Guerra, terror e ultraje seletivo*
*Publicado
originalmente no jornal Folha de S. Paulo.
Salem
Nasser**
Imagine. Imagine que
2,5 milhões de judeus vivem há 17 anos numa prisão a céu aberto e que seu
carcereiro decide sobre o que entra e o que sai, energia, comida, remédios…
Imagine que famílias judias são cotidianamente expulsas de suas casas, suas e
de seus antepassados, de sua terra por gerações, para dar moradia a não-judeus
vindos do mundo inteiro. Imagine que judeus vivem cercados de muros e cercas e
não podem andar pelas mesmas ruas que são livres apenas para não-judeus.
Imagine que os
judeus têm a sua a identidade nacional, a sua própria existência enquanto povo,
negada. Imagine que alguém, um ministro, por exemplo, diga que os judeus são
animais a serem eliminados. Imagine que o carcereiro anuncia, e logo cumpre,
que cortará o acesso à água, à luz, à comida, dos judeus. E imagine que aqueles
2,5 milhões de judeus, na sua prisão, são alvo, por dias seguidos, das armas
mais inteligentes e mortais do mundo, e por bombas de fósforo branco e que, por
exemplo, só na primeira noite de bombardeios, 140 crianças morrem….
Agora, imagine que
os judeus são palestinos. Você acordou, finalmente, agora? Se não acordou, vou
dar uma dica: você precisa imaginar que o palestino é um ser humano como o
judeu; e você precisa imaginar que, assim como os judeus e todos os demais
seres humanos, os palestinos podem ser civis. Crianças tendem a ser civis.
O jornal Folha
de S. Paulo passou a chamar o Hamas de grupo terrorista porque
“Segundo o Manual da Redação, a palavra terrorista deve ser usada
para qualificar quem “pratica violência indiscriminada contra não combatentes a
fim de disseminar pânico e intimidar adversários””.
Não li versões
recentes do Manual da Redação da Folha, mas lembro com saudades de
uma propaganda, histórica, que o jornal veiculou e que terminava com uma belíssima
frase: “é possível contar um monte de mentiras dizendo só a verdade!”.
A Folha parece
não querer se dar ao trabalho nem mesmo de dizer a verdade. Ela reporta o que o
Hamas usou como justificativa para o ataque, mas não nos conta que é verdade o
que o grupo disse. A verdade pode não justificar os atos, mas não deixa de ser
verdade. Reporta o que Benjamin Netanyahu disse, mas apenas a parte que
interessa a Benjamin Netanyahu.
A Folha pode
chamar o Hamas de grupo terrorista para se manter fiel ao seu Manual,
mas, para manter-se fiel ao mesmo Manual, precisaria se referir a
Israel como um Estado terrorista e aos seus governantes como terroristas, de
acordo com a sua própria definição.
Não discutirei o
conceito técnico de terrorismo, que não existe, mas direi algo sobre o uso
retórico da palavra.
Antes, no entanto,
digo que existem tratados internacionais que estabelecem o Direito
internacional humanitário – o que se pode e o que não se pode fazer na guerra
–, que definem o crime de genocídio, os crimes de guerra, os crimes contra a
humanidade, entre estes o crime de apartheid.
Se alguém se der ao
trabalho de ler, verá que, tecnicamente, Israel viola todas as normas possíveis
do Direito humanitário e verá que os governantes e militares israelenses são
criminosos de guerra e culpados de crimes contra a humanidade, inclusive aquele
de apartheid. Não chego ainda a dizer que sejam culpados do crime
de genocídio porque não tenho certeza de que a limpeza étnica de um povo
sobretudo pela expulsão do território equivale, exatamente, à tentativa de
operar a “destruição, total ou parcial, de um grupo nacional, étnico, racial ou
religioso”.
Assim, se a Folha faz
questão de abarcar, no modo como se refere ao Hamas, o que percebe como
violações do Direito humanitário ou como crimes de guerra ou, ainda, crimes
contra a humanidade, eu recorreria a outra terminologia que não a de
terrorista.
Mas, para fazer bom
jornalismo, precisaria se referir, ao menos, do mesmo modo a Israel, suas
autoridades e seus militares.
Bom jornalismo? Não
quero ensinar a missa ao vigário, mas a Folha deve saber, não
pode não saber, que quando se refere ao Hamas como grupo terrorista, nada mais
do que diga ou reporte interessa ou fará qualquer diferença! Assim que diz
“grupo terrorista” ela tira qualquer razão aos palestinos e permite tudo a
Israel. Todos os crimes são permitidos contra o terrorista! Esse é o poder
retórico da palavra.
Se isso não consta
do seu Manual da Redação, recomendo fortemente a sua reciclagem.
**Salem Nasser é professor da Faculdade de Direito da FGV-SP.
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