Restaurante Popular: qual política está posta na mesa? (parte 1)
Democracia serve para todos ou não serve para nada. (Betinho)
Por Bruna Machel, Juliana Tavares
e Paulo Sérgio Ribeiro
É difícil
precisar como e quando nasce o projeto dos Restaurantes Populares
(RPs) no Brasil. Alguns dirão que sua origem data de 1940 pela iniciativa de
Getúlio Vargas, que instituiu o chamado Serviço de Alimentação da
Previdência Social (SAPS)[1], o
modelo de restaurantes públicos que ofereciam alimentação às populações
pobres, posteriormente destruído pelo golpe
civil-militar, precisamente em 1968[2];
outros dirão que os RPs foram iniciativa inédita do Governo do Estado do Rio de
Janeiro, em 2000, quando Garotinho implementou o Restaurante Cidadão na Central
do Brasil, ofertando alimentos a R$ 1,00 com subsídio estatal[3].
Porém, é absolutamente indiscutível que os RPs foram sistematicamente
implementados, enquanto estratégia de promoção da segurança alimentar em
grande escala, somente em 2003 como parte integrante do programa Fome Zero
do Governo Federal sob comando do então Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva. Tal programa tinha por objetivo superar o problema da fome no Brasil
através de uma série de ações articuladas que envolviam desde a participação de
setores sociais na formulação destas políticas (tendo como principal
consequência positiva a então reorganização do Conselho Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional - CONSEA), como também o fomento à criação de
RPs nas cidades com mais de 100 mil habitantes em todo território nacional.
Os
princípios que regem o restaurante popular e a importância dessa política
pública
Segundo o Manual dos Restaurantes Populares de 2004 do Governo Federal[4], Restaurantes Populares consistem em:
[...] estabelecimentos administrados pelo poder
público que se caracterizam pela comercialização de refeições prontas,
nutricionalmente balanceadas (...) a preços acessíveis, servidas em
locais apropriados e confortáveis, de forma a garantir a dignidade ao ato de se
alimentar. São destinados a oferecer à população que se alimenta fora de casa,
prioritariamente aos extratos sociais mais vulneráveis, refeições variadas,
mantendo o equilíbrio entre os nutrientes...
Nota-se
no manual dos RPs a preocupação em caracterizar esses estabelecimentos como
pontos de apoio para pessoas extremamente pobres que vivem em situação de
vulnerabilidade social, mas também voltados para as classes
trabalhadoras nos centros urbanos. Tais segmentos, submetidos à precarização das
condições de vida sob o sistema capitalista, sem poder se
alimentar de forma saudável no cotidiano das médias e grandes cidades, acabam
lançando mão de alimentações inapropriadas do ponto de vista nutricional,
sofrendo, por consequência, muitas vezes com a subnutrição ou a obesidade.
E como bem diz a resolução do CONSEA de 2009[5]:
O direito humano a alimentação adequada e saudável
e a soberania e segurança alimentar e nutricional não se limita a aqueles(as)
que passam fome ou que são pobres ou socialmente excluídos(as), mas diz
respeito a qualquer cidadão ou cidadã que não se alimenta adequadamente, seja
porque tem renda insuficiente ou não tem acesso aos recursos produtivos (terra
e outros), seja por ser portador(a) de necessidades alimentares especiais que
não são respeitadas, mas, principalmente, porque a disponibilidade e o acesso
aos alimentos condicionam de forma significativa suas práticas alimentares.
A partir
desses debates e resoluções nacionais, os RPs foram implementados de formas
distintas pelos Estados, porém mantendo como forma predominante o princípio
universalizante orientado pelo CONSEA. As filas de acesso ao restaurante se
tornaram o crivo natural entre aqueles que precisam e aqueles que "não
precisam" de alimento a baixo custo, sem que houvesse a necessidade de
qualquer medida restritiva por parte do Poder Público. Tal política melhorou a
vida de milhões de aposentados, sem-tetos, estudantes pobres e trabalhadores
precarizados do Brasil, tornando os centros urbanos mais humanizados.
No entanto, com o agravamento da crise, especialmente a partir de 2014, a
realidade dos RPs foi modificada radicalmente. Alguns governos
decretaram então o fechamento destes equipamentos ou a criação de
critérios de acesso que visavam a reduzir o número de usuários, vide a cidade
do Rio de Janeiro[6].
Como diz o ditado popular: "A corda sempre arrebenta do lado mais
fraco"... E o lado mais fraco na luta de classes, por óbvio, tende a
ser o lado do trabalhador, da mãe de família, do jovem desempregado.
É
didático recordar, por exemplo, que mesmo em meio à crise nacional, o
então Governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, não abriu
mão de dar isenção fiscal para empresas "amigas", sem que elas
aumentassem sua contrapartida do ponto de vista do interesse público[7];
tão pouco deixou de realizar licitações fraudulentas, que comprometeram
drasticamente a arrecadação estadual, como aponta recentemente a operação Boca
de Lobo[8].
Tais práticas antirrepublicanas, corriqueiras em todo o Brasil, garantem o
beneficiamento econômico de meia dúzia de empresas privadas e acabam por gerar
prejuízos incalculáveis para a manutenção dos serviços públicos. É nesse
contexto que programas como o Restaurante Popular são interrompidos ou
descaracterizados.
