Entrevista - O que esperar da
vitória de Biden ou Trump na eleição presidencial dos EUA? – Parte I *
A frase já
virou lugar comum. Após atravessar o rio Rubicão com suas legiões, para pôr fim
à República de Roma, Júlio César vaticinou: “A sorte está lançada”. Com o mundo
observando, como talvez nunca tenha feito e dificilmente voltará a fazer, os
dados param de girar nesta terça (03) nas urnas dos EUA. E determinarão seu
próximo presidente e os rumos da humanidade. Para entender o que está em jogo e
o que mudará, a depender da escolha do complexo colégio eleitoral estadunidense
entre o presidente republicano Donald Trump e o candidato democrata Joe Biden,
tão favorito nas pesquisas como foi a derrotada Hillary Clinton em 2016, o blog
ouviu o historiador Arthur Soffiati, o cientista político e sociólogo George
Gomes Coutinho e o sociólogo Roberto Dutra. Os dois primeiros, professores da
UFF-Campos, o terceiro da Uenf. Eles analisaram o que pode acontecer, caso
Trump ou Biden ganhem a eleição. E como isso deve afetar, além do mundo em que
a China também acena como superpotência, o Brasil de Jair Messias Bolsonaro.
Blog Opiniões – Analistas políticos do mundo
têm apontado a eleição presidencial dos EUA como a mais importante em algumas
décadas para determinar os destinos do mundo. O que você espera se o democrata
Joe Biden se eleger, como apontam as pesquisas? E se, contrariando-as, como em
2016, Donald Trump conquistar a reeleição?
Arthur Soffiati – A eleição é importante
porque o mundo se polariza mais entre um progressismo moderado e um retrocesso
reacionário, obscurantista, negacionista, anticientífico e propagador de
mentiras. Biden não é um candidato carismático como Obama. Sua vitória,
contudo, representa a reconquista de uma posição perdida. Não espero que ele
faça milagres num contexto tão dividido. Com a reeleição de Trump, antevejo um
futuro tenebroso, pois os Estados Unidos, queiramos ou não, é o coração do
mundo democrático. A recondução de Trump representará o triunfo do atraso e a
sua consolidação.
George Gomes Coutinho – Sem dúvida neste momento
se considera que Trump tem um desafio e tanto para ser reeleito. Envolveria
simplesmente repetir a “tempestade perfeita” que o elegeu e ainda reafirmar sua
identidade de outsider, algo pouco convincente após quatro anos na Casa Branca
e um rosário de promessas não cumpridas. O que eu espero, caso ele seja reeleito,
é o recrudescimento de sua agenda conservadora nas instituições
norte-americanas, o que inclui a Suprema Corte. Também não duvido do aumento do
tensionamento dos embates raciais nos EUA e a estigmatização institucional da
população latina. Para fora do espaço doméstico, Trump dá fôlego para governos
e movimentos de extrema-direita persistirem em suas agendas e discursos. No
caso de Biden ser eleito, o que não será surpresa, caso todos os indícios e
pesquisas se confirmem e na hipótese de não termos uma bala de prata até lá, o
governo norte-americano retoma uma agenda centrista e mais próxima daquilo que
achávamos que era, até 2016, um consenso mais ou menos compartilhado em termos
civilizatórios por parte importante tanto da direita quanto da esquerda democrática.
Consenso este que envolve ao menos a consciência das mudanças climáticas, o
discurso pró-ciência e pautado em evidências, políticas de reparação histórica,
etc. No âmbito doméstico, Biden promete retomar políticas sociais que nos
remetem ao que Obama tentou implementar. A conferir. O status quo
norte-americano tem alergia a medidas que enfrentem suas gritantes
desigualdades internas.
Roberto Dutra – Pode ser a eleição
presidencial norte-americana mais importante em décadas em relação a várias
dimensões da política global, como a política de combate ao aquecimento global
e as relações com a China e a Rússia. Mas não tenho muitas esperanças de que um
governo democrata seja menos agressivo à soberania de outros países que Trump.
Um aspecto muito lembrado é o efeito negativo que uma vitória de Biden teria
sobre governos de extrema-direita como o de Bolsonaro. Mas a grande
contribuição que um novo governo democrata poderia trazer para os destinos
globais seria romper com o neoliberalismo humanizado de Clinton e Obama e
construir um projeto nacional capaz de atender as demandas e frustrações
sociais que alimentam o trumpismo. Uma eventual reeleição de Trump poderia ser
uma chance de fortalecer a extrema-direita global, mas as condições nacionais
de cada país são sempre mais importantes.
