sábado, 29 de fevereiro de 2020
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020
O desafio ético dos aplicativos
O desafio ético dos aplicativos*
Os aplicativos de
serviços são uma realidade. Sua presença é uma constante nos centros urbanos e,
ao que tudo indica, há uma tendência de aprofundamento de suas atividades. Não
importa a hora, é possível pedir comida em casa apenas clicando no celular, sem
ter que falar com alguém e sem precisar tocar na carteira – basta que o cartão
de crédito esteja devidamente cadastrado. Por preços módicos, é possível pedir
um carro que me levará de um ponto a outro da cidade, me esquivando da
violência urbana e me afastando do transporte público. Os preços são
convidativos; a comodidade é mais que sedutora. A vida muda e agora não
precisamos ir à mercearia para comprar o queijo que faltou pra terminar aquela
pizza que resolvemos, por mero desejo, preparar em casa e com nossas próprias
mãos. Se você se cadastrou no aplicativo, mas ainda não usou, é provável que
receba promoções e descontos sem fim para adentrar nesse universo de serviços.
A sedução é grande e, como se não bastassem os preços encantadores, ainda há
tudo aquilo que nos desestimula a sair de casa: o transporte público
ineficiente, o trânsito e a violência das ruas, o mau atendimento dos atendentes
etc. Parece um caminho sem volta: até as compras de supermercado podem ser
feitas por aplicativos e inúmeros cursos podem ser feitos na modalidade EaD. Os
custos disso ainda não podem ser calculados. A precarização do trabalho é a
primeira questão visível: pessoas de um lado para o outro em bicicletas e
carros tentando garantir o pão de cada dia em jornadas que ultrapassam as 12
horas e não dão garantias. Aplicativos feitos no exterior estão gerenciando
todas as entregas de refeições em cidades onde os programadores nunca colocaram
os pés, fazendo com que os restaurantes locais entrem em colapso precisando
reduzir cada vez mais seus preços para que seja mantida a competitividade. Se a
passagem de ônibus custa R$3,75, fica mais fácil pegar um Uber por R$10,00
quando saio com minha esposa e nossos filhos. Ao mesmo tempo em que os aplicativos
proporcionam meios de renda para os nossos milhões de desempregados, eles
deterioram, pouco a pouco, os serviços coletivos – públicos e privados. É
preciso refletir sobre as mudanças da contemporaneidade antes que seja tarde
demais.
Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.
* Publicado na Página 04 do Jornal Folha da Manhã de 22 de Fevereiro de 2020.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020
Deforma administrativa
Deforma administrativa
Paulo Sérgio Ribeiro
Desde
fins do ano passado, de cima a baixo nos escalões do Poder Executivo Federal e
nas entidades a ele vinculadas, ventila-se a reforma administrativa. Já
passamos da fase do burburinho nos corredores para conversações mais detidas sobre
as possíveis consequências para o serviço público de mais uma reforma cujo
anúncio é feito por um banqueiro dublê
de Ministro de Estado, Paulo Guedes, posto à frente da Economia.
Admito
que este texto é atravessado por alguns ardis, considerando a linha tênue que
separa o interesse público dos conflituosos interesses corporativos que permeiam
a burocracia estatal. Tal ressalva deve-se, pois, ao fato de os colaboradores
deste blog serem servidores públicos
federais e, não por acaso, membros de universidades públicas. Eu, despenhando sua
atividade-meio (recursos humanos), e os demais cumprindo sua atividade-fim
(docência, pesquisa e extensão).
Contudo,
não há porque “amarelar” diante do tema, pois a lealdade institucional que devemos
à Universidade que nos pariu para a vida pública vai ao encontro de um
pressuposto de sua legitimidade social: a autonomia política dos seus quadros
técnico-científicos perante os mandatários do dia. Se para alguns, isso nada
mais é do que um lembrete inócuo,
aqui, pelo menos, estimula avaliarmos a dimensão ético-política de um Estado
social e as condições de sua viabilidade face à disputa de narrativa sobre o
modelo de administração pública adequado à realidade brasileira.
Teorias
do Estado muitas há e não caberia aqui dissecá-las, haja vista sua extensão que,
seguramente, demandaria um blog mais especializado.
Mas, é como se diz, “clássico é clássico!”, e, assim sendo, começo a análise
recorrendo a “Política como vocação”, uma palestra pronunciada por Max Weber no
início do século passado que tornar-se-ia um texto basilar para as ciências
sociais.
