domingo, 28 de fevereiro de 2021

Um salve ao nosso colaborador made in SP!

Os mais atentos devem ter notado. Mas, a quem não é tão ligado assim, passo para colocar em destaque as boas novas.  Afinal, estamos ansiando por notícias boas como quem busca água sob o sol implacável no deserto de nossa conjuntura.

O professor Jefferson Nascimento já havia aparecido no blog em outras ocasiões (aqui e aqui). E desde hoje publica como nosso colaborador regular. Sim, temos mais um autopoiético!


Jefferson é professor no Instituto Federal de São Paulo, campus Sertãozinho. Também faz seu doutorado na UFSCar na área de Ciência Política. Colabora em outros sítios como O Calçadão e A Terra é Redonda


Ainda o destemido publicou ano passado "Ellen Wood: o resgate da classe e a luta por democracia" pela editora Appris.


Jefferson é um observador arguto e engajado de nossa conjuntura. Um humanista avant la lettre. Sua presença aqui é um reforço de peso neste trabalho coletivo de buscarmos luz nas frestas que a conjuntura oferece.


Bem-vindo oficialmente companheiro! Que lhe seja boa a estadia conosco! A casa já era sua. Agora se tornou de vez!

 Na mercantilização da vida, as ilusões vendidas matam![1]

Jefferson Nascimento*

                                                                            **

         Há uma semana, o programa dominical Fantástico, da Rede Globo, anunciou o resultado da perícia descartando a falha mecânica no acidente que chocou o Brasil em 25 de novembro de 2020, no município de Taguaí-SP. Na ocasião do programa, a abordagem foi completamente focada na "falha humana", entrevistando pessoas para denunciar que o motorista dirigiu outras vezes em alta velocidade e que, antes, já havia tentado ultrapassagens perigosas. Como denunciado no texto abaixo, na abordagem da imprensa "[...] não há contexto, mas uma coleção de decisões individuais que se encontraram 'por acaso'." E isso não é exatamente fortuito, confira a íntegra do texto sobre o caso, publicado originalmente no site "A Terra é Redonda".

Costumamos dizer que acidentes acontecem: decisão errada, hora errada, falha humana ou mecânica ou fatores inexplicáveis. Quase sempre a abordagem é identificar se houve imprudência, falha humana, falha mecânica. Individualizar a culpa é o caminho mais profícuo para reproduzir nossa sociabilidade sem sobressaltos.

Individualizar a culpa é o outro lado da moeda do self made man. Não há sociedade. Há um coletivo de pessoas mediadas pelo mercado. Nessa coleção de indivíduos, é possível vencer pelo esforço ou capacidade individuais. Não há estrutura! O mercado, com sua mão invisível, é justo e premia os esforçados e competentes. Premia até aqueles que possuem uma “fé inteligente”. As injustiças são meros frutos de intervenções indesejadas nessa estrutura “perfeita”.

Não é preciso muito esforço para demonstrar histórica e estatisticamente tal absurdo. De modo similar, é possível afirmar que tragédias acontecem, mas contextos sociais favorecem mais ou menos a ocorrência. Decisões individuais podem ocorrer pela pressão para ampliar produtividade. Falhas mecânicas podem ocorrer mais em contextos em que há oportunidades de mercado para baratear a operação. Sem fiscalização, a concorrência dita o que permanece ou não. No entanto, para muitos, o cálculo possível é o preço. Ainda que haja “n” tergiversações teóricas de que, em dado período de tempo, permanecerão os melhores, há setores em que a ausência de fiscalização ceifa vidas antes que os consumidores percebam quem são os “melhores”.

Dia 25 de novembro de 2020 a pequena Itaí chora. O Brasil amanhece com a notícia da tragédia. Um ônibus e um caminhão se chocam na rodovia SP-249 no trecho Taquarituba-Taguaí. Foram 51 pessoas envolvidas. Ao fim do dia, eram 41 mortos. Exceto o motorista do caminhão, os mortos eram funcionários da Stattus Jeans Indústria e Comércio Eireli. O motorista do ônibus, até o momento, se encontra em estado grave [a situação se referia à época da publicação original, o motorista sobreviveu, prestou depoimento e concedeu entrevistas recentemente].

A imprensa superficializa ao reduzir sua “denúncia” em três pontos: (a) Geison Machado, motorista do caminhão, não poderia dirigir aquele caminhão por não possuir habilitação categoria “D”; (b) a empresa do ônibus que levava os funcionários para a Sttatus Jeans, em Taguaí, estava irregular desde o fim de 2019; (c) é provável uma falha humana, pois investiga-se uma ultrapassagem proibida do motorista do ônibus. Como na lógica da meritocracia, da “fé inteligente”, do self made man, não há contexto, mas uma coleção de decisões individuais que se encontraram “por acaso”.

