Damares, doutrinação, “kit gay” e o lugar da
ciência após o transe eleitoral
Por Luciane Soares da Silva*
Não há dúvida de que o termo mais correto para definir as
eleições de 2018 é “boato”. Sabemos que boatos não são novidade na política
nacional, já fizeram estrago em eleições anteriores e têm a capacidade de
espalhar-se como fogo no milharal. Creio que a novidade consiste no uso do
boato como ferramenta ativa de campanha. E como podemos perceber, com êxito
diante da interpretação do Tribunal Superior Eleitoral de que tudo transcorreu
na mais perfeita normalidade. Com um militar dando entrevista, com tudo.
Normalidade... primeiro afasta-se uma presidente eleita,
posteriormente se reconhece a fragilidade do processo, mas com apoio popular a
uma campanha anti-corrupção prende-se o principal candidato ao cargo. Entre
manchetes espetaculares e patos desfilando na Avenida Paulista, surge um tipo
histriônico, despreparado, capaz de incitar ódio em doses cavalares e atacar em
um único dia, mulheres, negros, gays e todo o resto que se aproxime de uma
classificação “à esquerda”.
Passada a eleição, gostaria de conversar com seus eleitores
sobre a pauta moral. Há uma concepção profundamente equivocada em retirar da
escola a discussão de temas sobre sexualidade, gênero, direitos humanos.
Não vou desenvolver aqui um ataque ao projeto “Escola Sem
Partido” por compreender que em princípio ele é indefensável e impossível de
ser efetivado. Nem colocarão mordaças nos professores nem terão meios de punir
ou mesmo fiscalizar as escolas em um território como o nosso.
Mas há uma questão importante e ela diz respeito a explicação
que alguns religiosos, pais e profissionais da área de educação, pretendem dar
para sobrepor a família à escola em assuntos como sexualidade. Em minhas aulas
sobre fato social, tenho utilizado não o exemplo do suicídio para explicar o
conceito. Tenho discutido em aula os massacres em escolas nos Estados Unidos. E
tenho feito isto contra um discurso muito sedutor de que os meninos de
Columbine eram “doentes”, comprometidos psiquicamente. Fui estudar os casos.
Milhares de livros e psicólogos descrevendo as características de um serial killer. Sem tocar com
responsabilidade no tema das armas, na estruturação das escolas e na competição
que instaura o estigma de “loser” em
crianças de 13 anos. Por serem gordas, tímidas, pobres, lentas, seja lá a
razão.
Minha defesa da importância da pesquisa em sociologia é dizer
que não, estes adolescentes que a cada ano buscam superar o massacre do ano
anterior, não são doentes nem psicologicamente comprometidos. Não podemos
explicar estes massacres com Lombroso ou teorias de degenerescência individual.
Elas já serviram para justificar o racismo, como Nina Rodrigues e outros no
Brasil. Mas não, o problema não é o indivíduo.
A escola é uma das principais instituições modernas. Ela
reflete a possibilidade de educarmos uns aos outros. Sobre arte, sobre
matemática, sobre amor, sobre sexualidade. Não há limite para o que podemos
aprender. Mas a escola é também uma instituição de reprodução de lugares
sociais e preconceitos. Esta é a disputa vivida. De qualquer forma, aqueles que
tiverem ouvidos abertos, verão dados inegáveis sobre abuso infantil: a maior
parte destas crianças sobre abuso em casa ou em seu bairro.
Nos anos 2000, trabalhamos em uma equipe para reconhecer como
estas crianças, muitas delas com 6 anos ou menos, expressavam o abuso. Fizemos
uma imersão com palestras, conversamos com profissionais, vimos os desenhos que
demonstravam padrões, como órgãos sexuais em tamanho disforme, pessoas
deformadas, a criança em tamanho muito menor diante de um parente. Ouvimos de
como tocavam seu corpo, de problemas para ir ao banheiro. Ou crianças com
extrema tristeza, crises de choro ou demonstrações de sexualização precoce. O
resultado da pesquisa em escolas e creches de Porto Alegre confirmaria tudo que
tínhamos aprendido naqueles poucos dias. Em um dois bairros, nossa equipe foi
expulsa e os questionários confiscados.
Mesmo estudando violência, nunca consegui retornar ao tema. E tenho
profunda admiração pelos professores, profissionais de saúde, assistentes
sociais, religiosos e demais pessoas que se envolvem em uma área que considero
a mais pesada do trabalho social.
Abusadores não são monstros, não são “tarados” como tivemos
de aceitar enquanto forma de normalização até décadas recentes. Abusadores
sabem o que podem e com quem podem exercer seu abuso. Sabem até onde podem ir
entre uma mão nas partes íntimas de um menino e o estupro de uma menina de 10
anos. Abusadores não são demônios entre nós como podem querer afirmar algumas
igrejas que têm em seus quadros lobos eloquentes.
E só existe uma forma de combate – e todos somos responsáveis
por isto – a denúncia e a proteção de infância e da adolescência. A família não
pode seguir como uma instituição do século XVIII na qual o patriarca tem poder
de vida e morte sobre mulheres, mesas, bois, tudo ao redor.
Se esta eleição, que separou famílias, teve alguma utilidade,
foi escancarar esta hipocrisia moral. Ela não terá mais lugar. E agora que
sabemos disto, nos resta defender todos aqueles que trabalham por uma educação
realmente crítica e construtora de respeito a infância. E dizer a verdade sobre
o corpo, sobre nossas necessidades e desejos, nada tem de errado.
Perversão é ganhar uma eleição com uma pauta moral sórdida e
mentirosa.
* Socióloga. Professora Associada à Universidade Estadual do
Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Chefe do Laboratório de Estudos da
Sociedade Civil e do Estado (LESCE/CCH/UENF) e Presidenta da Associação de Docentes
da UENF (ADUENF).
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