Opiniões – Por conta da Covid, cerca de 1/4 do
eleitorado dos EUA já votou pelos correios. Trump tem denunciado “fraude” por
isso. Como o voto pelos correios deve ser computado depois do presencial, opção
preferencial dos eleitores do presidente, há o receio que se este sair na
frente nos swing states (estados decisivos), a apuração seja interrompida sob
alegação de irregularidade. O que poderia levar a questão à Suprema Corte, de
maioria conservadora. O que esperar? E por quê?
Arthur – Em certa medida, isso já
aconteceu em 2000, com a vitória controversa de George W. Bush sobre Al Gore. A
decisão final coube à Suprema Corte. O caso de Trump parece mais premeditado.
Ele não admite perder em nada, muito menos a votação para a reeleição. Nesse
sentido, ele chama de fraude a eleição pelos correios, quando, nos Estados
Unidos, o voto pelos correios é perfeitamente legal e seguro. O diretor dos
correios é amigo de Trump. Pode haver atraso na entrega dos votos. Ela já
aparelhou a Suprema Corte, indicando uma ministra conservadora da mesma linha
dele. Enfim, tudo indica que Trump está com muito medo de perder e está fazendo
de tudo para que isto não aconteça. Se acontecer, ele não deve reconhecer a
derrota, nem cumprimentar o vencedor.
George – O insuspeito senador
republicano Ted Cruz já falou até mesmo em um “banho de sangue” nas eleições em
novembro ao comparar a conjuntura com os perturbadores e disruptivos momentos
da época de Watergate. Exagerado ou não, o senador Cruz nos transmite um pouco
da temperatura do processo de sucessão eleitoral nos EUA. A grande questão é
que processos lentos de apuração podem jogar querosene na fogueira da opinião
pública nativa, esta última já devidamente intoxicada por fake news, paranoias,
teorias da conspiração e afins há anos. É este repertório que ajudou a eleger
Trump. Há alguns analistas que falam em “bananização” das eleições
norte-americanas, ou seja, o questionamento invariavelmente fraudulento por
parte dos perdedores não só do resultado. O que se questiona na “bananização” é
a legitimidade, a solidez do processo em si. Este conjunto de elementos pode
trazer tumulto até termos o resultado final e seguro de apuração e uma parte do
eleitorado simplesmente adotar uma atitude “insurgente” digamos assim, um
eleitorado arredio a aceitar o resultado final. De forma ou de outra será mais
um dos muitos testes de estresse para as instituições dos EUA desses nossos
últimos tempos. Penso que uma onda conservadora na Suprema Corte tenha uma
tendência mais a desestimular pautas progressistas comportamentais. Mas, não
apostaria que a Suprema Corte vá aderir a algum tipo de delírio político nesta
altura do campeonato. A Corte, em minha perspectiva, tende mais ao papel de
bombeiro do que de Nero. Há um capital institucional gigantesco a ser
resguardado e, neste momento, uma aventura não me parece que será referendada
por esta instituição específica. O que não quer dizer que será a mesma postura
a ser exercida pelos eleitores de Trump.
Roberto – Espero a
irresponsabilidade conhecida do presidente. Toda sua prática e discurso apontam
nesta direção. E não me parece que seu partido consiga demovê-lo dessa
investida contra o procedimento eleitoral. Torço para que não haja nenhuma
ruptura institucional, mas, ao contrário do que muitos acham, a democracia
americana é precária. Por isso não descarto que um ataque do trumpismo ao
processo eleitoral, já cheio de problemas oriundos de suas regras, possa
acelerar a crise da democracia no EUA. A democracia não é propriedade
intrínseca de nenhum país. Quando suas condições sociais e políticas são
diluídas, ela pode se apequenar ou se desconstituir em qualquer lugar. Entre as
condições sociais, se destaca a crise das formas de inclusão social, como vemos
resultar do colapso do fordismo, que sustentaram a democracia ocidental nas
décadas finais do século XX. Entre as condições políticas o fator mais
importante é a própria falta de adesão aos procedimentos eleitorais e
comunicativos da democracia. A possível judicialização da apuração enfraquece a
adesão ao procedimento democrático.
