sexta-feira, 2 de novembro de 2018

Solidariedade à Cássia Maria Couto


Solidariedade à Cássia Maria Couto

Por Paulo Sérgio Ribeiro

Um lembrete rápido: ironia é um recurso semântico da Língua Portuguesa. Trata-se de uma figura de linguagem (mais precisamente, uma figura de pensamento) pela qual enunciamos o contrário do que queremos dizer com o objetivo de questionar atitudes e maneiras de pensar, revelando, assim, o seu ridículo e, por conseguinte, suscitando a curiosidade para algo passível de crítica.

Eis o que a professora Cássia Maria Couto fez no Facebook como contraponto à censura do pensamento nos espaços escolares que tomou corpo, sobremaneira, no 2º turno da corrida presidencial. O que a professora disse de tão perturbador assim? A frase, um tanto marota, “Indo ali doutrinar uns alunos e já volto”, seguida de um já consagrado #LulaLivre. Também não desconsideremos o texto visual que compunha a sua camisa (ver a foto acima).

Desde então, os mais de 100 comentários à postagem de Cássia Couto em sua página têm de tudo um pouco: agressões verbais odiosas e palavras de apoio de estudantes, profissionais da educação e de outros campos de atuação, o que somente confirma a polarização em torno do que venha a ser a autonomia didático-científica e o acirramento a que estamos entregues desde que tal questão fora instrumentalizada nessas eleições da maneira mais vulgar possível.

A postagem de Cássia Couto em si não seria nada demais, haja vista a torrente infinda de posicionamentos contrários ou favoráveis aos presidenciáveis nos ambientes virtuais. Porém, a ironia da professora tornou-se, digamos, uma sacudida “existencial” na planície goytacá. Tal repercussão é devida, em parte, a uma reportagem do jornal Notícia Urbana[1] que tem circulado com certa amplitude pelo WhatsApp e aplicativos afins.

Verifiquemos o que diz a reportagem.  

Eis a sua lead: a professora é acusada de “doutrinar” alunos com “ideologias partidárias”, o que seria “extremamente” vetado pelo “Ministério da Educação”. Vedações ao servidor público são definidas pelo legislador e, uma vez violadas, implicam sanções aplicáveis pela administração pública em obediência ao devido processo legal, entre outros princípios. Logo, uma primeira retificação: o MEC não impõe proibição alguma, pois é um órgão do Poder Executivo Federal que, junto a demais atores institucionais e à sociedade civil organizada, traça diretrizes nacionais para a educação e coordena as ações e programas executados pelos entes da federação. Sendo o Estado do Rio de Janeiro e a Prefeitura de Campos dos Goytacazes não subordinados hierarquicamente à União, o regime disciplinar ao qual a professora Cássia Couto se submete não se situa na esfera federal. Nesta primeira parte, afirma-se ainda que “a denúncia foi feita por uma rede social”. Qual rede social? O próprio Facebook? Outra rede? Fica a critério da imaginação do leitor.

Na sequência da reportagem, afirma-se que tal denúncia é anônima, já que “a professora ameaçava quem tentasse discordar de seus pensamentos dentro de sala de aula”. De que ameaça estamos falando? Reprovação escolar? Que poder absoluto é este que uma professora teria?! A instituição escolar é dotada de controle interno e a comunidade escolar que a engloba é (ou deveria ser) co-partícipe no seu projeto político-pedagógico. Ademais, os alunos são livres para se expressarem sobre o seu processo de ensino-aprendizagem, sendo vedado, contudo, o anonimato aos mesmos. Quem o diz? A Constituição Federal (Art. 5º, inciso IV). Aqui, não cabe qualquer confusão com o sigilo da fonte enquanto garantia do exercício profissional do jornalista, pois a denúncia fora colhida em uma rede social, conforme consta na reportagem. Preciosismo? Não, pois elevar o anonimato de uma denúncia (referida a uma rede social que não se sabe qual é) à condição de evidência autossuficiente pode ser um terreno fértil para o assassinato de reputações.

