domingo, 27 de novembro de 2016

O senso do senso comum

O senso do senso comum*

George Gomes Coutinho **

A sociologia, na sua tarefa hercúlea de compreender nada menos que as relações sociais e a sociedade, observa que há um tipo de conhecimento muito específico utilizado no cotidiano. A este conhecimento chamamos de “senso comum”. É utilizado como mediador nas interações cotidianas e representa, sem qualquer idealização, os valores mais marcantes de um determinado momento histórico em uma dada configuração societária. Entramos aí no “conhecimento da vida cotidiana” como os austríacos/americanos Peter Berger e Thomas Luckman queriam. Ou, em uma vertente francesa, a boa e velha doxa de Pierre Bourdieu.  

O poder deste tipo de conhecimento é imensurável. Justamente por não admitir ser questionado, há no senso comum ares de naturalidade e auxilia a dar o formato das relações sociais. Hierarquias valorativas são construídas, o que inclui definir o bom e o mau gosto estético, agrupamentos sociais são bem recebidos ou estigmatizados, comportamentos são censurados ou exaltados, etc.. A lista de efeitos obtidos é imensa. Justamente pelo fato deste conhecimento não ser meramente contemplativo o efeito é concreto. Mirando na enorme capacidade humana de produzir abstrações, certamente o senso comum é o campeão em decantar na realidade.

O único remédio possível seria o da crítica sistemática da “mera opinião”. O rei está e sempre esteve nu. Hierarquias sociais, de toda e qualquer expressão, são construções humanas. Não são naturais e inatacáveis. Contudo, o senso comum, por se apresentar muitas vezes na forma de juízos práticos, atua de forma repressiva em prol de sua própria existência. Embora muitas vezes frágil na sua construção, é este senso comum que permite, dentre outras variáveis, que a vida prática na sociedade permaneça tal qual ela se apresenta. O conjunto de idéias vitoriosas em angariar corações e mentes luta de forma conservadora em prol de sua sobrevivência. O grande vencedor é o status quo. Eis o senso do senso comum.

Por isso na grande área de humanidades, onde seus profissionais vivem “inventando moda”, sociologia, história ou filosofia costumam ficar na berlinda em conjunturas como a nossa. E não é por outra razão que o anti-intelectualismo voltou com tanta energia nos tempos que correm.


* A versão original deste texto foi publicada no jornal Folha da Manhã em 26 de novembro de 2016.

** Professor de Sociologia no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

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