Do que vi e
vivi no #elenão em Campos dos Goytacazes
Paulo Sérgio
Ribeiro
Pensei duas vezes antes de esboçar
esse relato. Admito: por mais que me empenhe na narrativa, acabarei sendo omisso diante
das inúmeras tramas da história social entrecruzadas naquela tarde de sábado em
que chuva e sol se acotovelaram para buscar o seu lugar na Praça São Salvador.
O nome do “titular” desta praça, marco colonial dos nascidos (e sacudidos) em
Campos dos Goytacazes, cidade encravada no Norte Fluminense, perdeu um pouco da sua univocidade, pois não é forçado afirmar
que, do ângulo de quem enxerga uma vida em comum a partir da Carta Constitucional de 1988, as
mulheres, dispensando qualquer atributo de “santidade”, desnudaram-se para salvar
a todos e todas de um resultado eleitoral que venha a confirmar o tiro de misericórdia num regime democrático que padece em longa agonia.
Aquela praça, quase sempre mero
lugar de passagem, tornou-se a ágora do protagonismo feminino. Ao fundo, uma catedral
vetusta e indiferente ao destino dos homens e mulheres e, defronte, uma linha
imaginária a nos separar de eleitores/seguidores do presidenciável Jair Bolsonaro espreitando nosso ato com provocações oportunistas. Não haveria mesmo como ser de outro jeito: tornar-se mulher é reconhecer-se emparedada entre a tradição e a
força. Desafio não menos imperativo, diga-se, para a comunidade LGBT que também
se fez presente no ato com as suas cores de tamanho significado.
Nós “homens”, na acepção
convencional que uma cultura heteronormativa nos franqueia, lá também estivemos
e espero termos nos comportado à altura da política posta em movimento pelas
mulheres de maneira horizontal quanto à coordenação do ato e plural no tocante
às lideranças e associações que se fizeram ouvir. A voz própria das mulheres
ecoou pelas quatro jornadas, concretizando um protagonismo que é a um só tempo meio
e fim na luta contra a última cidadela do “velho homem”, majoritariamente
branco e tipicamente burguês, que, desde o impeachment fraudulento da primeira
mulher que elegemos Presidenta da República, refugiou-se no Estado operando uma regressão
histórica sem precedentes.
Esse refúgio (ou caverna,
preferirão alguns) diante das novas subjetividades é uma resposta um tanto
virulenta à crescente deslegitimação social do modo de vida calcado na masculinidade hegemônica e, não menos, à perda relativa de eficácia dos padrões
de dominação nela referidos, seja nas relações íntimas de afeto, seja na
formação mesma de nossa esfera pública. Não à toa, esta última tem sido
deformada como um preço a ser pago pelo sítio imposto às liberdades civis,
confirmando a olhos vistos a pusilanimidade da imprensa tradicional nativa.
Mas a liberdade, digamos, é um rio que nunca deixa de correr, por mais que suas margens o comprimam. A profusão de manifestações do #elenão ocorridas em centenas de cidades no Brasil e no mundo demonstra
simplesmente que não há como voltar atrás.
Voltando a nossa praça que, por
algumas horas, bem poderia ter sido renomeada “Praça das Profanas Salvadoras”, chamou-me
atenção que os agitadores contrários ao ato só se faziam perceptíveis berrando/buzinando
de um carro ou moto. Desnecessário dizer, todos homens. Sintomático
posicionar-se politicamente com auxílio de um bem utilitário cuja difusão consagra
o rebaixamento do transporte coletivo em nosso planejamento urbano, castrando
possibilidades de convívio social orientadas pelo que facultaria a todos o seu
igual valor moral. Nós mulheres e homens, por sua vez, nunca estivemos tão
à vontade andando com as próprias pernas.
A explicação é simples. Fizemo-nos multidão enquanto eles, se muito, foram o que sempre são: massa. Em
multidão, indivíduos diferentes agem em torno de uma finalidade comum sem
prejuízo do julgamento que exercem sobre suas próprias motivações. Já no seio
da massa, ensina a psicologia social, os indivíduos se “desindividualizam” por
assim dizer, tornando-se passivos ante os estímulos externos que a ação
coletiva lhes impõe em face dos anseios (instintos?) primários que os agregam. Logo,
não é incomum constatar que bolsonaristas confundam a desinibição diante do ridículo
e do grotesco com uma suposta autenticidade. Sendo assim, garantimos à
civilização o seu lugar merecido: a praça pública por onde passam todos os
destinos do nosso torrão campista. Quanto àqueles que flertam com a barbárie,
restou-lhes a sombria Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte, vulgo "Igreja do Saco". Nada mais justo,
pois, para os carcomidos que se deixam fascinar pelo discurso de ódio à
política. Vão com Deus!
Brincadeiras à parte, uma eventual
derrota de Bolsonaro no 1º ou 2º turno não implicará, necessariamente,
no declínio do fascismo à brasileira que ele vocaliza. O piso eleitoral de mais
de 20% que alcançou é uma realidade com a qual haveremos de lidar de outubro em diante. Da pequena grande idealidade que
experimentamos na Praça São Salvador, assim como nas demais praças deste país,
caberá reelaborá-la dando continuidade ao trabalho de conjugar, teoricamente, o
ativismo identitário com as lutas de classe. Um terreno fértil surge para tal tarefa histórica e as mulheres e demais minorias ensaiam demarcá-lo nos seus próprios
termos.
Grato por viver.