quarta-feira, 10 de abril de 2019

Impressões acerca dos primeiros 100 dias do Governo Bolsonaro: crônica de uma tragédia anunciada?


Impressões acerca dos primeiros 100 dias do Governo Bolsonaro: crônica de uma tragédia anunciada?*

*Por George Gomes Coutinho

Analisar os primeiros cem dias de um governo, seja qual governo for, é sempre um empreendimento de risco. Primeiramente cabe notarmos que sob condições normais de temperatura e pressão ainda há longo período a ser vivido pelo mandatário da ocasião. E a política é especialmente afeita a sofrer os impactos diretos dos caprichos das contingências onde todas as externalidades ao sistema político se impõem por vezes com contornos dramáticos. Sim, governos podem mudar de direção em qualquer tempo até mesmo por razões alheias à sua vontade. O que a literatura chama de policy switch é recorrente ao sul e ao norte do globo. Porém, estranhamente nos últimos tempos a opinião pública nativa tentou criminalizar este expediente classificando-o de “estelionato eleitoral”. Criminalizar o policy switch é somente outra maneira de termos instituições em frangalhos de forma perene e nada mais.

Retomando o mote dessa reflexão, é importante ressaltar que avaliar cem dias não é jamais avaliar o mandato como um todo evidentemente.

Todavia, os primeiros cem dias podem dar pistas sobre qual a fisionomia mais persistente terá aquele determinado governo, sofrendo variações para mais ou para menos em determinadas ocasiões. Em suma, o desafio de quem quer que se arrisque neste empreendimento é o de identificar o “núcleo duro” daquele executivo e se há algo assim. Em outros termos, nos primeiros cem dias cabe ao analista tentar encontrar o DNA do governo, suas características invariáveis e persistentes que podem interessar nos próximos anos.

Prosseguindo, arrisco dizer que no caso Bolsonaro há núcleos duros discerníveis.

O governo entrou em campo, algo claro desde a campanha, com um discurso que está declaradamente no lado direito do espectro político, indo do centro atingindo até o extremo. Neste sentido, a composição orgânica do governo é bastante diversificada sendo composta por militares afinados com a defesa do legado da ditadura civil-militar de 1964, parte do flanco mais conservador do judiciário, o grupo ultra conservador dos costumes que reúne seguidores do escritor  Olavo de Carvalho e fundamentalistas cristãos e, por fim, ultra liberais. Não obstante as diferenças que saltam aos olhos são grupos que não são dos mais afeitos a defender um Estado Democrático de Direito robusto e mesmo a democracia para estes pode ser prescindível dependendo do momento histórico.

Por enquanto, dado o panorama, há o desafio concreto de termos um governo que é um mosaico onde há antagonismos internos insolúveis em termos valorativos não obstante suas poucas afinidades naturais.  Para citar apenas um exemplo de narrativas pouco afeitas a se encontrarem com harmonia: os discursos de Ernesto Araújo e Paulo Guedes, suas visões de mundo, não são apenas conflitantes. São antagônicas. O único ponto inegável de afinidade é o flerte e a condescendência de ambos com soluções autoritárias de direita, algo compartilhado em praticamente todos os grupos partícipes do governo nesse momento.

Lembro que o discurso do presidente eleito, suas intenções, não foram ainda muito além de palavras de ordem até o presente momento e Bolsonaro nos forneceu pouquíssimos elementos para o avaliarmos em situações de confrontação discursiva pública, algo que só está se modificando lentamente de poucas semanas para cá. Tal como na campanha, os poucos caracteres da rede social Tweeter ainda expressam a maneira preferencial utilizada por Bolsonaro para se posicionar e até mesmo antecipar decisões. Não há grandes explanações, algo que o discurso curtíssimo de Davos demonstrou no início do ano. O repertório é curto. E ainda não há o arrefecimento de posições polêmicas. Há a chocante persistência das mesmas. Talvez o próprio Bolsonaro tenha se tornado refém destes posicionamentos visto que nem o seu eleitorado mais fiel parece censurar estes posicionamentos.

Voltando aos elementos programáticos cabe lembrar que estamos falando de um presidente que não compareceu aos debates televisivos e o seu programa de governo é impreciso, contém no máximo intenções, por vezes “chutes” quando se arrisca a entrar em dados e nos deixa a dúvida angustiante sobre o fundamental em termos de política prática: o como, como fará?

Inclusive uma questão importante sobre o “como” é a maneira pela qual o governo tem lidado com o congresso. Em um primeiro momento havia a aposta no logrolling entre bancadas temáticas: ou seja, eu voto na sua proposta X hoje e o outro grupo vota em minha proposta Y amanhã. Cabe notar que nada há de ilícito nessa prática e ela é usual em todo e qualquer parlamento do mundo. É uma operação de redução de complexidade no processo legislativo. Contudo a premissa de organização do congresso em bancadas, e elas são consistentes, se mostrou frustrante pela seguinte razão: não conseguiram organizar suficientemente os governistas em sua totalidade. A experiência legislativa brasileira de disciplinar os participantes individuais no legislativo tomando por referência os partidos se mostra mais exitosa e a inovação de trocas de votos basicamente entre bancadas pode até render bons resultados em votações específicas. Mas, para o cotidiano, o dia a dia, o partido enquanto disciplinador ainda é o que produz de fato no legislativo. Se isso é “velha política”, bem, fica o desafio para o freguês buscar maneira mais eficiente de produzir vitórias nos processos de tomada de decisão.

