sábado, 24 de outubro de 2020

O que faz a diferença no jogo das diferenças? Nota sobre o caso “Magazine Luiza”

                                                                                                                                                                                                                     Fonte: DCM (aqui).


O que faz a diferença no jogo das diferenças? Notas sobre o caso “Magazine Luiza”

 

Paulo Sérgio Ribeiro

 

O programa de trainee oferecido a homens e mulheres negros(as) pela Magazine Luiza – uma rede de lojas de departamento que se estende por todo o país – foi o estopim para reações as mais disparatadas. De um lado, há aqueles(as) que veem nela uma ação concreta de reparação histórica no seio do mundo corporativo; de outro, há quem nela confirme um atentado à isonomia nos processos de recrutamento e seleção de profissionais.


Creio ser uma tarefa inglória encontrar um ponto de convergência entre tais posicionamentos diante do antagonismo das visões de mundo aí postas. Não à toa, o rebuliço em torno desse programa de trainee me fez lembrar um livrinho que li nos meus tempos de graduação intitulado “O marxismo”[1], de Henry Lefebvre. Nessa pequena grande ousadia de juventude, Lefebvre revisava os fundamentos do marxismo sem esquecer de que sua gênese e desenvolvimento ocorriam em oposição a outras construções filosóficas de mesma envergadura.


Para Lefebvre, temos à disposição não mais do que três grandes concepções de mundo: o cristianismo, o individualismo e o marxismo. A primeira delas, filha dileta da Idade Média, preconizava uma hierarquia estática entre os seres, formas e atos, tendo em seu topo um Ser Supremo que, por óbvio, comprometeria qualquer postulação sobre a realidade com uma razão transcendental.


A segunda, localizada no alvorecer da era moderna (século XVI), encontra na imagem abstrata de um “indivíduo” uma espécie de prefiguração da realidade. Aqui, vige o pressuposto da razão enquanto uma relação constitutiva entre o particular e o universal que, tendo por referente a consciência individual, leva-nos a crer em acomodações espontâneas entre o interesse privado e o interesse geral, entre direitos e deveres, entre o natural e o humano. No pensamento econômico, a metáfora da “mão invisível” do mercado seria o exemplo mais bem acabado de tais “acomodações”.


A terceira, por fim, tanto nega a metafísica (uma hierarquia exterior aos indivíduos) quanto desmente a premissa de que a realidade seja discernível pelo exame de consciências isoladas, como o quer a visão individualista do mundo. Aqui, realidades que escapam à consciência imediata das pessoas – a natureza, as práticas sociais, o progresso técnico, as ideologias - se entrecruzam em um movimento que se revela contraditório em diferentes níveis: os homens lutam contra a natureza para dominá-la e, ao fazê-lo, dominam-se uns aos outros, reduzindo pessoas a coisas ao aliená-las dos meios e do sentido de sua ação sobre o mundo a partir da esfera do trabalho.


Por que essa “volta toda”, indagaria o(a) leitor(a)? Aonde se quer chegar com esse inventário de visões de mundo? A resposta é bem “scholar”, penso eu: se Lefebvre foi feliz ao associar a visão individualista de mundo ao liberalismo e a visão marxista à crítica do capital enquanto relação de dominação que se imiscui até no último reduto de nossa intimidade, temos aqui uma vereda aberta para analisar as possibilidades de crítica das desigualdades sob um enfoque liberal e, não menos, para apontar suas fragilidades sob o prisma do individualismo burguês.


Comecemos pelas fragilidades. No tocante ao caso “Magazine Luiza”, não haveria melhor mostra delas do que a propiciada pela Defensoria Pública da União (DPU) ao processar a rede varejista pelo programa de trainee voltado a candidatos(as) negros(as). Eis o argumento da DPU: o programa seria “ilegal”, pois a eleição de um público-alvo no programa incorreria em “violação de direitos de milhões de trabalhadores (discriminação por motivos de raça ou cor, inviabilizando o acesso ao mercado de trabalho)”[2]. Na ação civil pública, de autoria do defensor Jovino Bento Júnior, exige-se o pagamento por parte da Magazine Luiza de uma multa de 10 milhões de reais por danos morais coletivos[3]. No processo, há um fragmento que sintetiza a “tese” do defensor:

 

“A destinação exclusiva de todas as vagas do certame a candidatos negros gera tal discriminação no universo de trabalhadores que evidencia a desproporção entre o fim almejado e essa supressão radical de direitos da coletividade de trabalhadores”[4].

 

Tal tese – uma falácia sociológica, como veremos adiante – espelha um princípio de justiça que, na tradição de pensamento liberal, atende pelo nome de liberdade natural: todos(as) são livres para colocar à prova suas habilidades e aptidões em uma ordem social competitiva (economia de mercado) quando se assegura a igualdade formal de oportunidades. O alcance de uma posição social vantajosa é legítimo quando as instituições são capazes de eliminar barreiras legais ao exercício dos próprios talentos baseadas em diferenças orientadas por gênero, raça, etnia, procedência regional etc.