Não é bem assim. O advogado da Stattus Jeans, Emerson Fernandes, confirmou ao UOL que o ônibus era uma “espécie de ‘lotação’ contratada pelos próprios funcionários sem ligação direta com a Stattus Jeans”. Tal situação não decorre ao acaso. Antes da Reforma Trabalhista de 2017, as empresas tinham maior responsabilidade legal pelo trabalhador no trajeto para a empresa e tornava a questão do transporte mais séria. Quando não era possível o vale transporte para utilização do transporte público, era mais seguro para a empresa contratar o transporte. Dada sua responsabilidade, havia incentivos para verificar a regularidade da empresa contratada, exigir condições adequadas no veículo utilizado, planejar percurso e horário para garantir condições seguras e em conformidade com a legislação de trânsito. O artigo 21, IV da Lei 8.213/91 incluiu como acidente de trabalho aquele acidente ocorrido "no percurso da residência para o local de trabalho ou deste para aquela, qualquer que seja o meio de locomoção, inclusive veículo de propriedade do segurado". A regra geral era considerar o acidente no trajeto como acidente trabalhista para benefícios previdenciários e estabilidade após o acidente, incluindo a obrigação legal de emitir a Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT) enviada para a Previdência Social. A responsabilização civil (danos materiais e morais) da empresa não era automática, mas poderia ser alvo de ação judicial.

Ocorre que a Reforma Trabalhista de 2017 alterou o §2.° do artigo 58 da CLT: “O tempo despendido pelo empregado desde a sua residência até a efetiva ocupação do posto de trabalho e para seu retorno, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive o fornecido pelo empregador não será computado na jornada de trabalho, por não ser tempo à disposição do empregador” (Lei 13.467, de 2017). Sem invalidar completamente o dispositivo mencionado da lei 8.213/91, a reforma trabalhista mudou e tornou polêmico o entendimento da questão. Ao não considerar jornada laboral, há brechas para que as empresas se eximam de toda e qualquer responsabilidade, inclusive deixa de ser obrigatório o preenchimento da CAT. Para conseguir judicialmente algo após o acidente, o trabalhador precisa provar que houve alguma violação ou negligência por parte da empresa. É possível algum ganho em processo judicial, mas cabe ao trabalhador o ônus da prova. Deste modo, sem o fornecimento do transporte pela empresa fica mais difícil provar a violação ou negligência do empregador.

Para piorar, a fim de dirimir essa e outras polêmicas, o governo Bolsonaro/Guedes promulgou a MP 905/19, chamada de Contrato Verde e Amarelo. Por essa MP, sequer os direitos previdenciários (benefícios e estabilidade) não poderiam mais ser requeridos pelo trabalhador um acidente no trajeto, sustando, dentre outras medidas, o artigo 21, inciso IV da Lei 8.213/91.

Vale de transporte em dia, cada trabalhador que se vire para chegar. Coletivamente, por questões práticas e econômicas, muitos trabalhadores se juntam para fretar ônibus e vans para chegar a empresas onde o transporte público não alcança de modo eficiente. Não há muita condição objetiva desses trabalhadores exigirem empresa regularizada, verificar as manutenções preventivas do veículo. No caso em tela, falamos de trabalhadores no contexto de Taguaí, cujo piso salarial de um costureiro de confecção é R$ 1.071,48, a média é R$ 1.173,98 e o teto salarial é R$ 1.774,16, um revisor têxtil recebe um salário médio de R$ 1.138,00. Pronto: a maior parte das pessoas envolvidas no acidente estava naquele local e hora trágica em um transporte irregular e precário por reação a uma redução de direitos trabalhistas.

“Ah! Mas, poderia ocorrer em um ônibus regular fornecido pela empresa!”. Poderia, mas não foi o que ocorreu. O contexto do caso está eivado de irregularidades que favoreceram a ocorrência da tragédia. E, para a Stattus, há dois problemas: (1) a MP905 foi revogada na Câmara, não foi analisada no Senado e caducou em 20 de abril deste ano; (2) a Star Fretamento e Locação Eireli EPP afirma ter sido contratada pela Stattus, não pelos trabalhadores. Não sabemos quando foram contratados os trabalhadores naquele ônibus, mas todo trabalhador contratado entre 1 de janeiro e 20 de abril, não tem sequer a cobertura previdenciária garantida, seguindo o regime da MP. Os familiares dos demais (caso contratados em outro período) poderão enfrentar um longo processo jurídico para tentar responsabilizar, ainda que indireta ou solidariamente, a empresa. Também não sabemos se a Stattus contratou ou não, se intermediou ou apenas tenta dificultar a caracterização da “violação e/ou negligência”.