Para o leitor que chegou até aqui, peço um pouco mais de paciência. Apesar de não gostar tanto de assumir este papel, vejo-me obrigado a ser o “Padrasto do texto ruim” ao esmiuçar o terceiro parágrafo da reportagem. Assim se inicia: “Mesmo sendo acusada, a professora relatou em sua conta pessoal que estão tentando calar a sua voz”. Ora, justamente por estar sendo acusada, ela tem desde já o direito de defender-se! A indistinção entre suspeição e culpa era uma característica das práticas processuais do Tribunal do Santo Ofício, lembra-nos Lana Lima[2]. Mas a prova de “imparcialidade” da reportagem vem a seguir:

Outros apoiadores de Lula se manifestaram em defesa da professora, incluindo a presidente do Sindicato Estadual dos Profissionais da Educação (Sepe) de Campos, Odisséia Pinto de Carvalho, que se manifestou dizendo: “Minha total solidariedade a professora Cassia. Não ao fascismo”. O Sepe, é o mesmo sindicato onde, na última semana, fiscais do Tribunal Regional Eleitoral (TRE-RJ) fez apreensão de materiais de campanha.

Eu e demais pessoas que prestaram solidariedade à Cássia Couto somos um conjunto heterogêneo no que diz respeito à filiação partidária (eu, por exemplo, sequer sou filiado a partido político) ou às visões de mundo. Convergimos, fundamentalmente, no que diz respeito à valorização do(a) professor(a) e à defesa da liberdade de pensamento enquanto atributo do ato de ensinar. A reportagem recai em uma inverdade: o material apreendido no Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (SEPE) não se destinava a nenhuma campanha, pois se tratava do boletim informativo da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), um trabalho jornalístico produzido por e para os profissionais de educação que é tão legítimo quanto o realizado pelo Notícia Urbana.

No quarto e último parágrafo, a reportagem atira no que vê e acerta no que é incapaz de enxergar: “De acordo com a lei eleitoral, nas escolas públicas, não é permitida a propaganda eleitoral de qualquer natureza”. De fato, há restrições da propaganda eleitoral em bens públicos e de uso comum, bem como no exercício da função pública que devem ser respeitadas[3]. Mas levantar essa lebre com o intuito de demarcar o que é passível de ser coibido no ensino/aprendizagem pode deturpar a própria lógica deste processo. Se, por um lado, não cabe fazer das salas de aula um ato panfletário que negue a bem vinda contraposição de ideias e valores, por outro, a reivindicação de “neutralidade” do espaço escolar por parte do movimento “Escola sem partido” pode retirar daquele espaço a sua criatividade, quando o compromete de modo unilateral com visões de mundo tradicionais e/ou religiosas. O apego as mesmas comprovam uma tentativa inútil de tornar a escola um "oásis" diante da dificuldade de assimilar as mudanças comportamentais e de compreender o mal-estar que elas provocam.

O que a camisa com a silhueta do Lula trajada por Cássia Couto diz a respeito do que ela ensina? O mesmo que uma camisa com a foto do Roger Waters diria: nada. O que a perseguição à sua livre expressão diz sobre o debate educacional em nossa cidade? Que a “família brasileira” precisa deitar no divã.



[1] https://noticiaurbana.com.br/professora-de-campos-e-acusada-de-tentar-doutrinar-alunos-com-ideologias-partidarias/?fbclid=IwAR1jFTR4o6YNDSM91z1gjQceOITji7BAScc94CGI0V8-phR5bkZX8oJ8sHw
[2] LIMA, Lana Lage da Gama. O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição: o suspeito é o culpado. Rev. Sociol. Polit.,  Curitiba ,  n. 13, p. 17-21, Nov.  1999. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44781999000200002&lng=en&nrm=iso>. access on  02  Nov.  2018.  http://dx.doi.org/10.1590/S0104-44781999000200002.
[3] http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/cartilha-pode-x-nao-pode-propaganda-eleitoral

Nenhum comentário:

Postar um comentário