Discutir com Madame...*
George
Gomes Coutinho **
Em uma noite quente de verão
encontro amigos de longa data para uma cerveja, tira-gostos e o que chamo de
“papo sem pauta”. É um tipo de conversa Freestyle
anárquica onde há sequer a pretensão de concluir um mísero raciocínio. Na roda
surgem assuntos diversos, desde a situação da Coréia do Norte até sobre qual
seria a melhor maneira de fazer um camarão no bafo.
Tratou-se de um encontro de
partícipes de nossa classe média. Entre setores mais radicais e caretas, do
lado conservador desse grupo me deparo com uma figura que reencarna
ciclicamente no espaço público brasileiro: a Madame. Explico-me.
Conheci a “Madame” pela voz docemente
subversiva de João Gilberto há anos atrás. O gênio João imortalizou “Pra que
discutir com madame”, composição de 1956 de Haroldo Barbosa e Janet Almeida,
onde a tal “Madame”, dentre outras pretensões, se colocava como a encarnação do
“bom gosto”. O bom gosto aqui se expressa no ódio, no desprezo ao popular, a
tudo que seria coisa de “gentinha”. Não por acaso a argumentação da Madame da
música redundaria em nada menos que acabar com o samba, esse estilo musical que
“mistura gente”. Em suma, a Madame para
mim é um tipo-ideal, uma figura síntese que circula entre as classes média e alta representando a soberba elitista e o
nojo, o asco ao povo brasileiro.
Eis que Madame nos visita na
polêmica proposta de reajuste da tarifa de iluminação pública implementada pelo
governo Rafael Diniz. Madame cuspiu maribondos e ofensas. Realmente eu ponderei
se a opção política do reajuste de sopetão seria a mais inteligente. Contudo,
Madame não estava preocupada com essas frivolidades. Madame, com raiva, soltou
a pérola: “Eu vou pagar mais pros pobres pagarem nada!”. Fiquei comovido com a
demonstração de ignorância e tentei demonstrar que os pobres são ordinariamente
os mais penalizados, os que mais pagam proporcionalmente impostos em nossa
opção tributária. Que um gari, ao comprar uma lata de ervilha, paga o mesmo
percentual de impostos que o dono de um grande banco. Madame gritou ainda mais
alto. Desisti. Me lembrei do conselho na voz de Joãozinho: “Pra que discutir
com Madame?”. Mudei de assunto e voltei para a receita de camarão.
* Texto publicado em 03 de fevereiro de 2018 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.
** Professor de Ciência Política no
Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes
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