Um convite para sairmos dos clichês sobre educação superior
– diálogo com o editorial “Idiotia Útil” do jornal Folha de São Paulo
George Gomes Coutinho
O editorial publicado na última sexta-feira na Folha de São Paulo intitulado “Idiotia Inútil”[1], apresentou uma breve análise sobre os descaminhos da tensa relação estabelecida entre o
governo Jair Bolsonaro e os grupos sociais que se engajam no
enfrentamento dos gargalos da educação brasileira em seus diferentes níveis é,
no mínimo, oportuno. Afinal, o que está posto não é de pouca monta. Podemos
dizer sem maiores dificuldades que escamoteado sob o eufemismo
“contingenciamento” se oculta um projeto bárbaro, uma demonstração brutal de
força ao mesmo tempo metódica, sistemática e destruidora contra um outro
projeto concorrente consensual em termos de tema e difuso em objetivos e metas
onde não se vislumbra um Brasil do século XXI sem pesados investimentos nas
instituições e estabelecimentos de ensino público, englobando de universidades
até as creches.
Não custa
lembrar, tal como um mantra, que o nosso século é o século do conhecimento. Não
investir em educação, o que envolve estimular a solução criativa, analítica e
cotidiana de problemas, simplesmente implica na opção em não preparar enormes
contingentes da população para os desafios já presentes no mercado de trabalho
e na sociedade. É curioso que se reapresente uma opção histórica persistente de
parte da sociedade brasileira que reedita o desumano processo de encerramento
da escravidão formal no Brasil do século XIX: desescravizem os cativos sem
crédito, sem terra, sem educação formal. Que se virem. As consequências foram e
são trágicas como bem sabemos dado este que é um dos mais cruéis passivos
sociais do mundo ocidental. Da mesma maneira no Brasil contemporâneo o trabalho
manual de baixa qualificação e subalterno é igualmente abolido de maneira
gradual, o que permitiria uma outra desescravização do trabalho monocórdico.
Todavia, me parece que parte das elites econômicas e sociais brasileiras não
assimilaram suficientemente os aprendizados oriundos de 1888. E, claro, decorar
a fórmula da água ou tabuada é insuficiente perante os desafios que os
desalentados enfrentam/enfrentarão.
Retomando a
arquitetura da destruição que subjaz ao que vivenciamos na atual conjuntura, as
razões do pesado investimento libidinal por parte do governo e de setores da
sociedade brasileira contra as instituições de ensino são diversas e mapeáveis.
Há uma miríade de humores. Desde a espantosa idolatria de um determinado
grupo da sociedade a um senhor que se autoproclama “filósofo”, e é simplesmente
ignorado pelo circuito da filosofia profissional brasileira, até os
ultraliberais que defendem a privatização selvagem de todas as instituições e
estabelecimentos de ensino. Estes últimos esquecem que no caso do ensino
superior as opções fornecidas pelo mercado já existem e dadas as configurações
de trabalho prediletas do patronato nativo, onde devemos optar entre direitos
ou algum salário, os mesmos simplesmente contribuem de maneira francamente
minoritária com a produção de conhecimento. Se hoje somos o 13º lugar mundial na
produção científica disponível em artigos segundo a empresa norte-americana
Science-Metrix[2],
isto se deu com contribuição modesta do empresariado do ensino superior, o que
inclui a irmã do atual Ministro da Economia, o senhor Paulo Guedes.
Sem dúvida o
editorial da Folha é contribuição relevante ao suscitar questões e reflexões para
este debate complexo. Contudo esbarra no mimetismo, no constrangedor senso
comum mais preguiçoso acerca do que deve ser o ensino superior avançado brasileiro
ante os desafios de nosso século. O desfecho do editorial é particularmente
desastroso. Uma das questões curiosas: o que significa “excesso de
politização”? Seria possível citar dentre as melhores instituições
universitárias ao redor do mundo as que teriam a régua, a justa medida da
“politização suficiente”, dado que toda e qualquer universidade digna desse
status necessita discutir as grandes questões da sociedade tanto quanto uma
planta precisa de água?
