Impressões
acerca dos primeiros 100 dias do Governo Bolsonaro: crônica de uma tragédia
anunciada?*
*Por George Gomes Coutinho
Analisar os
primeiros cem dias de um governo, seja qual governo for, é sempre um
empreendimento de risco. Primeiramente cabe notarmos que sob condições normais
de temperatura e pressão ainda há longo período a ser vivido pelo mandatário da
ocasião. E a política é especialmente afeita a sofrer os impactos diretos dos
caprichos das contingências onde todas as externalidades ao sistema político se
impõem por vezes com contornos dramáticos. Sim, governos podem mudar de direção
em qualquer tempo até mesmo por razões alheias à sua vontade. O que a
literatura chama de policy switch é
recorrente ao sul e ao norte do globo. Porém, estranhamente nos últimos tempos
a opinião pública nativa tentou criminalizar este expediente classificando-o de
“estelionato eleitoral”. Criminalizar o policy
switch é somente outra maneira de termos instituições em frangalhos de
forma perene e nada mais.
Retomando o mote
dessa reflexão, é importante ressaltar que avaliar cem dias não é jamais
avaliar o mandato como um todo evidentemente.
Todavia, os
primeiros cem dias podem dar pistas sobre qual a fisionomia mais persistente
terá aquele determinado governo, sofrendo variações para mais ou para menos em
determinadas ocasiões. Em suma, o desafio de quem quer que se arrisque neste
empreendimento é o de identificar o “núcleo duro” daquele executivo e se há
algo assim. Em outros termos, nos primeiros cem dias cabe ao analista tentar
encontrar o DNA do governo, suas características invariáveis e persistentes que
podem interessar nos próximos anos.
Prosseguindo,
arrisco dizer que no caso Bolsonaro há núcleos duros discerníveis.
O governo entrou
em campo, algo claro desde a campanha, com um discurso que está declaradamente
no lado direito do espectro político, indo do centro atingindo até o extremo.
Neste sentido, a composição orgânica do governo é bastante diversificada sendo
composta por militares afinados com a defesa do legado da ditadura
civil-militar de 1964, parte do flanco mais conservador do judiciário, o grupo
ultra conservador dos costumes que reúne seguidores do escritor Olavo de Carvalho e fundamentalistas cristãos
e, por fim, ultra liberais. Não obstante as diferenças que saltam aos olhos são
grupos que não são dos mais afeitos a defender um Estado Democrático de Direito
robusto e mesmo a democracia para estes pode ser prescindível dependendo do
momento histórico.
Por enquanto, dado
o panorama, há o desafio concreto de termos um governo que é um mosaico onde há
antagonismos internos insolúveis em termos valorativos não obstante suas poucas
afinidades naturais. Para citar apenas
um exemplo de narrativas pouco afeitas a se encontrarem com harmonia: os
discursos de Ernesto Araújo e Paulo Guedes, suas visões de mundo, não são
apenas conflitantes. São antagônicas. O único ponto inegável de afinidade é o
flerte e a condescendência de ambos com soluções autoritárias de direita, algo
compartilhado em praticamente todos os grupos partícipes do governo nesse
momento.
Lembro que o
discurso do presidente eleito, suas intenções, não foram ainda muito além de
palavras de ordem até o presente momento e Bolsonaro nos forneceu pouquíssimos
elementos para o avaliarmos em situações de confrontação discursiva pública,
algo que só está se modificando lentamente de poucas semanas para cá. Tal como na
campanha, os poucos caracteres da rede social Tweeter ainda expressam a maneira
preferencial utilizada por Bolsonaro para se posicionar e até mesmo antecipar
decisões. Não há grandes explanações, algo que o discurso curtíssimo de Davos
demonstrou no início do ano. O repertório é curto. E ainda não há o
arrefecimento de posições polêmicas. Há a chocante persistência das mesmas.
