domingo, 8 de janeiro de 2017

O suicídio como síntese da sociedade

O suicídio como síntese da sociedade* 

George Gomes Coutinho **

A virada de 2016 para 2017 nos brindou com mais uma tragédia. O assassinato de uma família seguida do suicídio do próprio autor em Campinas, SP. Em um breve diálogo com um amigo que milita na medicina o diagnóstico psiquiátrico foi sintético: um surto psicótico. Um outro reforça o ato como crime passional. Porém, irei me ater ao “testamento” do suicida/assassino.

Cartas de suicidas são fundamentais para compreendermos o incompreensível. Permitem trafegar pelo consciente, aquilo que se apresenta como o conjunto de motivações explícitas e, de maneira menos óbvia, vislumbrar as entrelinhas sombrias da psique de quem decide como último ato tirar a própria vida. E a carta de Sidnei Ramis de Araújo, o “homem de bem”, diz muito mais sobre a nossa sociedade do que se pode supor. Vivemos em uma sociedade pautada pela vingança. Um ato individual pode ser uma síntese cristalina de um momento histórico.

A pauta política apresentada pela carta apresenta o seguinte conjunto de elementos nada estranhos para quem costuma ler os comentários nos sites das grandes agências de notícias: 1) A repulsa das práticas que defendem direitos humanos, embora que sem estes não seja possível o Estado Democrático de Direito; 2) O moralismo como valor inquisitorial onde se identifica a corrupção como o grande elemento a explicar a débâcle brasileira contemporânea; 3) O ódio especialmente direcionado para a classe política sedenta por “riqueza e poder”, embora não se encontre ninguém deste grupo social dentre os 10 mais ricos do Brasil; 4) A misoginia. Neste último ponto, em uma breve análise de conteúdo, a palavra mais utilizada na carta foi o adjetivo “vadia” no singular e no plural. Isto depois de pronomes e artigos inocentes.

Sidnei acreditava representar os “trabalhadores honestos” e em nome destes partiu para seu ato derradeiro. Vingou seus representados disparando contra uma família que também era sua. Dentre os mortos, no total de 13 pessoas, incluindo o próprio assassino, somam-se 09 mulheres. As tais odiadas “vadias”. O ato materializa em violência concreta a violência simbólica tolerada no espaço público e vista como “direito de opinião” por seus porta-vozes. Sidnei aprendeu de maneira exemplar o discurso de ódio que lhe ensinaram. O problema é que ele não foi o único.

* Texto publicado no jornal Folha da Manhã em 07 de janeiro de 2017


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes

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