Solidariedade
à Cássia Maria Couto
Por Paulo
Sérgio Ribeiro
Um
lembrete rápido: ironia é um recurso semântico da Língua Portuguesa. Trata-se
de uma figura de linguagem (mais precisamente, uma figura de pensamento) pela
qual enunciamos o contrário do que queremos dizer com o objetivo de questionar
atitudes e maneiras de pensar, revelando, assim, o seu ridículo e, por
conseguinte, suscitando a curiosidade para algo passível de
crítica.
Eis o que
a professora Cássia Maria Couto fez no Facebook como contraponto à censura do
pensamento nos espaços escolares que tomou corpo, sobremaneira, no 2º turno da
corrida presidencial. O que a professora disse de tão perturbador assim? A
frase, um tanto marota, “Indo ali doutrinar uns alunos e já volto”, seguida de
um já consagrado #LulaLivre. Também não desconsideremos o texto visual que
compunha a sua camisa (ver a foto acima).
Desde
então, os mais de 100 comentários à postagem de Cássia Couto em sua página têm
de tudo um pouco: agressões verbais odiosas e palavras de apoio de
estudantes, profissionais da educação e de outros campos de atuação, o que
somente confirma a polarização em torno do que venha a ser a autonomia
didático-científica e o acirramento a que estamos entregues desde que tal
questão fora instrumentalizada nessas eleições da maneira mais vulgar possível.
A postagem
de Cássia Couto em si não seria nada demais, haja vista a torrente infinda de
posicionamentos contrários ou favoráveis aos presidenciáveis nos ambientes
virtuais. Porém, a ironia da professora tornou-se, digamos, uma sacudida
“existencial” na planície goytacá. Tal repercussão é devida, em parte, a uma
reportagem do jornal Notícia Urbana[1] que tem circulado com
certa amplitude pelo WhatsApp e aplicativos afins.
Verifiquemos
o que diz a reportagem.
Eis a
sua lead: a professora é acusada de “doutrinar” alunos com
“ideologias partidárias”, o que seria “extremamente” vetado pelo “Ministério da
Educação”. Vedações ao servidor público são
definidas pelo legislador e, uma vez violadas, implicam sanções aplicáveis pela administração pública em obediência
ao devido processo legal, entre outros princípios. Logo, uma primeira
retificação: o MEC não impõe proibição alguma, pois é um órgão do Poder
Executivo Federal que, junto a demais atores institucionais e à sociedade civil
organizada, traça diretrizes nacionais para a educação e coordena as ações e
programas executados pelos entes da federação. Sendo o Estado do Rio de Janeiro e a Prefeitura de Campos dos Goytacazes não subordinados hierarquicamente à União, o regime disciplinar ao
qual a professora Cássia Couto se submete não se situa na esfera federal. Nesta primeira parte, afirma-se ainda que “a
denúncia foi feita por uma rede social”. Qual rede social? O próprio Facebook?
Outra rede? Fica a critério da imaginação do leitor.
Na
sequência da reportagem, afirma-se que tal denúncia é anônima, já que “a
professora ameaçava quem tentasse discordar de seus pensamentos dentro de sala
de aula”. De que ameaça estamos falando? Reprovação escolar? Que poder absoluto
é este que uma professora teria?! A instituição escolar é dotada de controle
interno e a comunidade escolar que a engloba é (ou deveria ser) co-partícipe no
seu projeto político-pedagógico. Ademais, os alunos são livres para se
expressarem sobre o seu processo de ensino-aprendizagem, sendo vedado, contudo,
o anonimato aos mesmos. Quem o diz? A Constituição Federal (Art. 5º, inciso
IV). Aqui, não cabe qualquer confusão com o sigilo da fonte enquanto garantia
do exercício profissional do jornalista, pois a denúncia fora colhida em uma
rede social, conforme consta na reportagem. Preciosismo? Não, pois elevar
o anonimato de uma denúncia (referida a uma rede social que não se sabe qual é) à
condição de evidência autossuficiente pode ser um terreno fértil para o
assassinato de reputações.
