimentos de agitação neonazistas. Sarah Winter e outros bolsonaristas, inclusive passaram por treinamentos na Ucrânia.[xiii]

O resultado dessa tal “Revolução Maidan” foi a deposição do presidente Viktor Yanukovych com posições políticas pró-Rússia. Os Estados Unidos apoiaram o movimento que combateria um governo corrupto, sem considerar que fora democraticamente eleito. Após a desestabilização operada com apoio dos Estados Unidos, foi eleito presidente da Ucrânia Volodymyr Zelensky, ex-humorista. [xiv]

Zelensky recorreu à retórica antipolítica e concorreu por um partido – até então pequeno – chamado Servo do Povo (mesmo nome da série de humor que atuou). Apesar de apresentar seu partido como de “Centro” e sugerir medidas comportamentais liberais (aborto, por exemplo), o presidente sempre foi bem próximo aos Estados Unidos. Não só isso, apesar da reduzida bancada do Svoboda no Parlamento, sob o governo Zelensky, órgãos do Estado fecharam meios de comunicação e prenderam políticos pró-Rússia, prendem constantemente opositores justificando serem “infiltrados russos”, mesmo quando protestam contra ações de um conselho municipal – como ocorreu com os 60 cidadãos presos em Kharkiv.[xv] Além disso, militantes neonazistas e nacionalistas de extrema-direita foram nomeados para cargos estratégicos do Estado ucraniano, o Batalhão Azov permaneceu incorporado ao Ministério do Interior. Esses detalhes ajudam a entender a escalada de leis e medidas contra descendentes russos, políticos e empresas de comunicação.[xvi] O clima de guerra civil permaneceu e provocou uma crise aguda que acelerou a emigração de ucranianos em busca de trabalho.

Zelensky também negociou com Trump quando o ex-presidente dos EUA queria a investigação de Hunter Biden e sua empresa Burisma, sediada na Ucrânia. A investigação ganhou oposição do Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos. Segunda consta, Alexander Vindman, membro do conselho especialista em Ucrânia, teria alertado para o risco de a investigação ser considerada “jogada partidária”. Vindman justificou “Sou patriota, é meu dever sagrado e minha honra defender o país”.[xvii]

É isso mesmo: um membro do Conselho de Segurança, nomeado por Trump, não considerou adequada essa investigação para “defender o país”. Afinal, de Obama à Trump, passando por McCain e Biden, a Ucrânia é um projeto de Estado e o apoio dos Estados Unidos à chamada Revolução Maidan não é um empenho no combate à corrupção e muito menos uma ode à soberania nacional. O ano era 2014 e esse apoio não estava fora do contexto da Primavera Árabe e nem das think tanks que se projetaram no Brasil durante e após as Jornadas de Julho.

Jeff Rogg, historiador da Inteligência dos Estados Unidos, comentou no último dia 25 um relatório que confirma o treinamento de forças especiais e oficiais da inteligência ucraniana pela CIA desde 2015. Rogg lembrou caso similar durante a Guerra Fria, interrompido com o massacre e deportação de milhares de ucranianos após a identificação da ação da CIA pela URSS. O historiador denuncia o risco dessa operação como uma forma da Rússia legitimar os ataques a civis para enfrentar e expulsar sabotadores, de gerar uma longa e perigosa instabilidade na Europa Central e Oriental, como ocorreu nas outras ocasiões em que os Estados Unidos recorreram a grupos paramilitares (como Iraque e Afeganistão), e a possibilidade das armas enviadas pela CIA parar nas mãos de organizações terroristas (a história da Al Qaeda é um exemplo).[xviii]

A construção do complexo de dutos Nord Stream 2, iniciado em 2011, tem papel importante na aliança e no fomento da extrema-direita ucraniana pelos Estados Unidos. O gasoduto Nord Stream 1 tanto fornece gás natural russo para o funcionamento da economia alemã, como permite aos alemães redistribuir o combustível a outros países europeus, sobretudo Áustria e Itália. O Nord Stream 2 conta com gasodutos e oleodutos para exportação também de petróleo russo à Alemanha. Por que o Nord Stream 2 é importante na questão?