Opiniões – Nos EUA, o voto é facultativo. Em
2016, 90 milhões de eleitores não votaram, o que pode ter gerado o resultado
oposto às pesquisas que apontavam a vitória de Hillary Clinton. Ela teve quase
3 milhões de votos a mais que Trump, mas perdeu no sistema do colégio
eleitoral. Além dos institutos de pesquisa terem aprimorado suas metodologias,
os votos pelos correios e antecipados indicam presença maciça do eleitor em
2020. Isso pode ajudar Biden? Por quê?
Arthur – Caso Trump espere a
contagem final dos votos sem alarde, creio que essa votação maciça ajude Biden.
Em 2016, quase cem milhões não votaram, na minha leitura, por não simpatizarem
com Trump, nem com Hilary. Não importa se esta foi injustiçada, mesmo tendo 3
milhões a mais de votos que Trump. O que conta é o colégio eleitoral. Mas agora
acredito que a mobilização está sendo maior porque a população enfrentou quatro
anos de um presidente errático. O Trump de hoje não é o Trump de ontem. Agora,
ele foi testado no governo. Isso conta e muito. Daí acredito que essa
mobilização representa a rejeição de Trump mais que um apoio a Biden.
George – Em minha ótica o que
pode atrapalhar Biden é uma bala de prata. É importante olharmos pelo
retrovisor e revisitarmos o embate Hillary Clinton versus Donald Trump. Poucas
semanas antes das eleições, para além de uma propaganda negativa, misógina e
agressiva contra Hillary, houve a alta exploração do mau uso por Clinton de seu
servidor de e-mail. Ao utilizar um servidor privado para enviar comunicações de
interesse de Estado, Hillary Clinton foi pega por parte da opinião pública como
Judas. Em uma nação com interesses declaradamente imperiais e absolutamente
neurótica com os riscos de informações sigilosas “caírem em mãos erradas”,
Hillary se tornou o alvo, a inimiga preferencial na imaginação da opinião
pública. Hillary, como sabemos, contava com uma vantagem até mais expressiva do
que a de Biden neste ano de 2020. O que virá? Não sabemos. Mas, por enquanto
somente um escândalo de última hora aparentemente pode permitir uma virada
importante de Trump em estados importantes na disputa.
Roberto – A abstenção eleitoral em
2016 foi maior entre os eleitores democratas. Se isso se reverter este ano as
chances de vitória de Biden aumentam consideravelmente. Mas o eleitorado
democrata parece estar mais mobilizado contra Trump do que propriamente a favor
de Biden.
Opiniões – No final do último debate
presidencial, em 22 de outubro, Biden disse que queria marcar seu governo pela
transição dos EUA da matriz energética do petróleo para alternativas limpas,
como a eólica e a solar. Como ninguém imagina que um ambientalista vá votar em
Trump, mas moderados podem temer as consequências econômicas da mudança da
matriz energética, não era uma promessa a ser evitada pelo favorito nas
pesquisas, a 10 dias da urna?
Arthur – Claro. Biden podia muito
bem que dizer que vai continuar com a matriz energética e desenvolver fontes
alternativas de geração de energia. Isto não seria mentira. Seria apenas não
fazer uma declaração bombástica que lhe pode ser prejudicial. Sabemos muito bem
que a consciência ambiental aumentou nos países em que o capitalismo está mais
avançado, mas ela ainda não tem força para eleger um presidente. Seria bem
melhor para ele não ter feito esta declaração, que permitiu a Trump
aproveitá-la em seu favor. Bastava dizer que voltaria ao Acordo de Paris e a
declaração desastrada já estaria implícita.
George – Biden falava para seu
eleitorado. É muito importante que tenhamos clareza do seguinte: o discurso dos
candidatos nos EUA é um diálogo bastante direto com seus apoiadores e
financiadores. É uma forma de “fidelizar” este eleitor e financiador privado
oferecendo uma agenda e dizendo o que ele gostaria de ouvir. Os eleitores
pragmáticos farão seus cálculos de escolha eleitoral pesando prós e contras
entre ambos os candidatos. Contudo, como venho frisando, caso surja um eventual
escândalo envolvendo Biden a ser repisado diariamente na mídia norte-americana
é algo dotado de potencial mais destrutivo do que a promessa envolvendo as
alternativas de energia limpa que precisarão de uma enorme complexidade de
negociação para decantarem na realidade.
