sábado, 3 de fevereiro de 2018

Discutir com Madame...

Discutir com Madame...*

George Gomes Coutinho **

Em uma noite quente de verão encontro amigos de longa data para uma cerveja, tira-gostos e o que chamo de “papo sem pauta”. É um tipo de conversa Freestyle anárquica onde há sequer a pretensão de concluir um mísero raciocínio. Na roda surgem assuntos diversos, desde a situação da Coréia do Norte até sobre qual seria a melhor maneira de fazer um camarão no bafo.

Tratou-se de um encontro de partícipes de nossa classe média. Entre setores mais radicais e caretas, do lado conservador desse grupo me deparo com uma figura que reencarna ciclicamente no espaço público brasileiro: a Madame. Explico-me.

Conheci a “Madame” pela voz docemente subversiva de João Gilberto há anos atrás. O gênio João imortalizou “Pra que discutir com madame”, composição de 1956 de Haroldo Barbosa e Janet Almeida, onde a tal “Madame”, dentre outras pretensões, se colocava como a encarnação do “bom gosto”. O bom gosto aqui se expressa no ódio, no desprezo ao popular, a tudo que seria coisa de “gentinha”. Não por acaso a argumentação da Madame da música redundaria em nada menos que acabar com o samba, esse estilo musical que “mistura gente”.  Em suma, a Madame para mim é um tipo-ideal, uma figura síntese que circula entre as classes média e  alta representando a soberba elitista e o nojo, o asco ao povo brasileiro.

Eis que Madame nos visita na polêmica proposta de reajuste da tarifa de iluminação pública implementada pelo governo Rafael Diniz. Madame cuspiu maribondos e ofensas. Realmente eu ponderei se a opção política do reajuste de sopetão seria a mais inteligente. Contudo, Madame não estava preocupada com essas frivolidades. Madame, com raiva, soltou a pérola: “Eu vou pagar mais pros pobres pagarem nada!”. Fiquei comovido com a demonstração de ignorância e tentei demonstrar que os pobres são ordinariamente os mais penalizados, os que mais pagam proporcionalmente impostos em nossa opção tributária. Que um gari, ao comprar uma lata de ervilha, paga o mesmo percentual de impostos que o dono de um grande banco. Madame gritou ainda mais alto. Desisti. Me lembrei do conselho na voz de Joãozinho: “Pra que discutir com Madame?”. Mudei de assunto e voltei para a receita de camarão.

* Texto publicado em 03 de fevereiro de 2018 no jornal Folha da Manhã de Campos dos Goytacazes, RJ.


** Professor de Ciência Política no Departamento de Ciências Sociais da UFF/Campos dos Goytacazes


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