"Tutto nel mondo è burla"
Milton Lahuerta*
Roberto
Schwarz nos deu uma chave analítica definitiva quando colocou no centro da
interpretação da sociedade brasileira a escravidão, agregando à violência que
lhe é constitutiva o favor e as relações de dependência pessoal que ela gera.
Orientada por Marx e inspirada em Antonio Cândido da "Dialética da
malandragem", a reflexão de Schwarz possibilita uma abordagem que permite
tratar de nossa miséria ideológica e das ambiguidades do liberalismo, sem cair
em armadilhas culturalistas moralizantes, mas procurando apreender a
determinação social das ideias e dos valores. Lança luz assim sobre a
debilidade da ordem normativa e sobre aquilo que se convencionou chamar de
"jeitinho brasileiro" (Roberto da Matta), para caracterizar a cultura
política que vige no país e tratar de nossa imensa dificuldade de estabelecer
regras impessoais e de efetivar a universalização da lei. No mais das vezes,
diante de um ilícito, a tendência inicial é a de nos mostrarmos extremamente
rigorosos e de exigirmos punição exemplar para quem o pratica, até que isso
envolva alguém com quem mantemos relações pessoais ou admiramos. Nessas
situações, é comum a manifestação de uma espécie de "moralidade
elástica" que faz com que uma parcela expressiva dos brasileiros seja
extremamente leniente com os "seus" e absolutamente rigorosa com os
"outros", com os "diferentes". Esse mecanismo ideológico é
constitutivo de nossa cultura política e nos permite compreender a debilidade
da ordem normativa no país, traduzida no bordão que diz que aqui "tem lei que
pega e lei que não pega" e pelo culto da malandragem como estilo de vida e
expressão do "caráter nacional".
Essa
pequena introdução se justifica em face das reações daqueles que insistiam no
"mantra" de que "não tinham bandidos de estimação" e que
agora mostram-se totalmente coniventes com relação ao ex-ministro da Educação e
aos "pastores" que foram detidos pela PF. É notório que Milton
Ribeiro, que não passa de um "homem sem qualidades", foi indicado
pelo (des) presidente para cumprir rigorosamente suas ordens e para agradar sua
base de apoio evangélica, em seus delírios pseudo moralistas. Há que se notar
porém que, diferentemente do que parece num primeiro momento, estamos diante de
uma situação na qual os verdadeiros "bandidos", mais até que os pastores
salafrários e o ex-ministro metido a pistoleiro, com Ciro Nogueira no comando,
articulam-se com prefeitos, transformando as gordas verbas do FNDE num meio de
encher os bolsos -- os seus e o dos aliados. O nome disso é desvio de função e
apropriação indébita do Fundo Público. E sem sombra de dúvida pode ser
enquadrado como um caso de corrupção em larga escala e de formação de
quadrilha. O problema é que o chefe dessa quadrilha é justamente o (des)
presidente, que orientou o ex-ministro pistoleiro a dar um atendimento especial
aos "pastores" salafrários, com quem, inclusive, ele se encontrou
dezenas de vezes no palácio do governo. Como medida para tentar se blindar e
para manter o "discursinho" de que em seu "governo" não há
corrupção, o (des) presidente decretou 100 anos
de sigilo sobre esses seus encontros com os "pastores" e,
depois de dizer que "queimava a cara" pelo ex-ministro, jogou-o aos
leões como se tudo tivesse ocorrido por falha exclusiva dele!
Haja "moralidade elástica" para seus apoiadores continuarem a justificar tanto descalabro!
* Milton Lahuerta é professor de Teoria Política na Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Campus de Araraquara. É autor de inúmeros artigos, capítulos de livros e coletâneas nas áreas de pensamento social brasileiro, sociologia dos intelectuais e teoria política. Publicou, em 2014, o seu "Elitismo, autonomia, populismo - Os intelectuais na transição dos anos 1940" pela editora Andreato.
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