1)     Sem ele, parte da exportação de gás e petróleo russo passa pela Ucrânia. Com ele, a Ucrânia tende a perder cerca de 1,8 bilhões de euros em taxas de trânsito já que os Nord Stream não passam pelo país. Não é, portanto, coincidência que o neonazismo com forte posição contrária à Rússia tenha ganhado espaço entre “oligarcas” e membros da elite política de Kiev após o avanço do projeto do Nord Stream 2.[xix]

2)     Os Estados Unidos alegam que a obra deixará a Europa mais dependente do gás e do petróleo russo. Ademais, o avanço da Rússia no fornecimento de combustíveis à Europa Ocidental afeta os Estados Unidos e a Arábia Saudita. Os sauditas, governados por uma violenta monarquia absolutista, têm na Europa o principal mercado consumidor para seus combustíveis. Como parte da aliança com os Estados Unidos, esses combustíveis são comercializados em dólar, o que obriga a manutenção de altas reservas dessa moeda nos países europeus, ajudando a financiar a dívida pública e a emissão de moedas estadunidenses. Por isso, duas das principais ameaças de sanções à Rússia é a suspensão do Nord Stream 2 e restrições na autorização de conversão de rublos (moeda russa) diretamente para euros e outras moedas europeias – e vice-versa.[xx]

3)     Além disso, o Nord Stream 2 desloca a posição alemã em relação à Rússia na OTAN e na União Europeia. Por isso, os alemães foram relutantes em censurar imediatamente a posição da Rússia, apoiando a Ucrânia e os aliados ocidentais. Só em 22 de fevereiro, após anos de pressão e com a invasão russa na Ucrânia em andamento, o governo da Alemanha congelou temporariamente a autorização do funcionamento do Nord Stream 2 e criticou a invasão russa.[xxi]

Voltando às indagações iniciais, de fato Putin é de direita, mas isso não é o ponto central para uma avaliação desse caso em particular, nem mesmo o é indagar se existe um imperialismo russo que deva ser responsabilizado pelo conflito. O que temos é a repetição, pela enésima vez, do descumprimento de um acordo firmado pelos EUA e OTAN. Assistimos isso em relação ao Acordo de Não Proliferação de Armas Nucleares. Em que a dureza com países suspeitos gerou inspeção ao Programa Nuclear Brasileiro (lembrem-se: a Lava Jato avançou também sobre ele) e sanções em relação ao Irã. Enquanto isso, Israel continuou a aumentar seu arsenal nuclear. É isso que está em jogo na Ucrânia. Houve toda uma estratégia de interferência na política interna do país (apoiando movimentos, protestos e guerrilhas), como ocorreu na Primavera Árabe. A partir desse processo de desestabilização e aumento da influência, os Estados Unidos avançaram com a proposta de inclusão da Ucrânia na OTAN, participaram de projetos de modernização do espaço aéreo ucraniano e construíram o Centro de Operações Navais em Ochakov, facilitando acesso à tropa naval russa do Mar Negro. Não há nada de autodeterminação ucraniana nesse patrocínio estadunidense à extrema-direita. O apelo à soberania ucraniana é uma justificativa para descumprir acordos firmados na concepção do Conselho OTAN-Rússia e impor seus interesses geopolíticos e econômicos. Isso ocorre em um contexto diferente dos anos 1990: a Rússia se reorganizou economicamente e Putin não age como Boris Yeltsin nas questões relacionadas à soberania e ao Ocidente.

Ou seja, ainda que o imperialismo russo mova Putin a reconhecer a soberania das províncias rebeldes pró-Rússia e a avançar militarmente sobre o vizinho, não se pode ocultar que o outro imperialismo avançou militarmente ali e progride em todo mundo, seja pela força das armas ou pela desestabilização interna de países considerados estratégicos. A condenação à invasão russa na Ucrânia não pode ser feita sem considerar a ação da outra potência que, vez ou outra, culmina num humorista ou num boçal submisso na presidência dessas áreas de interesse.

Jefferson Nascimento é doutorando em Ciência Política (UFSCar), mestre em Ciências Sociais e professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP). É militante da OCAC, membro do Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos (NEPPLA) e autor do livro “Ellen Wood – o resgate da classe e a luta pela democracia” (Editora Appris)



¹ Esse texto é uma versão atualizada em 02 de março do artigo escrito para o Jornal Vanguarda 26 e publicado neste blog. Foram incorporados as questões sobre o acordo de independência e a entrega das armas nucleares e as análises do historiador Jeff Rogg. Meu agradecimento a Renato Nucci Jr. pela leitura e debate fundamentais ao aperfeiçoamento do texto.

[i] Ver: https://www.youtube.com/watch?v=lGqVwFaLBJg. Ver também: https://oglobo.globo.com/mundo/em-votacao-marcada-por-denuncias-de-fraude-partido-de-putin-mantem-supermaioria-25205412

[ii] Ver: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/1994/1/15/mundo/6.html

[iii] Ibidem

[iv] Ibidem

[vii] Ibidem.

[xii] Ibidem

[xv] Ibidem


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