Ao
diferenciar o “viver para a política” do “viver da política” como forma de
pensar a profissionalização do exercício do poder sob uma ordem econômica capitalista,
Weber dá pistas de que tal distinção analítica, ainda que necessária, deve ser
relativizada no que toca ao sentido da ação atribuído a uma relação de
dominação. Em tese, as condições objetivas do agir político implicariam
disponibilidade econômica, isto é, a possibilidade de comprometer-se com uma
“causa” sem maiores preocupações com as eventuais vantagens que a atividade
política possa proporcionar.
Ao
contrário do que dita o senso comum, o homem político não raro investe seu
tempo na luta pelo poder motivado por algo além do mero gozo da posse do poder.
Tratar-se-ia de uma necessidade subjetiva de intervir no mundo mediante atos e
obras que deem significação à sua
vida. Todavia, lembra o Weber que tão bem apontou as falhas metodológicas do
materialismo histórico sem dele abdicar por completo em seu diagnóstico da
Modernidade, em um regime político que tenha em seu cerne a propriedade
privada, uma desigual distribuição da riqueza converterá a segurança econômica em
um móvel quase exclusivo da ação dos homens de Estado e de todos os demais que
a eles se subordinem.
De
um lado, mesmo aqueles que (milagrosamente) disponham previamente de patrimônio privado independente do acesso privilegiado aos fundos públicos podem “viver da política” ao orientá-la para seus interesses econômicos imediatos se dotados de
uma posição de comando no Estado; de outro, a estruturação do Estado em
diferentes formações nacionais acarretou a manutenção da ordem através da
distribuição de empregos e demais recompensas segundo a lealdade manifestada na
luta política por aqueles desprovidos de tempo livre, sejam estes o empresário
capitalista que assim se constitui ao dedicar imersão total à sua atividade,
sejam o trabalhador subalternizado pela luta diária por um ganha-pão ou o
pequeno burguês carente de prestígio pessoal.
A beleza do pensamento weberiano está nas variantes sutis que é capaz de exibir
na abordagem de um problema tão vasto como a instituição do Estado-moderno. Este,
malgrado o molde plutocrático do recrutamento dos seus dirigentes e os diversos
arranjos clientelísticos que dão forma e relevo à sua estrutura organizacional
é, também, uma resposta a imperativos de ordem técnica da gestão de recursos
escassos em uma sociedade complexa.
Tais
imperativos corporificam o que Weber denominaria de “honra corporativa” e que,
a nosso ver, traduzir-se-ia por ética do serviço público. Ora, o grosso do
pessoal que integra a administração pública é composto de trabalhadores
intelectuais altamente qualificados, mesmo para as funções que exigem escolaridade
média, os quais, no Brasil pós-1988, dedicaram esforços ingentes para ingressar
em uma carreira de Estado e que, ao assumi-la, encaram suas tarefas
animados sobremaneira por um “sentimento de integridade”[1]. Nas
palavras de Weber:
Se esse espírito de honra não existisse entre os funcionários,
estaríamos ameaçados por uma corrupção assustadora e não escaparíamos ao
domínio dos filisteus. Simultaneamente, estaria em grande perigo o simples
rendimento técnico do aparelhamento estatal, cuja importância econômica se
destaca crescentemente e não deixará de crescer, principalmente se consideradas
as tendências atuais no sentido da socialização[2].
Palavras
ditas há mais de um século que se mostram atuais para desmitificar os estereótipos
sobre os servidores públicos que encobrem proposições de eficácia discutível e encorajam
declarações acintosas[3] de
Guedes et caterva.
Quais
proposições?
Sua
fonte ideológica, por assim dizer, atende pelo nome de “PEC Emergencial”[4],
Projeto de Emenda à Constituição nº 186/2019 apresentado por Paulo Guedes ao
Senado Federal em 05 de novembro de 2019, a qual se junta a “PEC do Pacto
Federativo” e a “PEC dos Fundos Públicos” para compor o “Plano Mais Brasil”. Na
PEC Emergencial, estão previstos: a não promoção de servidores públicos – com
exceção dos que integram determinadas carreiras típicas cujo poder de pressão é
demasiado forte para se interpor; o congelamento das remunerações; a não
criação de novos cargos e de indenizações ao servidor; a suspensão de concursos
públicos; a redução de até 25% da jornada de trabalho com redução proporcional
da remuneração.