Na ótica do defensor, comprometido até a medula com esse princípio liberal de justiça, o programa de trainee em questão seria reprovável por conferir exclusividade, na preparação de futuros cargos de liderança, a um grupo racial em detrimento dos demais grupos existentes. Não seria exagero dizer que o DPU sugere que a Magazine Luiza pratique, digamos, “racismo reverso”.


Por que a “tese” do ilustre defensor não se sustenta? Ora, porque ela nada diz sobre a “arbitrariedade moral” na distribuição da riqueza. Explico: se a acumulação de capitais é resultante de uma distribuição prévia de capacidades naturais cujo aprimoramento e emprego se viabilizam com facilidade ou obstáculos em decorrência de fatores imprevisíveis (background familiar, o bendito “estar no lugar certo na hora certa”, boa sorte etc.), teríamos uma situação de desigualdade moralmente injustificável, uma vez que ela é derivada de circunstâncias e contingências alheias à vontade humana, negando assim qualquer virtuosismo à loteria genética que faculta a alguns(mas) serem herdeiros(as) e a outros(as) terem a “liberdade” de vender sua força de trabalho a qualquer preço. Se assim o é, a igualdade formal está condenada a ser aquela moeda falsa com a qual pagamos a má-fé de uma discriminação institucionalizada.


Mas não sejamos injustos: o “senso” de justiça social do senhor Jovino Jr. não é imune à crítica nem na própria DPU, que, diante da controvérsia a ganhar o noticiário nacional, emitiu uma nota esclarecendo que o ponto de vista dele não representa necessariamente o pensamento da instituição[5]. Também digno de nota foi o posicionamento da Procuradoria Federal do Cidadão do Ministério Público Federal, que afirma a legalidade da política de recursos humanos adotada pela Magazine Luiza[6], bem como de associações do Movimento Negro, que ajuizaram uma ação na qual se pede averiguação da conduta do defensor público[7]. A esta altura, não surpreende que o protagonista dessa celeuma tenha pedido afastamento do cargo[8].


Contendas jurídicas à parte, importa aqui compreender a pertinência de uma política de ação afirmativa e o porquê dela provocar tamanha reação entre aqueles(as) que têm por viseira o senso comum de classe média. Sendo direto: o que fazer a respeito do racismo?


Primeiramente, delimitar o conceito. De modo preliminar, por racismo se alude a um processo sócio-político em que pessoas são segregadas no espaço social em condições de privilégio ou de subalternidade na medida em que um grupo racial se faz hegemônico nas lutas pelo monopólio do poder social. Neste sentido, podemos lançar mão aqui de um livraço, “Racismo estrutural”[9], obra recente de Silvio Ameida que, atrevo-me a dizer, já nasce clássica. Vem a calhar a maneira como Almeida destrincha a concepção institucional de racismo, para ponderarmos tanto a razoabilidade quanto os limites de políticas de ação afirmativa tais como a desenvolvida pela Magazine Luiza.


Evidenciando as superficialidades de uma concepção individualista do racismo, isto é, daquele conjunto inarticulado de crenças pelas quais o racismo é reduzido a um comportamento “irracional” de indivíduos ou grupos considerados isoladamente – cuja explicação desagua em uma visão psicologizante das práticas racistas cotidianas (o/a racista seria alguém “anormal”) e cuja inibição requereria para alguns(mas) a mera aplicação de sanções penais -, a concepção institucional do racismo, para Almeida, toma o funcionamento das instituições como condição objetiva da reprodução de tais práticas.  


Instituições são constituídas pelos conflitos raciais e as respostas que elas são capazes de oferecer aos(às) envolvidos(as) dependerão de sua capacidade de “absorver” tais conflitos na produção de normas e padrões de comportamento. Para Almeida, a expressão “absorver” é prenhe de consequências, na medida em que as lutas sociais que atravessam as instituições tornam patente que o poder simbólico deriva sua eficácia da produção de consensos sobre a própria dominação que elas operam. No caso do racismo institucional, a hegemonização de interesses de homens (em sua maioria) e mulheres brancos(as) “faz com que a cultura, os padrões estéticos e as práticas de poder”[10] que lhes conferem homogamia de classe se tornem “o horizonte civilizatório do conjunto da sociedade”[11]. As declarações de Cristina Junqueira, uma das fundadoras do banco digital Nubank, em entrevista concedida recentemente ao Roda Viva, são um indício robusto do que venha a ser essa homogamia de classe[12].


Contudo, sugere Almeida, há uma espécie de gradiente de poder entre os grupos raciais no interior das instituições, pois, em determinadas circunstâncias, a manutenção do controle institucional não pode prescindir de certas “concessões” a grupos subalternizados quando se está em jogo um projeto político que mantenha inalteradas as condições socioeconômicas em que interesses privados se dissimulem como universais.


Aqui, há de ser ter cautela quanto a possíveis mal-entendidos.


