quinta-feira, 8 de setembro de 2022

Precisamos falar sobre Simone Tebet

Fonte: Metrópoles.

Precisamos falar sobre Simone Tebet

Paulo Sérgio Ribeiro

Simone Tebet, senadora federal (MDB-MS) e candidata a Presidente da República, ganhou projeção nacional por sua atuação na CPI da Pandemia (2021) e, recentemente, no debate dos presidenciáveis transmitido pela TV Bandeirantes. Sua assertividade na interlocução com Bolsonaro (sem, claro, abrir mão do roteiro lavajatista contra Lula) a sagrou como a “vitoriosa” do dia tanto para observadores especializados do processo eleitoral quanto para pessoas comuns que, estoicamente, se dispuseram a assistir àquele telecatch com réplicas e tréplicas cronometradas e tempo algum para expor proposições racionais sobre assuntos de interesse nacional.

Parte do êxito da sua performance foi atribuído à sua postura altiva no primeiro embate da corrida presidencial na tevê aberta. No Brasil de Bolsonaro, mais do que nunca, eleições majoritárias e proporcionais reservam às mulheres candidatas testes sucessivos de resiliência ao compeli-las, em algum momento, a assumir o custo de agirem (ou, pior, de enxergarem a si mesmas) como “homens do sexo feminino” para terem vez e voz diante dos padrões de representação coletiva em sua intersecção com o machismo.

Se assim o é, o entusiasmo de alguns(mas) com a prócer da “terceira via” deve ser avaliado como sintoma de um mal-estar produzido pela sub-representação da população feminina nos poderes executivo e legislativo. Ora, não seria para menos: em 133 anos de história republicana, tivemos apenas uma mulher eleita Presidente da República, Dilma Rousseff, cujo segundo mandato fora interrompido por um golpe parlamentar em 2016. No Congresso Nacional, por sua vez, a representatividade feminina apresenta um quadro não menos desfavorável: das 513 cadeiras da Câmara dos Deputados, apenas 77 são ocupadas por mulheres (15%) e das 81 cadeiras do Senado Federal, apenas 12 mulheres a preenchem (14%)[1]. Aliás, nunca é demais lembrar que a proporção da população feminina (51,8%) se mantém superior à masculina (48,2%) no país, conforme a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua)[2].

Igualdade de gênero e representação política, pois, vieram à baila neste início da campanha e não há por que ignorarmos as virtualidades de sua tematização para uma sociedade civil fraturada pelo bolsonarismo, esse conjunto de valores e práticas autoritários que encontra na masculinidade hegemônica seu elemento catalizador. Contudo, para quem vislumbre um dia viver numa democracia substantiva, explorar a chave analítica da igualdade impõe cautela diante dos pretensos ares feministas bafejados por Tebet. Duas frases ditas por ela no debate da Bandeirantes[3] são relevadoras de uma inflexão que, à primeira vista, soaria familiar na boca de qualquer mulher progressista:

“Por que tanta raiva das mulheres? (pergunta para Bolsonaro)”

e

“O candidato Bolsonaro defendeu um assassino de mulheres (Cecy Cunha). Ameaça jornalistas. Comete misoginia.”

Se perscrutarmos nossa democracia parlamentar assim estabelecida sem tomar, em absoluto, por critério de verdade que Tebet sabe, como qualquer outra mulher, as agruras de sua condição humana em um mundo sexista, poderemos considerar que os vínculos de solidariedade entre aquela notável da política tradicional e suas congêneres – não proprietárias de terras em território indígena e não herdeiras de um capital político passado de pai para filha[4] – carecem de uma adesão coerente a uma pauta que possamos identificar como própria ao campo democrático e popular. Em seu lugar, deparamos tão somente com o artifício do purplewashing: uma estratégia discursiva, tão bem descrita por pensadoras feministas, que nada mais é do que tomar de empréstimo a questão da igualdade de gênero para defender as hierarquias sociais perante qualquer avanço igualitário na partilha do poder e na distribuição de riquezas.  

Ora, bastaria uma simples consulta ao sítio oficial do Senado Federal, mais precisamente ao perfil da ilustre senadora, para confirmarmos que, em 11 de julho de 2017, ela disse “sim” à Reforma Trabalhista do governo ilegítimo de Michel Temer. Essa reforma, entre outros retrocessos, instituiu um afrouxamento das garantias de proteção às trabalhadoras gestantes em locais insalubres. Para quem tiver tempo e curiosidade, recomendamos ler as notas taquigráficas do Senado Federal, especialmente a justificativa de Tebet para o seu voto favorável a uma medida tão danosa para a saúde das mulheres sob uma legislação trabalhista eminentemente patronal. Outro exemplo não menos digno de nota foi seu voto favorável ao impeachment sem fundamento legal da Presidenta Dilma Rousseff:


Diante de tantos elementos desabonadores de quem se chegou a creditar um “fato novo” nas eleições de 2022, por que o blefe feminista de uma típica porta-voz do liberalismo conservador colou? Porque recorrer à política da identidade serve a qualquer um(a), mas comprometer-se com o universalismo enquanto valor político de uma esquerda que não teme dizer seu nome – parafraseando aqui o título de um livro provocador de Vladimir Safatle[5] – não é mesmo para todo mundo.

Afirmar, como Safatle o faz, que o igualitarismo é o horizonte de realização inegociável da esquerda a respeito da luta contra a desigualdade econômica e, não menos, da abordagem dispensada às demandas por reconhecimento social de minorias não é relegar as últimas ao segundo plano, mas admitir que uma política que tenha por eixo a afirmação da diferença como o sucedâneo dos conflitos de classe omite que o desiderato histórico de homens e mulheres dispostos à crítica do poder é reconstruir formas de vida que correspondam a uma “universalidade verdadeiramente existente na vida social”[6] sem, entretanto, confundir tal desejo emancipador com a suposição de que a sociedade seja “composta de grupos distintos muito organizados do ponto de vista identitário”[7]. Do contrário, o campo das diferenças poderá ser pautado por gente como Tebet qual fosse a voz uníssona das mulheres brasileiras e não uma ruralista cuja origem, interesse e visão de mundo são localizados na fração mais retrógrada da nossa classe dominante: o patronato representado por latifundiários, fazendeiros, pecuaristas, exploradores de indústria extrativista que, hoje, promovem uma frente neocolonial no hiterland brasileiro.



[1] Agência Brasil. Com pouca representatividade política, mulheres ainda buscam direitos. Edição de 09/03/2021. Disponível aqui.

[2] IBGE Educa. Quantidade de homens e mulheres. Disponível aqui.

[3] O Tempo. Tebet no debate da Band: cinco frases que resumem a participação da candidata. Edição de 29/08/2022. Disponível aqui.

[4] Agência Pública. Fazendeira e ruralista, Simone Tebet perde aliados no MS ao se afastar do bolsonarismo. Edição de 05/07/2022. Disponível aqui.

[5] SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome. São Paulo: Três Estrelas, 2012.

[6] Ibid., p.34.

[7] Ibid. p.35.

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