Talvez as
instituições no capitalismo desenvolvido padeçam de “excesso de politização” ao
receber rotineiramente ativistas, políticos e afins para conferências,
homenagens, etc.. A acusação soa jeca, provinciana.
Sobre “cobrar
mensalidades”, algo que já foi demonstrado inócuo em termos de sustentabilidade
das universidades por esta fonte de renda, a questão é não menos tosca. É só
senso comum dos grupos mais do flanco direito do espectro político que ignoram de
maneira disciplinada que há uma mudança substantiva do perfil do alunado no
ensino superior nacional nas instituições públicas. Sim, a maioria dos
estudantes do ensino superior federal, por exemplo, são provenientes das
classes C, D e E[3] e
a quebra da natureza gratuita do ensino superior enquanto direito, algo que nos
é historicamente recente e remete a 1988, não compensaria por trazer um recurso
que é tão somente residual em termos de impacto concreto. Inclusive dada a alta
qualificação dos docentes, regra onde perfis como de Weintraub são exceções, as
mensalidades seriam acessíveis somente para um estrato muito pequeno de
estudantes, aqueles do mais alto topo da pirâmide social.
Ainda há a
questão da governança e neste ponto concordamos em termos. A engenharia
institucional de gestão deve ser constantemente aprimorada. Accountability nunca, jamais é uma prática
estática. Deve ser dinâmico em processo de complexificação constante.
Igualmente a eficiência de gestão. Porém, tomei conhecimento pela própria Folha de São Paulo[4]
que desde 2014 há um processo constante de corte de recursos de custeio e investimento
em um país onde já se apregoou que o investimento de 10% do PIB comporia um
projeto de Estado em torno da educação. Neste momento, segundo a própria Folha,
atingimos em 2019 patamares similares em termos de investimento e custeio aos
de 2009, tendo alcançado no presente em diversos campi um maior quantitativo de
estudantes de graduação e pós. Diante dos fatos, será que se trata de mera
incompetência, má vontade ou qualquer outro juízo possível de ser derivado da
crítica presente no editorial ao trabalho dos gestores das instituições de
ensino públicas?
Sem dúvida o
governo Bolsonaro não se mostra capaz, por antolhos ideológicos e
anti-iluministas e por vezes por dramática incompetência, de responder aos
desafios que nos defrontamos na educação pública. Por outro lado e não só neste
tema o Brasil nunca precisou tanto do jornalismo profissional, de qualidade e
crítico como na conjuntura do obscurantismo e das fake news. Contudo, para até mesmo irmos além da factualidade (que
é imprescindível), o campo propositivo da grande imprensa em geral e da Folha
em particular precisa se arejar. Com urgência. Afinal, não estamos falando meramente
de instituições irrelevantes. Estamos falando de projeto civilizatório.
[1]
O editorial “Idiotia útil” foi publicado em 17 de maio de 2019 e
encontra-se disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/05/idiotia-inutil.shtml
https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2019/05/idiotia-inutil.shtml
[2]
O relatório “Analytical Support for Bibliometrics Indicators Open access
availability of scientific publications” encontra-se disponível na íntegra em: http://www.science-metrix.com/sites/default/files/science-metrix/publications/science-metrix_open_access_availability_scientific_publications_report.pdf
[3]
A Associação de Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior
(ANDIFES) está realizando a 5ª Pesquisa do Perfil Socioeconômico dos Estudantes
das Universidades Federais onde esses dados são corroborados. Para maiores
informações sugiro visitar o site da própria Andifes onde encontram-se dados e
afins desta pesquisa: http://www.andifes.org.br/pesquisa-perfil-socioeconomico-dos-estudantes-das-universidades-federais/.
[4]
Na matéria “Verba livre de universidades federais retrocede uma década” é
passível de acesso em https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/05/verba-livre-de-universidades-federais-retrocede-uma-decada.shtml.
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