Políticas de ação afirmativa visam a um objetivo cuja justificativa é autoevidente: ampliar a representatividade de minorias raciais de modo a contrabalançar os mecanismos discriminatórios entremeados ao funcionamento “normal” das instituições. Promover a diversidade nos espaços de poder implica que a imposição de padrões sociais que favoreçam a ascensão de homens e mulheres brancos(as) às posições de prestígio venha a ser posta em xeque pela necessidade dessas instituições se posicionarem diante das inevitáveis tensões que práticas antirracistas acarretem ao incorporá-las em sua política de recursos humanos. Não será este o caso da Magazine Luiza?


Das declarações de intenção vagas sobre o antirracismo à passagem para o terreno da experimentação institucional feita em nome de uma meritocracia equitativa, os ganhos coletivos são inegáveis. Contudo, conflitos distributivos têm uma dinâmica que desafia, a meu ver, os limites que o enfoque liberal nos faculta quanto às ações afirmativas. Retornando àquela tradição de pensamento, as ações afirmativas bem poderiam ser enquadradas sob outro princípio de justiça social: a igualdade liberal de oportunidades.


Por meio deste princípio, lembra Álvaro Vita[13], toma-se por equidade um arranjo institucional que efetive tanto quanto possível um ponto de partida igual para aqueles(as) que tenham as mesmas habilidades e destrezas e estejam com o mesmo grau de comprometimento para empregá-las. A medida do “possível” traduzir-se-ia em minorar os efeitos das vantagens sociais herdadas que condicionem o horizonte de realização pessoal atribuível ao ingresso nas carreiras ou negócios mais valorizados, bem como das discriminações de raça e de gênero praticadas de modo sistemático.


A plataforma civilizatória passível de ser projetada na decantação daquele princípio à realidade de um capitalismo periférico equivaleria a reabrir o debate sobre a excessiva concentração de propriedade e riqueza entre nós, posto sê-lo condição necessária para garantir serviços educacionais e de saúde “iguais para todos” e um recrutamento para os cargos de liderança em condições equitativas. Contudo, sob os auspícios da tradição liberal vista a partir daquele princípio, ressalva Vita[14], estão excluídos como “moralmente arbitrárias” circunstâncias que intervêm diretamente na ideação do futuro que uma pessoa venha a ter, tais como a classe social e o capital familiar e cultural. Desigualdades de classe são inevitáveis e, logo, admissíveis, ainda que resultem em desvantagens sociais cumulativas entre as gerações.


Luiza Helena Trajano, fundadora da Magazine Luiza, não titubeia em aderir à igualdade liberal de oportunidades, sobretudo pelas ambiguidades que tal perspectiva contém, já que se mostra contrária à taxação de grandes fortunas. A seu ver, garantida a “isenção” desse tipo de tributo a megaempresários(as) como ela, a doação voluntária tornar-se-ia compensatória para que mais impostos pudessem ser assumidos pelo 0,01% do qual participa[15]. Assim, a revisão do direito à herança – um fator de desigualdade par excellence – mantém-se interditada no debate brasileiro, evidenciando, no caso em tela, os impasses teóricos na articulação das categorias “raça” e “classe” no que respeita às lutas sociais pensadas sob uma perspectiva emancipatória – tema para um outro texto. 



[1] LEFEBVRE, Henry. O marxismo. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1963 (Coleção “Saber Atual”).

[2] Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região. Ação Civil Pública Cível ACPiv 0000790-37.2020.5.10.0015. Acessível (aqui).

[3] Idem.

[4] Idem, p. 36.

[5] Jornal Correio Braziliense. DPU defende programa de trainee do Magalu após ação de defensor público. Edição de 06/10/2020. Disponível (aqui).

[6] Jornal Estadão. Procuradoria defende trainee só para negros da Magazine Luiza: ‘louvável’”. Edição de 09/10/2020, Disponível (aqui). 

[7] Consultor Jurídico. Entidades do movimento negro ajuízam ação contra Defensor que processou Magalu. Edição de 16/10/2020. Disponível (aqui).

[8] Carta Capital. Defensor que moveu ação contra programa de trainee do Magazine Luiza pede afastamento. Edição de 14/10/2020. Disponível (aqui). 

[9] Nela, Almeida propõe uma teoria social cuja premissa é que sociedades contemporâneas não podem ser explicadas pelo cotejo de tipos específicos de racismo, senão por uma interpretação sociológica que dimensione o racismo como condição estrutural das suas organizações político-econômicas. Cf. ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019. (Coleção "Feminismos Plurais") 

[10] Op. cit., p.40.

[11] Idem.

[12] Diário do Centro do Mundo. Cristina Junqueira, co-fundadora do Nubank, diz que é “difícil” contratar líderes negros. Edição de 20/10/2020. Disponível (aqui). 

[13] Cf. Vita, Álvaro de. Uma concepção liberal-igualitária de justiça distributiva. Revista Brasileira de Ciências Sociais, Fev. 1999, vol. 14, nº 39, p.41-59. ISSN 0102-6909, p.44.

[14] Ibid.,

[15] Diário do Centro do Mundo. No que realmente importa, Luiza Trajano não é diferente do Véio da Havan: não aceita imposto sobre sua fortuna. Edição de 05/10/2020. Disponível (aqui).

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