Roberto – O establishment
democrata, do qual Biden é parte visceral, parece ter muitas dificuldades de
oferecer um discurso e um programa para a demanda popular de oportunidades e
prosperidade econômica que constitui o sonho americano. As políticas sobre a
mudança climática são fundamentais, mas elas só terão viabilidade política se
vierem sustentadas na recuperação do dinamismo econômico dos EUA, único caminho
capaz de arrefecer sustentadamente o sentimento de frustração de amplas camadas
médias e populares com os destinos do país. Propor mudar a matriz energética,
quando não se tem um caminho crível de reconstrução econômica, pode realmente
ser uma decisão muito arriscada.
Opiniões – Trump já disse que, se reeleito,
irá mudar o comando do FBI, da CIA e do Pentágono. Após Franklin Delano
Roosevelt, presidente de 1933 até morrer em 1945, os EUA passaram a permitir
apenas uma reeleição presidencial. E aqueles que a conquistaram tiveram o
segundo mandato mais “ideológico”, sem precisar mais se preocupar com as urnas,
como foi com Barack Obama. Quais seriam os limites de Trump em um eventual
segundo mandato?
Arthur – Sempre existem
instituições que podem estabelecer limites, mas, sem dúvida, Trump estaria mais
confortável sabendo que não poderá mais ser eleito. Isso confere a ele mais
liberdade. Os eleitores de Biden que se danem. Ele nunca foi o presidente de
todos, como costumam proclamar os presidentes eleitos. Trump nunca desejou paz
para unir o país. Com a reeleição de Trump, só se pode esperar a radicalização
da sua linha ideológica caótica, mas, ao mesmo tempo, reacionária. E não apenas
para os Estados Unidos. Sua possível reeleição teria repercussão internacional.
George – Eis uma questão sem
dúvida que causa arrepios a analistas políticos comprometidos com a democracia
lá ou em qualquer outro ponto do globo. Governos que ganham uma nova chance
devidamente referendados por seus eleitores tendem a arriscar mais, serem mais
ousados após reeleição. Isto vale para direita ou esquerda. Portanto, teremos
menos limites. No caso de um governo de extrema-direita, pois assim situo a
gestão Trump, a agenda é regressiva em conquistas sociais que gradativamente
lutam para se implementar naquele país desde os movimentos pelos direitos civis
que datam da década de 1960 para cá. Nunca é insuficiente lembrarmos que os EUA
mantiveram práticas institucionais formais segregacionistas e racistas até
ontem em termos históricos… E assim prosseguem de maneira não declarada na
contemporaneidade, vide a reação coletiva que é o movimento Black Lives Matter
(“Vidas Negras Importam”). Também podemos esperar a agressiva normalização da
precarização das relações de trabalho. Altos índices de emprego, mas,
majoritariamente McJobs, sem proteção social, garantias, baixo prestígio, etc,
etc, etc.Todavia, ao seu eleitorado, há a promessa da manutenção de
valores tradicionais, a reação às políticas de ação afirmativa, a redução dos
impostos que agradam parte importante de Wall Street… Eis o outro ponto que sem
dúvida em nada enfrenta os problemas do mais desigual dos países ricos.
Roberto – Não me parece que Obama
tenha feito um segundo mandato mais ideológico. Pelo menos não o foi na
dimensão da política econômica. No caso de Trump, os limites podem ser
estabelecidos pelo Congresso. Acredito que o maior risco que ele representa à
democracia é sua possível recusa em reconhecer uma eventual derrota. Em termos
de agenda, Trump não tem programa para tornar a “América grande novamente”. Ele
não entende que é impossível reconstruir a economia dos EUA refundando o modelo
fordista que garantiu bem estar social e inclusão econômica no passado. Por
isso, o ganho de liberdade de um segundo mandato pode não ser um recurso tão
interessante assim pra ele. Ele sobrevive de identificar inimigos. Na falta de
alternativas do que fazer, de como governar e entregar resultados econômicos e
sociais, talvez aprofunde a guerra cultural contra o China.
* Publicado originalmente no blog Opiniões dirigido pelo jornalista Aluysio Abreu Barbosa. Link do post original da entrevista: http://opinioes.folha1.com.br/2020/11/01/o-que-esperar-da-vitoria-de-biden-ou-trump-na-eleicao-presidencial-dos-eua/, acesso em 02 de nov. 2020.
** Disponível em: https://www.latimes.com/politics/story/2020-10-28/biden-trump-bloomberg-television-advertising-battleground-states, acesso em 02 de nov. 2020.
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