PARA ALÉM DA ELEIÇÃO - AS BRUMAS DO FUTURO **
Christian E. C. Lynch ***
Se eu fosse capaz de ver algo do alto da montanha, veria que os próximos anos seriam marcados pela conclusão do processo de rearticulação do sistema começada em 2013-2016.
O sistema se rearranjaria polarizado. À esquerda/centro-esquerda, as forças históricas oriundas da nova república (no momento, em torno de Lula), comprometidas com o progresso. À direita, as novas forças conservadoras comprometidas com o atraso (em torno dos Bolsonaros).
O sistema partidário está se recompondo. A federação somada à cláusula de barreira permite uma recomposição incremental rumo a um sistema marcado pela menor fragmentação e maior consistência ideológica.
O quadro ideológico geral é estruturalmente mais conservador do que o passado recente. A crise da globalização e a emergência da direita radical jogaram o centro pra direita. Não é à toa que Lula está se movendo pro centro e empurrando junto o PT. O mesmo movimento fez o PSB.
À direita, vemos o "centrão" se converter abertamente ao conservadorismo ideológico. Outrora, no mundo da nova república, o "realismo político" conservador dessa turma tinha de se fazer de pragmático para ocupar o poder em governos progressistas. Isso acabou.
Com a mudança do clima ideológico na direção conservadora, o Centrão pode se assumir conservador. Contribui para isso, claro, o poder acumulado no domínio do congresso das emendas orçamentárias. Mas também com Bolsonaro o centrão, como antes os militares, encontrou seu homem.
Por quê? O sonho do Centrão era encontrar um Sarney ou um Temer com votos. Bolsonaro tem votos, mas resistia em vestir o figurino da normalidade. Daí o esforço do Centrão em enquadra-lo, afinal bem sucedido diante do fiasco do golpismo de 7 de setembro e a ameaça de impeachment.
Ha outras razões para o centrão virar uma coalizão bolsonarista. Uma delas é o ânimo antirrepublicano e antijudiciarista. Bolsonaro é um aliado poderoso no desmonte das instituições de combate à corrupção política. Gente como Aras na PGR e Kassio, no STF são o seu sonho dourado.
Por fim, o Centrão apoia Bolsonaro e o "civiliza" porque o presidente detesta governar, para alem de blindar sua família e aliados dos braços da Justiça. O programa de Bolsonaro se resume em parar o relógio da história, razão pela qual pode delegar a administração ao Centrão.
Entregar o grosso do governo e da administração aos cupins centrônicos garante por inércia a política conservadora estilo Sarney. Bolsonaro se contenta em ficar de garoto propaganda do populismo reacionário, andando de jetski e apresentando o "Show do Gado" quinta à noite.
Quanto ao novo regime de governabilidade, o objetivo do Centrão é consolidar o status quo, substituir o presidencialismo de coalizão por um semipresidencialismo que garanta a ascendência legislativa contra o judiciarismo do STF. O STF e o PGR sendo neutralizados pelas nomeações de figuras anódinas ou conservadoras, pervertendo os princípios originais da Constituição.
Lula no poder vai tentar recuperar o presidencialismo de coalizão para poder organizar uma agenda progressista. Já o centrão e Bolsonaro vão apoiar o semipresidencialismo como modelo de governança da inércia, destinado a gerir a rotina e congelar o presente.
É como as brumas do futuro revelariam o futuro posterior à eleição, se eu tivesse uma bola de cristal.
* Ilustração de Koji Yamamura. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-21163117, acesso em 27 de março de 2022.
** Texto originalmente publicado no perfil do Facebook do autor em 25 de março de 2022 (https://www.facebook.com/christian.lynch.5). Reproduzimos aqui com a autorização do próprio Christian.
*** Cientista político e professor da área no IESP/UERJ. É autor de “Monarquia sem despotismo e liberdade sem anarquia” publicado pela editora da UFMG, “Wanderley Guilherme dos Santos: a imaginação política brasileira - cinco ensaios de história intelectual” publicado pela Revan, dentre outras obras, coletâneas e inúmeros artigos nos campos do Pensamento Político Brasileiro, Teoria Política e História das Ideias Políticas.
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