Cabe notar ainda que o próprio chefe do executivo ao manter o discurso beligerante no espaço público também não tem facilitado o seu próprio trabalho de convencimento dos grupos no legislativo e na própria sociedade. O tom radical produz, mesmo em tempos de polarização, isolamento e resistência.

Não obstante os cem dias, ainda assim o governo foi farto no fornecimento de escândalos e situações vexatórias. Porém isto ainda não redundou em consequências decisivas por não existir um único tipo de eleitor de Bolsonaro. Há diferentes grupos e os eventuais e estranhos “defensores da moral e dos bons costumes”  são apenas os mais ruidosos. Na verdade precisaríamos de um survey aqui para detectar, digamos assim, os “50 tons” dentre os 57 milhões de eleitores de Bolsonaro. Mas, por hipótese a partir de discursos que eu já pude presenciar de forma assistemática provavelmente há eleitores do 17 que não estão nem um pouco perplexos com as situações non sense e até esperavam coisas como o caso Queiroz. Esse tipo de eleitor é simplesmente cínico e pragmático: Bolsonaro é tido como o “idiota útil”. Incapaz intelectualmente, trajetória medíocre enquanto parlamentar, simplório e dotado de péssimos modos. Mas, sendo idiota útil, pode fazer o que é correto para o eleitorado pragmático justamente por sua ignorância constitutiva: por saber de sua baixa capacidade, o que é uma virtude, irá confiar a economia ou outras pastas que este eleitorado julgue estratégicas para alguém que compartilhe os valores e metas desse grupo de eleitores, que é o que interessa aos cínicos e pragmáticos. Notório que a educação seja solenemente ignorada por esse grupo até o presente momento. Talvez o discurso sobre educação e sua importância no Brasil seja uma retórica vazia pelo que estamos acompanhando com o MEC no governo Bolsonaro.

Para um dos outros grupos de eleitores do Bolsonaro, esses os crédulos e que aderiram ao discurso de eliminação do inimigo, as denúncias não irão, ao menos no curto prazo, produzir evasão em massa. O discurso de perseguição, de que são “fake news” as acusações que atingem o presidente, seus filhos e quadros que julgam relevantes, já se apresenta enquanto antídoto. É importante destacar que esse eleitorado vê a própria imprensa como inimiga nacional e elimina qualquer factualidade em seu discurso.

De todo modo entre cínicos ou partícipes da extrema direita, a moral pode ser francamente relativizada. E para os que apostam no “inimigo interno” a ser abatido, a hipótese de corrupção ou no mínimo as más companhias do clã Bolsonaro é um preço a pagar, um mal menor, diante da tarefa de higienização da política brasileira.

Para mim os mais chocados, e esses existem, são os ingênuos. Mas, estes se decepcionariam com qualquer um dada sua credulidade.

Por tudo o que disse a última pesquisa do Instituto Datafolha se esta apresenta dados que inspiram preocupação, por outro lado, dadas as motivações e perfis do eleitorado do presidente, podemos dizer que ainda as bases de legitimação do governo não estão corroídas. Para variar setores da esquerda mais uma vez comemoram precocemente.

Em verdade dada nossa condição periférica no capitalismo mundial e nossa dependência tão estratosférica quanto subserviente aos ventos do sistema econômico mundial, a erosão de nossos governos depende muitíssimo do que ocorre fora. Cenários pujantes geram uma movimentada balança comercial que sustenta legitimidades. Cenários mais modestos ou mesmo recessivos tem produzido danos para a legitimidade de qualquer governo entre nós. Creio que parte do futuro do governo Bolsonaro poderá ser explicado a partir do que ocorre além de nossas fronteiras.

Retomando, quanto ao que parte dos brasileiros andam chamando de “bolsonarismo”, creio que não exista algo assim. O sufixo “ismo” normalmente é utilizado para designar algo dotado de um corpus de ideias claro, elementos valorativos discerníveis, enfim, alguma substância. Não me parece adequado utilizar o termo “ismo” em vão no caso em tela. O governo Bolsonaro em seus discursos e narrativas (há uma pluralidade) é um mosaico.

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* Uma primeira versão dessas reflexões surgiu enquanto demanda apresentada pelo jornalista Aluysio Abreu Barbosa, diretor de redação do jornal  A Folha da Manhã, onde os governos Jair Bolsonaro e Wilson Witzel deveriam ser analisados dentro do marco temporal dos 100 dias de existência de cada um. A matéria em si foi publicada no próprio jornal e no blog administrado por Aluysio onde encontramos um amplo leque de opiniões de profissionais da Universidade atuantes em Campos acerca do tema em tela. Para ler o resultado final fica o link para o blog do Aluysio: http://opinioes.folha1.com.br/2019/04/10/academia-da-cidade-que-votou-em-bolsonaro-e-witzel-analisa-seus-100-dias/. Aqui para o Autopoiese decidi dividir em dois: separei o governo Bolsonaro do governo Witzel para fins de exposição. Nos próximos dias irei postar um esboço de minhas impressões do governo do estado do Rio de Janeiro.


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