Saudades
de um bar*
Ando
saturado de atividades online. É pela tela do computador que tenho interagido
com o mundo e dele tenho recebido notícias. Encontro com estudantes pelo Meets
e isso é muito bom, na medida em que é melhor do que simplesmente não
encontra-los – mas não é a mesma coisa. A criatividade para a escrita tem me
faltado e isso começou a se transformar em uma preocupação. Na semana passada,
organizei uma palestra com o Professor Renzo Taddei, da Unifesp, para discutir
o livro “A queda do céu” – de Davi Kopenawa e Bruce Albert – e falar de
diferentes assuntos a partir dali: cosmologias, conhecimentos tradicionais e
sua relação com a ciência, problemas ambientais etc. Ao longo da preparação do
evento, tive a certeza: “meu próximo artigo para a Folha será sobre Kopenawa”.
Eis que o evento terminou, cliquei no botão para encerrar a gravação, vi os
comentários das pessoas que acompanharam a transmissão e.... pronto. Acabou. Nada
mais. Fiquei com a sensação de que algo havia faltado. E não consegui escrever
sobre o assunto.
Os dias
passaram e fui me envolvendo com outras atividades acadêmicas, a maioria delas
de caráter administrativo, mas todas com uma característica comum: remotamente,
a partir do meu computador, na sala da minha casa, começando e terminando com
cliques. Não dá para dizer que a falta de criatividade seja fruto da falta de
assunto. Todos os dias vejo notícias de novos absurdos do governo federal e
suspeitas cada vez mais escandalosas sobre a administração do governo Estadual.
É muita loucura para pouco tempo e isso costuma render diversas letras - só que
não tem rendido. E foi já conformado com a situação que voltei ao computador
para ler um texto que havia “guardado para depois”. Falo do artigo de Aluysio
Barbosa sobre “O Mundo sem boteco”, onde o autor narra uma conversa típica de
botequim versando sobre literatura, política, pandemia e o futuro de Campos.
Um texto divertido que só não atingiu a plenitude do ambiente de boteco porque
não mencionou o retorno de Jesus ao Benfica. É óbvio que esse assunto
estaria entre os trend topics dos bares do Brasil e, dada a relevância da camisa
rubro-negra - muito maior que os dirigentes do clube -, do mundo. O texto deve
ter sido escrito antes da saída de Jesus. Terminei de ler o
texto e pensei: nossa, é isso que tem feito falta: um boteco.
O tempo foi
passando e recebi, por acaso, uma entrevista de meu querido colega Paulo Thiago
de Mello falando sobre as mudanças sofridas nos botequins cariocas e as
dificuldades enfrentadas pelo setor. Paulo Thiago tratou de uma mudança nas
expectativas dos consumidores, que agora buscam experiências gastronômicas,
coisa que não era o propósito do boteco tradicional. E não era mesmo. O boteco,
como argumenta meu colega, caracteriza-se por ser um espaço de socialização. A
comida e a bebida são itens importantes, claro, mas o ambiente conhecido, com
pessoas conhecidas... isso aí sim seria a característica central da cultura
de boteco.
A entrevista me remeteu ao artigo do
Professor Luiz Antônio Machado da Silva, intitulado “O significado do
botequim”, onde são abordadas diferentes formas de sociabilidade em um botequim,
instituição de grande importância em algumas áreas da cidade, onde, por
exemplo, trabalhadores se informam sobre oportunidades de trabalho ou sobre os trâmites para obter documentos, o
que caracteriza o botequim como um espaço de hospitalidade urbana. O autor
destaca, de modo muito evidente, que o botequim transcende a oferta de álcool e
adquire o que poderíamos chamar de relevância sociológica, o que contrasta com
muitos dos preconceitos e críticas que pairam sobre o botequim.
No bar nós
bebemos, sim, mas não fazemos só isso. Nós conversamos, trocamos informações
sobre os eventos recentes, sejam eles públicos ou privados, deixamos a
imaginação fluir e aprendemos enquanto ouvimos os outros. O bar é um lugar de
convivência onde a vida pública se desenrola e as relações são vivenciadas,
onde, como diz a sabedoria popular, vamos para “trocar uma ideia”. Trata-se,
pois, de um espaço de interação, algo crucial para a vida urbana. Advogados,
jornalistas, médicos e até engenheiros civis formados, assim como pedreiros,
auxiliares de escritório e outros inúmeros grupos profissionais reúnem-se em
seus bares prediletos após a labuta para confraternizar, falar da rotina de
trabalho, planejar o futuro, debater o presente e analisar diversos aspectos da
vida em geral. O bar renova a vida, refresca a rotina e areja o espírito.
Os
desavisados pudicos que tratam o bar como uma instituição ligada ao alcoolismo
não compreendem a relevância da instituição e tratam-na com puro preconceito. A
pandemia poderia ensinar-lhes algo, mas, assim como acontece normalmente no Brasil
atual, é mais cômodo ter uma opinião esvaziada de conteúdo do que empreender
qualquer exercício de reflexão sobre algo - o que faz com que os preconceitos
perdurem. Todavia, o escritor é persistente e insiste em trazer problemas: se as
prateleiras de supermercado estão repletas de oportunidades etílicas, por que
alguém sentiria saudades de um bar? A resposta para isso está nas linhas acima:
o bar não é a bebida, o bar é a socialização. Há inúmeros espaços que oferecem
interações sociais riquíssimas – academias de ginástica, estádios de futebol,
igrejas, clubes etc - , todavia, para algumas (muitas) pessoas, é no bar que
tais interações são vivenciadas. E a falta que se sente não é da cerveja
gelada, que em casa permanece fechada na geladeira, mas sim dos encontros dos
bares. Pois a cerveja é pretexto para encontrar as pessoas, do mesmo jeito que
encontrar as pessoas é pretexto para a cerveja. No final das contas, são os
encontros que são buscados e que, num contexto de pandemia, foram impedidos.
Até quem ignorou a quarentena vivenciou um
empobrecimento de sociabilidade. O isolamento físico significou uma
transformação radical nas formas de experimentação da vida social e, com isso, passamos
a observar, ou realizar, uma série de queixas derivadas da falta do encontro. O
que a pandemia destacou é uma ideia que fundou o nascimento da Sociologia, com
Émile Durkheim: a sociedade está no indivíduo e acima dele; e ele é mais do que
ele mesmo na medida em que a sociedade está nele. O isolamento não elimina a
sociedade, de forma alguma, mas ele reduz a experiência do encontro, das
trocas, do fluxo pelas cidades, do caminhar e do caminho. E quem sente saudades
de um bar, sente saudades da cerveja, mas também e sobretudo do conjunto de
experiências que vem como acompanhamento.
Os eventos da universidade não têm
terminado nas mesas do Dona Chica, do Seu Evaldo, do Tropeço ou do Black Bird -
e isso tem reduzido os debates e encerrado a reflexão. E essa constatação, de
que o desdobramento de eventos acadêmicos em bares possibilita a continuidade
de debates - de modo mais informal e por vezes mais frutífero -, deveria ser
suficiente para fazer refletir sobre as limitações do Ensino a Distância, onde
não ocorrem encontros nem nos corredores. Todavia, isso aqui é o Brasil e
vivemos “esse pileque homérico no mundo” nada favorável à reflexão sobre a
realidade.
Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.
Publicado no Site da Folha da Manhã em 25 de Julho de 2020.
Abraão, meu pajé, que saudades de tomar uma gelada contigo e com os nossos! Excelente reflexão!
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