terça-feira, 31 de outubro de 2023

Reminiscências do trabalho etnográfico

 Reminiscências do trabalho etnográfico

Carlos Abraão Moura Valpassos




Capa do Livro  "Argonautas do Pacífico Ocidental", de Malinowski, na edição brasileira feita pela Editora Ubu - a edição mais bonita já publicada.


Em algum momento no meio da crise sanitária de covid-19, assisti uma palestra online do Roberto DaMatta. Nela, aquele senhor, já na casa dos seus 80 anos, exumava suas experiências de trabalho de campo entre populações indígenas brasileiras. Até aí tudo caminhava como mais uma palestra sobre Antropologia, mas, em determinado momento, ele indagou a si mesmo e também à platéia: como ele, um então jovem na casa dos 20 e poucos anos, poderia lidar com as experiências humanas sendo ele mesmo uma pessoa ainda tão inexperiente? Ele não havia sofrido, ainda, a perda de um filho, nem a perda de sua esposa, mas teria contato com pessoas que tinham sido atravessadas por tais experiências e, por isso, teria que lidar com aquelas histórias. 


Não recordo de nada do que foi dito depois. A única coisa que ficou em mim foi esse trecho. E mesmo com todas as discussões já apresentadas sobre o trabalho de campo em Antropologia, aquela breve reflexão ficou impregnada em mim desde então. Sempre apostei na comunicação como atributo capaz de permitir a compreensão de experiências que não vivemos e de culturas onde não fomos criados. Todavia, a questão ali me parecia, e ainda me parece, ir além disso. Pois há uma diferença entre a história ouvida e a história vivida - e por mais que tentemos aproximá-las, elas não são exatamente a mesma coisa. Há algo na experiência que a torna especial - a sociologia pragmatista que o diga. 


Hoje, dia 31 de outubro de 2023, acordei com essas questões em mente, pois deveria dar uma aula sobre Bronislaw Malinowski, mas tive que cancelar o encontro em "virtude" de uma gripe que me levou não apenas o ânimo, mas também a voz. E sempre que me preparo para discutir Malinowski, me dou conta de como aquele polonês e seus "Argonautas do Pacífico" atravessaram a vida de gerações e gerações de antropólogos, direta ou indiretamente, ao longo do século XX e do século XXI. Foi assim, e não num delírio febril, que recordei da palestra de Roberto DaMatta. E foi assim que, mais uma vez, comecei a me questionar sobre a maturidade que possuía para lidar com as histórias sobre abortos que ouvi e com as quais tive que lidar há cerca de 15 anos atrás. Histórias que ainda me acompanham - e me surpreendem. Histórias que não geraram apenas uma tese, mas que também me transfomaram: enquanto pessoa e enquanto pesquisador, se é que podemos realizar tal separação.


Enquanto tudo isso se misturava nos primeiros minutos desta manhã, levei meu filho, agora com 17 anos, para a escola. Quando ele desceu do carro, adolescente cabeludo ávido por se afastar de sua figura paterna, reparei o óbvio: ele cresceu e não é mais o menino que peguei na escola naquela manhã de março de 2020, quando as aulas foram ministradas presencialmente pela última vez daquele ano. Além do Theo, muita coisa mudou nesses quase quatro anos. Arrisco dizer que o mundo hoje é outro, que mantém os mesmos problemas, certamente agravados, mas que incorporou outros mais. Além disso, os "micromundos" do cotidiano de cada um também foram alterados. Casais se separaram, familiares morreram, doenças vieram. As mudanças da vida, sempre presentes, parecem ser destacadas por esse hiato pandêmico.