Para o
leitor que chegou até aqui, peço um pouco mais de paciência. Apesar de não
gostar tanto de assumir este papel, vejo-me obrigado a ser o “Padrasto do texto
ruim” ao esmiuçar o terceiro parágrafo da reportagem. Assim se inicia: “Mesmo
sendo acusada, a professora relatou em sua conta pessoal que estão tentando
calar a sua voz”. Ora, justamente por estar sendo acusada, ela tem desde já o
direito de defender-se! A indistinção entre suspeição e culpa era uma
característica das práticas processuais do Tribunal do Santo Ofício, lembra-nos
Lana Lima[2]. Mas a prova de
“imparcialidade” da reportagem vem a seguir:
Outros apoiadores de Lula se
manifestaram em defesa da professora, incluindo a presidente do Sindicato
Estadual dos Profissionais da Educação (Sepe) de Campos, Odisséia Pinto de
Carvalho, que se manifestou dizendo: “Minha total solidariedade a professora
Cassia. Não ao fascismo”. O Sepe, é o mesmo sindicato onde, na última semana,
fiscais do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RJ) fez apreensão de materiais de
campanha.
Eu e
demais pessoas que prestaram solidariedade à Cássia Couto somos um conjunto
heterogêneo no que diz respeito à filiação partidária (eu, por exemplo, sequer
sou filiado a partido político) ou às visões de mundo. Convergimos,
fundamentalmente, no que diz respeito à valorização do(a) professor(a) e à
defesa da liberdade de pensamento enquanto atributo do ato de ensinar. A
reportagem recai em uma inverdade: o material apreendido no Sindicato Estadual
dos Profissionais de Educação (SEPE) não se destinava a nenhuma campanha, pois
se tratava do boletim informativo da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), um trabalho jornalístico produzido por e para os profissionais
de educação que é tão legítimo quanto o realizado pelo Notícia Urbana.
No quarto
e último parágrafo, a reportagem atira no que vê e acerta no que é incapaz de
enxergar: “De acordo com a lei eleitoral, nas escolas públicas, não é permitida
a propaganda eleitoral de qualquer natureza”. De fato, há restrições da
propaganda eleitoral em bens públicos e de uso comum, bem como no exercício da
função pública que devem ser respeitadas[3]. Mas levantar essa lebre
com o intuito de demarcar o que é passível de ser coibido no ensino/aprendizagem
pode deturpar a própria lógica deste processo. Se, por um lado, não cabe fazer
das salas de aula um ato panfletário que negue a bem vinda contraposição de
ideias e valores, por outro, a reivindicação de “neutralidade” do espaço
escolar por parte do movimento “Escola sem partido” pode retirar daquele espaço
a sua criatividade, quando o compromete de modo unilateral com visões de mundo
tradicionais e/ou religiosas. O apego as mesmas comprovam uma tentativa inútil de
tornar a escola um "oásis" diante da dificuldade de assimilar as
mudanças comportamentais e de compreender o mal-estar que elas provocam.
O que a camisa com a silhueta do
Lula trajada por Cássia Couto diz a respeito do que ela ensina? O mesmo que uma
camisa com a foto do Roger Waters diria: nada. O que a perseguição à sua livre
expressão diz sobre o debate educacional em nossa cidade? Que a “família
brasileira” precisa deitar no divã.
[1]
https://noticiaurbana.com.br/professora-de-campos-e-acusada-de-tentar-doutrinar-alunos-com-ideologias-partidarias/?fbclid=IwAR1jFTR4o6YNDSM91z1gjQceOITji7BAScc94CGI0V8-phR5bkZX8oJ8sHw
[2]
LIMA, Lana Lage da Gama. O Tribunal do Santo Ofício
da Inquisição: o suspeito é o culpado. Rev. Sociol. Polit., Curitiba , n. 13, p. 17-21, Nov.
1999. Available from
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44781999000200002&lng=en&nrm=iso>.
access on 02 Nov. 2018. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-44781999000200002.
[3]
http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/cartilha-pode-x-nao-pode-propaganda-eleitoral
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