segunda-feira, 3 de agosto de 2020

Saudades de um Bar


Saudades de um bar*

            Ando saturado de atividades online. É pela tela do computador que tenho interagido com o mundo e dele tenho recebido notícias. Encontro com estudantes pelo Meets e isso é muito bom, na medida em que é melhor do que simplesmente não encontra-los – mas não é a mesma coisa. A criatividade para a escrita tem me faltado e isso começou a se transformar em uma preocupação. Na semana passada, organizei uma palestra com o Professor Renzo Taddei, da Unifesp, para discutir o livro “A queda do céu” – de Davi Kopenawa e Bruce Albert – e falar de diferentes assuntos a partir dali: cosmologias, conhecimentos tradicionais e sua relação com a ciência, problemas ambientais etc. Ao longo da preparação do evento, tive a certeza: “meu próximo artigo para a Folha será sobre Kopenawa”. Eis que o evento terminou, cliquei no botão para encerrar a gravação, vi os comentários das pessoas que acompanharam a transmissão e.... pronto. Acabou. Nada mais. Fiquei com a sensação de que algo havia faltado. E não consegui escrever sobre o assunto.
            Os dias passaram e fui me envolvendo com outras atividades acadêmicas, a maioria delas de caráter administrativo, mas todas com uma característica comum: remotamente, a partir do meu computador, na sala da minha casa, começando e terminando com cliques. Não dá para dizer que a falta de criatividade seja fruto da falta de assunto. Todos os dias vejo notícias de novos absurdos do governo federal e suspeitas cada vez mais escandalosas sobre a administração do governo Estadual. É muita loucura para pouco tempo e isso costuma render diversas letras - só que não tem rendido. E foi já conformado com a situação que voltei ao computador para ler um texto que havia “guardado para depois”. Falo do artigo de Aluysio Barbosa sobre “O Mundo sem boteco”, onde o autor narra uma conversa típica de botequim versando sobre literatura, política, pandemia e o futuro de Campos. Um texto divertido que só não atingiu a plenitude do ambiente de boteco porque não mencionou o retorno de Jesus ao Benfica. É óbvio que esse assunto estaria entre os trend topics dos bares do Brasil e, dada a relevância da camisa rubro-negra - muito maior que os dirigentes do clube -, do mundo. O texto deve ter sido escrito antes da saída de Jesus. Terminei de ler o texto e pensei: nossa, é isso que tem feito falta: um boteco.
            O tempo foi passando e recebi, por acaso, uma entrevista de meu querido colega Paulo Thiago de Mello falando sobre as mudanças sofridas nos botequins cariocas e as dificuldades enfrentadas pelo setor. Paulo Thiago tratou de uma mudança nas expectativas dos consumidores, que agora buscam experiências gastronômicas, coisa que não era o propósito do boteco tradicional. E não era mesmo. O boteco, como argumenta meu colega, caracteriza-se por ser um espaço de socialização. A comida e a bebida são itens importantes, claro, mas o ambiente conhecido, com pessoas conhecidas... isso aí sim seria a característica central da cultura de boteco.
A entrevista me remeteu ao artigo do Professor Luiz Antônio Machado da Silva, intitulado “O significado do botequim”, onde são abordadas diferentes formas de sociabilidade em um botequim, instituição de grande importância em algumas áreas da cidade, onde, por exemplo, trabalhadores se informam sobre oportunidades de trabalho ou sobre os trâmites para obter documentos, o que caracteriza o botequim como um espaço de hospitalidade urbana. O autor destaca, de modo muito evidente, que o botequim transcende a oferta de álcool e adquire o que poderíamos chamar de relevância sociológica, o que contrasta com muitos dos preconceitos e críticas que pairam sobre o botequim.
            No bar nós bebemos, sim, mas não fazemos só isso. Nós conversamos, trocamos informações sobre os eventos recentes, sejam eles públicos ou privados, deixamos a imaginação fluir e aprendemos enquanto ouvimos os outros. O bar é um lugar de convivência onde a vida pública se desenrola e as relações são vivenciadas, onde, como diz a sabedoria popular, vamos para “trocar uma ideia”. Trata-se, pois, de um espaço de interação, algo crucial para a vida urbana. Advogados, jornalistas, médicos e até engenheiros civis formados, assim como pedreiros, auxiliares de escritório e outros inúmeros grupos profissionais reúnem-se em seus bares prediletos após a labuta para confraternizar, falar da rotina de trabalho, planejar o futuro, debater o presente e analisar diversos aspectos da vida em geral. O bar renova a vida, refresca a rotina e areja o espírito.
            Os desavisados pudicos que tratam o bar como uma instituição ligada ao alcoolismo não compreendem a relevância da instituição e tratam-na com puro preconceito. A pandemia poderia ensinar-lhes algo, mas, assim como acontece normalmente no Brasil atual, é mais cômodo ter uma opinião esvaziada de conteúdo do que empreender qualquer exercício de reflexão sobre algo - o que faz com que os preconceitos perdurem. Todavia, o escritor é persistente e insiste em trazer problemas: se as prateleiras de supermercado estão repletas de oportunidades etílicas, por que alguém sentiria saudades de um bar? A resposta para isso está nas linhas acima: o bar não é a bebida, o bar é a socialização. Há inúmeros espaços que oferecem interações sociais riquíssimas – academias de ginástica, estádios de futebol, igrejas, clubes etc - , todavia, para algumas (muitas) pessoas, é no bar que tais interações são vivenciadas. E a falta que se sente não é da cerveja gelada, que em casa permanece fechada na geladeira, mas sim dos encontros dos bares. Pois a cerveja é pretexto para encontrar as pessoas, do mesmo jeito que encontrar as pessoas é pretexto para a cerveja. No final das contas, são os encontros que são buscados e que, num contexto de pandemia, foram impedidos.
Até quem ignorou a quarentena vivenciou um empobrecimento de sociabilidade. O isolamento físico significou uma transformação radical nas formas de experimentação da vida social e, com isso, passamos a observar, ou realizar, uma série de queixas derivadas da falta do encontro. O que a pandemia destacou é uma ideia que fundou o nascimento da Sociologia, com Émile Durkheim: a sociedade está no indivíduo e acima dele; e ele é mais do que ele mesmo na medida em que a sociedade está nele. O isolamento não elimina a sociedade, de forma alguma, mas ele reduz a experiência do encontro, das trocas, do fluxo pelas cidades, do caminhar e do caminho. E quem sente saudades de um bar, sente saudades da cerveja, mas também e sobretudo do conjunto de experiências que vem como acompanhamento.
Os eventos da universidade não têm terminado nas mesas do Dona Chica, do Seu Evaldo, do Tropeço ou do Black Bird - e isso tem reduzido os debates e encerrado a reflexão. E essa constatação, de que o desdobramento de eventos acadêmicos em bares possibilita a continuidade de debates - de modo mais informal e por vezes mais frutífero -, deveria ser suficiente para fazer refletir sobre as limitações do Ensino a Distância, onde não ocorrem encontros nem nos corredores. Todavia, isso aqui é o Brasil e vivemos “esse pileque homérico no mundo” nada favorável à reflexão sobre a realidade.
             

Carlos Valpassos
Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.

Publicado no Site da Folha da Manhã em 25 de Julho de 2020.

Um comentário:

  1. Abraão, meu pajé, que saudades de tomar uma gelada contigo e com os nossos! Excelente reflexão!

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