E foi nesse mergulho comparativo entre passado e presente que o trabalho de campo novamente me pegou. Lembrei de Sêo Antônio, um senhor de Ponta Grossa dos Fidalgos que, lá no início dos anos 2000, era apontado como o homem mais velho do arraial. As idades variavam, mas sempre impressionavam: alguns falavam em 107 anos, mas havia certo consenso de que ele tinha 112. "Você tem que conhecer ele!". E lá fui eu, com meus 20 e poucos, sem filho e sem perdas, conhecer aquele senhor que, mais que uma outra pessoa, constituía-se como um outro mundo e como o representante de outros tempos. Eu esperava uma conferência sobre muitas histórias do passado, mas aconteceu algo diferente. Sêo Antonio tinha dificuldades para ver e ouvir, mas estava bastante lúcido. Ele acendeu um cachimbo e, com certa dificuldade, começou a falar do quanto estava triste e de como gostaria de morrer logo, pois se sentia sozinho: seus pais, sua esposa, seus irmãos e seus amigos haviam, todos, morrido. Ele era cuidado pela filha caçula, que na época já tinha mais de 70, e não ficava "sozinho" - mas ele se sentia assim. Eu, aos 20 e poucos, esperava encontrar alguém feliz por ter passado dos 100, mas encontrei alguém cansado. O mundo sem os pais, sem os irmãos, sem a esposa e sem os amigos, enfim, sem os pares etários, não era um mundo que fazia muito sentido - e aquilo me atordoou.


Pouco tempo depois compartilhei a experiência com meu orientador, Arno Vogel, que, com seus 50 e poucos à época, destacou a alteridade daquele encontro. O que Sêo Antônio falava fazia sentido, mas era estranho - e era estranho porque nós não tínhamos como dar conta daquele tipo de experiência. Arno, todavia, já tinha vivido mais e conseguiu ponderar sobre as dificuldades de chegar a uma idade tão avançada - e sobre o impacto da perda dos pares.


Alguns anos depois eu iria ao funeral de Sêo Antônio - um evento que parou Ponta Grossa dos Fidalgos, onde "todo mundo é primo" e, portanto, onde todo mundo tinha algum parentesco com Sêo Antônio. O evento deve estar registrado em alguma caderneta de campo, mas o que ficou registrado na memória foi aquela conversa em que ele lamentava as ausências e manifestava o desejo de reencontrar com os seus. Eu, sempre meio descrente, pensava que, não havendo além, não haveria reencontro e portanto era melhor ficar onde se estava, por via das dúvidas. Hoje, tantos anos depois, num mundo que não é o mundo em que sempre lutei para viver, exumar essas memórias é inquietante. Mesmo na ausência de um além e na impossibilidade dos reencontros, o mundo transformado, dilapidado e destituído do que antes o tornava encantador, ainda é um mundo capaz de despertar o fascínio e a alegria necessários para nele permanecer?


As pesquisas de Mirian Goldenberg sobre a "Bela Velhice", em que ela busca compreender o processo de envelhecimento privilegiando as narrativas de pessoas com mais de 90 anos, parecem destacar que encanto e alegria constituem o combustível dessas pessoas que avançam no tempo, apesar do tempo. As redes de relações mostram-se fundamentais para que as pessoas permaneçam ativas. Os afetos, todavia, não são necessariamente aqueles provenientes dos grupos familiares: a base das sociabilidades parece vir das amizades, muitas delas também longevas. E o mundo, assim, constitui-se não apenas como o mundo material, mas sobretudo como o mundo das relações - relações que se alteram e que se desfazem, mas também se perpetuam ou se renovam.


Ainda muito jovem para entender as angústias epistemológicas de Roberto DaMatta e os lamentos da solidão de Sêo Antônio, mas já não tão jovem como há 20 anos atrás, continuo me impressionando com os desdobramentos reflexivos promovidos pelas experiências de trabalho de campo, alicerce desse "ofício contemplativo", como diria Arno em suas aulas, que é a Antropologia. Malinowski não teve uma vida muito longa, mas deixou dádivas que 101 anos depois nos permitem pensar sobre as sociedades - e sobre a vida. 


Ps.: Gosto de pensar que Sêo Antônio está rodeado pelos seus entes queridos, às margens da Lagoa Feia.


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