O
argumento oficial: ante a crise fiscal do Estado, um novo ponto de equilíbrio
nas finanças públicas dever ser alcançado por meio do “Teto de Gastos” e da
obediência estrita à “Regra de Ouro”. O primeiro, esculpido pela Emenda
Constitucional nº 95/2016, consiste em um limite de despesas anuais com vistas
ao controle da dívida pública. Tal limite tem por referência os gastos do ano anterior
corrigidos pela inflação. Noutros termos, se a demanda por investimento público
crescer (e sempre crescerá, pois as políticas públicas são um universo em
expansão), ela continuará simplesmente reprimida. A segunda, por sua vez, calcada no
inciso III, Art. 167, da Constituição Federal, prevê a proibição de realizar
“operações de crédito que excedam o montante das despesas de capital”[5].
Descendo
à terra: os empréstimos que o Governo contrai com os bancos (operação de
crédito) para, por exemplo, reformar ou construir uma escola pública (despesa
de capital que incorpora um bem ao patrimônio coletivo), em regra, não deverão
ultrapassar o limite já estabelecido para despesas
dessa natureza. Se, por força do texto constitucional, o governo não pode
endividar-se para cobrir “despesas obrigatórias” tais como as despesas de
capital, o mesmo não se aplica às “despesas correntes”, de caráter
discricionário, tais como reajustes na remuneração, promoções por tempo de
serviço, gastos com novos concursos públicos e processos seletivos
simplificados, ou seja, a carne e o osso do que se entende por ingresso e desenvolvimento
em uma carreira de Estado.
Uma
objeção factual: a economia estimada com a redução salarial que, por ventura,
seja imposta aos técnicos administrativos em educação, bem como às demais
categorias profissionais do serviço público federal que nele trabalham a um
baixo custo para a economia nacional, mediante o expediente da redução da
jornada de trabalho, será inútil. Essa pretensa terapia que nada
mais faz do que matar de inanição o paciente é esmiuçada em números pelo
Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco):
O
Governo estima economizar R$ 10 bilhões com a redução salarial no primeiro ano.
Trata-se de um valor irrisório perto dos problemas estruturais que levaram o
governo a estimar para 2020 a necessidade de créditos extras de mais de 300
bilhões de reais. Por que razão o Governo Federal abriria uma frente de batalha
de tal envergadura com os servidores públicos? Por que sucatear a já combalida
prestação de serviços públicos em troca de economia tão singela?[6]
Uma
objeção teórica: submeter à proletarização a quase totalidade dos membros das
carreiras de Estado que asseguram dia a dia a execução das políticas públicas é,
no médio e longo prazos, um tiro de misericórdia em nossa já combalida
soberania nacional. Esta não se confunde com a sobreposição de uma política
econômica às demais competências do Estado como mera correia de transmissão dos
ditames do capital financeiro, pois, a coesão social minimamente necessária
para a vigência de um território nacional requer um sentimento de identidade
cidadã. Este, por sua vez, somente se concretiza no cotidiano das populações
que recebam do Estado algo mais do que as habituais intervenções repressivas
nas periferias conjugadas à ausência de uma rede de proteção social e de medidas de mitigação/reversão do desemprego em massa.
Rompendo-se
de vez com os direitos coletivos, resta-nos nada mais do que o individualismo
negativo de que nos falava Robert Castel[7]:
sermos convertidos em “super-indivíduos” na justa medida em que todos os encargos sociais inerentes à regulação das relações de trabalho e ao
seguro social sejam transferidos àqueles capazes de “gerir” a si mesmos em nome do pagamento de juros e serviços de uma
dívida pública que nunca foi auditada...
Estrangular
o serviço público não é uma contingência e sim uma exigência lógica de um
agenda ultraliberal que impõe um modelo de administração pública que, ao fim e
ao cabo, esvai a noção mesma de res publica.
[1]
Cf. WEBER, Max. Ciência e política: duas
vocações. São Paulo: Editora Martin Claret, 2002, p.72.
[2]
Ibid. ibidem.
[4]
Exposição de Motivos da PEC Emergencial (PEC 186/2019). Fonte: Senado Federal.
[5]
Constituição Federal de 1988, Art. 167, III. Fonte: Presidência da República.
[6]
“PEC Emergencial: um duro golpe no serviço público”. Fonte: SINDIFISCO.
[7] Cf.
CASTEL, Robert. As metamorfoses da
questão social. Uma crônica do salário. Petrópolis-RJ: Vozes, 1998.