Talvez o próprio Bolsonaro tenha se tornado refém destes posicionamentos visto
que nem o seu eleitorado mais fiel parece censurar estes posicionamentos.
Voltando aos
elementos programáticos cabe lembrar que estamos falando de um presidente que não
compareceu aos debates televisivos e o seu programa de governo é impreciso,
contém no máximo intenções, por vezes “chutes” quando se arrisca a entrar em
dados e nos deixa a dúvida angustiante sobre o fundamental em termos de
política prática: o como, como fará?
Inclusive uma
questão importante sobre o “como” é a maneira pela qual o governo tem lidado
com o congresso. Em um primeiro momento havia a aposta no logrolling entre bancadas temáticas: ou seja, eu voto na sua
proposta X hoje e o outro grupo vota em minha proposta Y amanhã. Cabe notar que
nada há de ilícito nessa prática e ela é usual em todo e qualquer parlamento do
mundo. É uma operação de redução de complexidade no processo legislativo.
Contudo a premissa de organização do congresso em bancadas, e elas são
consistentes, se mostrou frustrante pela seguinte razão: não conseguiram organizar
suficientemente os governistas em sua totalidade. A experiência legislativa
brasileira de disciplinar os participantes individuais no legislativo tomando
por referência os partidos se mostra mais exitosa e a inovação de trocas de
votos basicamente entre bancadas pode até render bons resultados em votações
específicas. Mas, para o cotidiano, o dia a dia, o partido enquanto
disciplinador ainda é o que produz de fato no legislativo. Se isso é “velha
política”, bem, fica o desafio para o freguês buscar maneira mais eficiente de
produzir vitórias nos processos de tomada de decisão.
Cabe notar ainda
que o próprio chefe do executivo ao manter o discurso beligerante no espaço
público também não tem facilitado o seu próprio trabalho de convencimento dos
grupos no legislativo e na própria sociedade. O tom radical produz, mesmo em
tempos de polarização, isolamento e resistência.
Não obstante os
cem dias, ainda assim o governo foi farto no fornecimento de escândalos e
situações vexatórias. Porém isto ainda não redundou em consequências decisivas
por não existir um único tipo de eleitor de Bolsonaro. Há diferentes grupos e
os eventuais e estranhos “defensores da moral e dos bons costumes” são apenas os mais ruidosos. Na verdade precisaríamos
de um survey aqui para detectar, digamos assim, os “50 tons” dentre os 57
milhões de eleitores de Bolsonaro. Mas, por hipótese a partir de discursos que
eu já pude presenciar de forma assistemática provavelmente há eleitores do 17
que não estão nem um pouco perplexos com as situações non sense e até esperavam
coisas como o caso Queiroz. Esse tipo de eleitor é simplesmente cínico e
pragmático: Bolsonaro é tido como o “idiota útil”. Incapaz intelectualmente,
trajetória medíocre enquanto parlamentar, simplório e dotado de péssimos modos.
Mas, sendo idiota útil, pode fazer o que é correto para o eleitorado pragmático
justamente por sua ignorância constitutiva: por saber de sua baixa capacidade,
o que é uma virtude, irá confiar a economia ou outras pastas que este
eleitorado julgue estratégicas para alguém que compartilhe os valores e metas
desse grupo de eleitores, que é o que interessa aos cínicos e pragmáticos.
Notório que a educação seja solenemente ignorada por esse grupo até o presente
momento. Talvez o discurso sobre educação e sua importância no Brasil seja uma
retórica vazia pelo que estamos acompanhando com o MEC no governo Bolsonaro.
Para um dos
outros grupos de eleitores do Bolsonaro, esses os crédulos e que aderiram ao
discurso de eliminação do inimigo, as denúncias não irão, ao menos no curto
prazo, produzir evasão em massa. O discurso de perseguição, de que são “fake
news” as acusações que atingem o presidente, seus filhos e quadros que julgam
relevantes, já se apresenta enquanto antídoto. É importante destacar que esse
eleitorado vê a própria imprensa como inimiga nacional e elimina qualquer
factualidade em seu discurso.