A
situação em Campos dos Goytacazes
O debate
sobre a reativação do Restaurante Popular (RP) em Campos dos Goytacazes-RJ, que
será rebatizado de Centro de Segurança Alimentar e Nutricional (CESAN) pela
atual gestão municipal, está longe de chegar ao consenso. Se há questões pendentes
em sua formulação, deparamos agora com um fator agravante: o fim do CONSEA, uma
das primeiras canetadas do presidente recém-empossado Jair Bolsonaro. Esse
conselho reunia o melhor da inteligência nacional sobre a temática, tendo sido
um referencial para diferentes programas de governo.
Decretado o fim do CONSEA, aumenta-se a margem de experimentação dos governos municipais no terreno da segurança alimentar e nutricional e, não menos, a necessidade de fortalecer a participação popular nessa política em um momento de tantas incertezas quanto à cooperação entre União, estados e municípios para assegurar o abastecimento alimentar, o combate às causas da pobreza e dos fatores de marginalização, entre outras competências comuns dos entes da federação.
Segundo a
apresentação da Prefeitura durante plenária do Conselho Municipal de
Assistência Social (CMAS), em 09 de Novembro de 2018, para se alimentar no
CESAN, as pessoas passarão por uma triagem, onde serão divididas em 3
categorias de renda, que definirá quem pode ou não contar com o subsídio
público.
Terão direito à gratuidade pessoas cuja renda familiar seja de até R$ 178,00 per capita, comprovada pelo Cadastro
Único do Governo Federal (CadÚnico). À primeira vista, parece uma iniciativa
cuja justificativa é auto-evidente. No entanto, esbarramos no problema da
dimensão de seu impacto real na vida destas pessoas, já que elas, em sua
maioria, vivem em bairros periféricos e têm um acesso dificultado ao
centro da cidade em face das não poucas insuficiências que temos em mobilidade
urbana. Não seria exagero dizer que, com o fim das passagens a preços
populares, o impacto da gratuidade do RP no cotidiano das populações
extremamente pobres será, provavelmente, menor do que se desejaria.
Já famílias com renda mensal de até três salários mínimos per capita receberão subsídio de 50% do
valor licitado. Tal valor ainda não foi definido. Porém, é plausível
estimar, com base no contrato anterior, que vigorou até o fechamento
do restaurante em 2017, que o preço final para o usuário nessa faixa de renda
deva variar em torno de R$ 4,00. Estamos diante de uma possibilidade que, caso
se confirme, será um tanto contraditória: pessoas em variadas situações de
privação e de vulnerabilidade terão de pagar 300% mais caro por uma alimentação
que custava, até 2017, R$ 1,00. Tudo isto em um momento de
desvalorização do salário mínimo, altíssimos índices de desemprego e desmonte
de programas sociais como o Cheque Cidadão.
Também é
preocupante o fato de a Prefeitura de Campos anunciar o fim do subsídio para
todos aqueles que, por alguma razão, não estejam inscritos no CadÚnico do
Governo Federal ou que, simplesmente, não se enquadrem nos critérios de renda
delimitados. Para esse trabalhador e trabalhadora, restará pagar o valor
integral do contrato entre a Prefeitura e a empresa privada concessionária do
serviço público? Valor este onde se incluem o
custo real e o lucro do empresário, pagando, desse modo, o mesmo que se
pagaria em qualquer estabelecimento comercial no Centro de Campos dos
Goytacazes?
Após a
breve abordagem feita na seção inicial sobre os princípios que regem a política
dos RPs, é possível afirmar que sua função social vai muito além de uma noção
minimalista de “focalização” na assistência social, pois envolve uma visão
democrática de cidade voltada para as classes populares, não se caracterizando,
portanto, pela seletividade, mas pelo conceito ampliado de Cidade para os
Trabalhadores. Na segunda parte deste texto, discutiremos com mais detalhes
o que venha a ser focalização nas políticas sociais e algumas polêmicas que
julgamos desnecessárias em torno da mesma quando contraposta ao princípio da
universalização.
Longe
estamos de viver em uma cidade cujos trabalhadores compartilhem os mesmos
lugares de cidadania. Dividimo-nos em classes sociais na cidade do capital, que
nada mais é do que a cidade da segregação, da especulação imobiliária, do
exército de reserva de trabalhadores desempregados ou subempregados, da
reprodução da miséria em “escala industrial”. Ações que tornam a cidade
mais conectada com a demanda dos trabalhadores, no sentido de efetivação de
direitos, entram em confronto com o interesse daquela entidade que paira
fantasmagoricamente acima dos governos, o dito mercado.
Sigamos o
exemplo de cidades como Teresina[9]
(que curiosamente possui um PIB per capita menor do que Campos
dos Goytacazes), ou o exemplo das mais de 30 cidades do Rio Grande do
Norte[10],
ou mesmo de Belo Horizonte[11],
que mantém os RPs em pleno funcionamento. Ademais, não negamos o fato
de que existe uma população em situação de rua crescente, localizada no área
central da cidade. Essas pessoas, que devem ser assistidas pelo Centro de
Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro POP), contam
hoje com a solidariedade de grupos religiosos que distribuem alimentos em porta
de igrejas e nas praças públicas, além de projetos sociais como o Café
Solidário.
De fato,
a reabertura do restaurante popular deverá amenizar um pouco a dor destas
pessoas e isso é inegavelmente importante do ponto de vista da dignidade da
pessoa humana. Sem subestimarmos essa virtualidade, o que propomos debater aqui
é o estilo de política social a ser implantado e, por conseguinte, a
clareza e a efetividade dos critérios de focalização que serão adotados em uma
política cuja razão de ser é conjugar segurança alimentar e nutricional com
outras demandas não menos essenciais para redistribuir a riqueza produzida
socialmente.
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