CfP: World Economy Working Group, 2020 IIPPE Annual Conference – Ferrara, Italy, September 9-11, 2020
CfP: World Economy Working Group, 2020 IIPPE Annual Conference – Ferrara, Italy, September 9-11, 2020
Deadline for Submission of Abstracts: March 15, 2020
Dynamics of Unevenness, Politics of (Under)development, and Forms of Resistance in the Global South
Beginning significantly in the 1980s, neoliberalism emerged as the latest phase of capitalism that has dissolved the social compromise between capital and workers to the detriment of the latter. With its aim to maintain the undisturbed mobility of capital, neoliberalism has sought to control over and suppress any potential social force. As a consequence, neoliberalism has brought about enhanced commodification and marketisation, privatisation, deregulation coupled with austerity, precarisation, and de-unionisation. In addition to the rise of authoritarian forms of government, the mainstream political parties and movements began to resort to populism that offered new welfare regimes and redistribution mechanisms to depoliticise the masses and isolate state benefits from civil rights. With its emphasis on the general will of the people and the national interest, populism has further contributed to the weakening of labour organisation and movements.
The world capitalist system is characterised by a hierarchical relationship between the advanced capitalist countries and the peripheries of capitalism in the Global South. The Global South has been characterised by dynamics of unevenness, underdevelopment, and inequality not only in comparison to the advanced capitalist countries but also among various parts of the Global South itself. The impact of neoliberalism and populism on the Global South has been asymmetrical in its combination with other socioeconomic and socio-political aspects of underdevelopment, such as war and conflict, poverty, immigration, gender- and race-based inequalities, rural-urban divide and urbanisation, reorganisation of agriculture, and so on. Yet, peoples of the global South have often risen up against the national and global production relations and unequal distribution relations in the forms of protests, demonstrations, and social movements.
This section aims to foster a critical and interdisciplinary debate on unevenness, underdevelopment, and resistance in the Global South in the age of neoliberalism and populism by drawing from political economy, international relations, geography, political ecology, gender studies, race studies, sociology, and history.
We also welcome submissions about ongoing attempts to build alternatives to neoliberalism and capitalism in the Global South.
About your submission:
If you are interested being part of a panel in this stream, or have any questions please e-mail Gönenç Uysal (gonencuysal@osmaniye.edu.tr) and Lucia Pradella (lucia.pradella@kcl.ac.uk).
Please tick the World Economy Working Group when you make your submission and then indicate under the title or abstract tab that you are submitting to this call by adding Dynamics of Unevenness.
domingo, 16 de fevereiro de 2020
Gênero na Escola?
Gênero
na Escola?*
Muito se
tem falado sobre a abordagem de “questões de gênero” nas escolas. Há projetos
de lei que pretendem proibir essas discussões no ambiente escolar e
classificam-nas como “doutrinação” pautada na “ideologia de gênero”. Denominam
“ideologia” no intuito de destacar a artificialidade das ideias pertencentes a
grupos determinados e seu afastamento do plano do “natural”. O discurso,
moralista e moralizante, se pretende racional e coerente, com pitadas de
ciência, mas, no final das contas, acaba sendo o reflexo e desdobramento, aqui
sim, de uma ideologia: a ideologia machista
(androcêntrica/falocêntrica/patriarcal). Pois quando se busca discutir questões
de gênero nas escolas, isso é feito a partir da reflexão teórica e conceitual
estabelecida por intelectuais de distintos campos do saber: Margaret Mead,
Simone de Beauvoir, Pierre Bourdieu, Michelle Perrot etc. O que há de comum entre todos é o debate
crítico sobre como os papéis sociais atribuídos a homens e mulheres são
justificados por argumentos biológicos que se desmantelam diante da reflexão
sobre as masculinidades e feminilidades apresentadas em diferentes períodos
históricos ou, sincronicamente, em diferentes culturas.
Discutir
gênero na escola não é uma doutrinação, mas pode ser uma libertação para todos
aqueles que sentem não preencher satisfatoriamente, seja lá o que isso for, os
papéis de gênero que lhes foram designados como de “homem” ou de “mulher”. Não se trata de “kit gay” para
criar gays, mas sim de um processo educacional que visa proporcionar condições
para que pessoas não sofram preconceitos cotidianamente. Trazer o debate sobre
questões de gênero para as escolas é promover o respeito e a cidadania. Assim
como aprendemos na escola que existem outros regimes políticos e econômicos - e
não aderimos a eles -, podemos aprender que também existem outros arranjos
familiares e afetivos, sem que isso seja uma imposição. A necessidade de
debater gênero nas escolas se deu porque o machismo nunca precisou estar nos
currículos oficiais para ser ensinado nas escolas, nas mesas de jantar, nos
parquinhos etc.
Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.
* Artigo publicado em 04 de Agosto de 2018 na Página 04 do Jornal Folha da Manhã.