As faces da
fé e as formas de luta
Por Luciane Soares da Silva*
São 22 horas do dia 15 de maio. Quando os dias
adquirem um significado histórico, nascimentos, mortes e batizados são contados
como caso incomum. “Nasceu no início da guerra”, “Foi batizado no primeiro dia
do novo século”.
Pois então, no dia em que levantamos o povo e a
juventude na cidade das usinas, conheço um casal, de perto da Favela da Linha,
que vem com um carrinho de transporte manual até o Horto para buscar um armário
desmontado. Ela, desempregada, ganhava dinheiro dormindo nas filas de hospital.
Ele, desempregado, era ajudante de pedreiro. Perderam tudo em uma chuva e as
roupas dos três filhos estão em sacos de lixo.
Não sou especialmente religiosa, mas desde que
passei a pesquisar situações como esta, algo acende meu coração. E hoje isto
ocorreu. Ele muito calado, como é próprio daqueles a quem Lamento Sertanejo
toca, pouco disse. Ela, após pedir água e explicar sua situação, caminhou em
minha direção, deu-me um abraço muito apertado e disse “Fique com Jesus”.
Eu me lembro de, em algum momento, ter pensado
sobre as formas da fé. A fé na ciência, a fé em Deus, a fé no amor. E, entre
tantos mistérios, sempre fui dominada pelo interesse nesta fé que Gilberto Gil
descreve ao falar das procissões, que unem pessoas crentes nas coisas lá do
céu.
Como se pode distribuir o que não se tem e nesta
distribuição agraciar quem nunca soube o que é falta? Que tipo de generosidade
resiste à miséria e à violência e sobrevive às enchentes e às humilhações,
permanecendo o coração fiel ao ato da dádiva?
Campos, a cidade da riqueza represada, a cidade da
pobreza silenciosa, é como as procissões cantadas por Gil. No silêncio daquele
carrinho no meio da rua, cambiando entre os dois lados de uma quarta-feira,
eles sumiram.
E eu voltei à morte de Trotsky e encontrei uma
carta de seu amigo Adolf Joffe. Reproduzo aqui um parágrafo e espero que a
leiam um dia na íntegra:
[…] se tem
como eu, fé no progresso, pode-se muito bem conceber que, mesmo em caso de
perdição de nosso planeta, a humanidade encontre os meios de habitar outros mais
jovens e prolongue por conseguinte sua existência; e então, tudo que for feito
em seu bem em nosso tempo se refletirá também nos séculos longínquos, quer
dizer dará a nossa existência a única significação possível.
Até o dia 14, convoco todos a agir por estas
estranhas formas de fé. Se há séculos elas têm mantido a humanidade aquecida,
não é hora de esmorecer.
* Socióloga. Professora Associada à Universidade
Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Chefe do Laboratório de Estudos
da Sociedade Civil e do Estado (LESCE/CCH/UENF) e Presidenta da Associação de
Docentes da UENF (ADUENF).
sem dúvida o texto aquece a alma. Obrigado Luciane!
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