De todo modo
entre cínicos ou partícipes da extrema direita, a moral pode ser francamente
relativizada. E para os que apostam no “inimigo interno” a ser abatido, a hipótese
de corrupção ou no mínimo as más companhias do clã Bolsonaro é um preço a
pagar, um mal menor, diante da tarefa de higienização da política brasileira.
Para mim os mais
chocados, e esses existem, são os ingênuos. Mas, estes se decepcionariam com
qualquer um dada sua credulidade.
Por tudo o que
disse a última pesquisa do Instituto Datafolha se esta apresenta dados que
inspiram preocupação, por outro lado, dadas as motivações e perfis do
eleitorado do presidente, podemos dizer que ainda as bases de legitimação do
governo não estão corroídas. Para variar setores da esquerda mais uma vez
comemoram precocemente.
Em verdade dada
nossa condição periférica no capitalismo mundial e nossa dependência tão
estratosférica quanto subserviente aos ventos do sistema econômico mundial, a
erosão de nossos governos depende muitíssimo do que ocorre fora. Cenários
pujantes geram uma movimentada balança comercial que sustenta legitimidades.
Cenários mais modestos ou mesmo recessivos tem produzido danos para a
legitimidade de qualquer governo entre nós. Creio que parte do futuro do
governo Bolsonaro poderá ser explicado a partir do que ocorre além de nossas
fronteiras.
Retomando, quanto
ao que parte dos brasileiros andam chamando de “bolsonarismo”, creio que não
exista algo assim. O sufixo “ismo” normalmente é utilizado para designar algo
dotado de um corpus de ideias claro,
elementos valorativos discerníveis, enfim, alguma substância. Não me parece
adequado utilizar o termo “ismo” em vão no caso em tela. O governo Bolsonaro em
seus discursos e narrativas (há uma pluralidade) é um mosaico.
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* Uma primeira versão dessas reflexões surgiu enquanto demanda apresentada pelo jornalista Aluysio Abreu Barbosa, diretor de redação do jornal A Folha da Manhã, onde os governos Jair Bolsonaro e Wilson Witzel deveriam ser analisados dentro do marco temporal dos 100 dias de existência de cada um. A matéria em si foi publicada no próprio jornal e no blog administrado por Aluysio onde encontramos um amplo leque de opiniões de profissionais da Universidade atuantes em Campos acerca do tema em tela. Para ler o resultado final fica o link para o blog do Aluysio: http://opinioes.folha1.com.br/2019/04/10/academia-da-cidade-que-votou-em-bolsonaro-e-witzel-analisa-seus-100-dias/. Aqui para o Autopoiese decidi dividir em dois: separei o governo Bolsonaro do governo Witzel para fins de exposição. Nos próximos dias irei postar um esboço de minhas impressões do governo do estado do Rio de Janeiro.
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* Uma primeira versão dessas reflexões surgiu enquanto demanda apresentada pelo jornalista Aluysio Abreu Barbosa, diretor de redação do jornal A Folha da Manhã, onde os governos Jair Bolsonaro e Wilson Witzel deveriam ser analisados dentro do marco temporal dos 100 dias de existência de cada um. A matéria em si foi publicada no próprio jornal e no blog administrado por Aluysio onde encontramos um amplo leque de opiniões de profissionais da Universidade atuantes em Campos acerca do tema em tela. Para ler o resultado final fica o link para o blog do Aluysio: http://opinioes.folha1.com.br/2019/04/10/academia-da-cidade-que-votou-em-bolsonaro-e-witzel-analisa-seus-100-dias/. Aqui para o Autopoiese decidi dividir em dois: separei o governo Bolsonaro do governo Witzel para fins de exposição. Nos próximos dias irei postar um esboço de minhas impressões do governo do estado do Rio de Janeiro.
Sua análise é o registro fiel de uma época.
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