Vivemos um processo em que, conforme nossa economia se desindustrializa e reduz postos formais de trabalhos, o apelo para “empreender”, “vencer por si mesmo”, “não depender de patrão” aumenta. Como se fosse possível uma sociedade com economia pujante composta majoritária ou totalmente por “empresários de si mesmos”. O discurso individualista e a palavra “empreendedorismo” encantam e se banalizam. Empreendedor, de modo atraente, passou a designar no imaginário social todo e qualquer indivíduo com um “negócio próprio”. Mesmo que esse negócio seja fruto da necessidade mais básica, não resolva um problema da sociedade, não inove, sature e desvalorize atividades ou setores profissionais inteiros. Inclusive, há um termo para todos que precisam se virar para comer: “empreendedorismo por necessidade”.

“O futuro será dos empreendedores!” Daqueles que se esforçam e buscam caminhos para vencer por si mesmo. O futuro era de Geison Machado que contava no final de semana seus planos para a esposa. O futuro do jovem de 22 anos foi interrompido entre Taguaí e Taquarituba. Geison não voltou ao Paraná com novos planos e na mídia, além de vítima de uma suposta ultrapassagem ilegal e imprudente do ônibus, foi tratado como o motorista irregular sem a carteira habilitação categoria “D”. O mesmo complexo empresarial de comunicação que vende ilusões de vencer na vida sem depender de nada e ninguém, como se recursos brotassem magicamente, não reconheceu que Geison seguia essas ilusões vendidas nem na hora de sua morte. Ele poderá descansar em paz, não sem antes ser exposto por sonhar.

Por outro lado, o motorista do ônibus, em estado grave, luta para sobreviver. Se felizmente conseguir, tentará provar sua inocência. Não haverá clemência pelo contexto de sua decisão. A pergunta agora é apenas essa: ele ultrapassou em lugar irregular? Houve falha mecânica? Por que ele dirigia um veículo irregular?

Não se pergunta porque em um contexto de precarização do trabalho surgem diversas modalidades, em número abundante, de transportes “alternativos”. Transportes movimentam a economia reduzindo custos: que nos diga a Stattus Jeans! Fenômenos como esse só ganham atenção da mídia na tragédia ou no denuncismo superficial e oportunista. Não importa se a pressa do motorista era pela pressão de fazer não sei quantos trajetos para sobreviver em tempos de crise. Não importa saber porque a empresa, regular até outubro de 2019, não voltou a se regularizar, porque tinha inscrição na ARTESP e não na ANTT, porque fazia um trajeto sem autorização dos órgãos competentes. Não interessa o contexto econômico que conduziu a empresa e o motorista àquela curva, interessa apenas identificar a responsabilidade individual. Identificada, o motorista e/ou a Eireli de transporte serão tratados como únicos responsáveis por toda a tragédia sem considerar o quanto essa pressão por empreender sempre, independente das condições materiais, produz desgraças.

É claro: a questão não é eximir pessoas de responsabilidades individuais. Mas, compreender como tais responsabilidades são provenientes de uma estrutura social. Apontar indivíduos sem discutir questões contextuais apenas fomenta o desejo de vingança, travestido de apelo à justiça. Porém, só existe justiça numa perspectiva societal. Justiça preconiza um estado ideal de sociabilidade. Nos tribunais inquisitoriais aos trabalhadores e aos pequenos “empreendedores”, cúmplices da negligência do Estado e benevolentes ao grande capital não há bem comum.  

Quantos jovens trabalhavam temporariamente na Stattus Jeans? Quantos jovens que, pelas condições materiais, usaram a flexibilidade do ensino remoto nas escolas ou faculdades para “ajudar nas contas da casa” e “ganhar algum para empreender”. Afinal, não se diz que o vencedor trabalha enquanto os outros sonham?

O resultado, todos sabemos: só neste caso, 41 vidas não sonham, não agem e nem poderão “empreender” mais. As causas individuais serão exaustivamente repetidas. As questões estruturais que os levaram àquela curva, não poderão ser discutidas na imprensa. Num cenário de baixa complexidade econômica, agem para introjetar em nós o desejo de empreender independente de nossa situação de classe, da escassez de recursos, ainda que o nosso corpo seja o preço a pagar para a “roda da economia girar”. Algum cordeiro sempre tem que ser imolado para reavivar a fé no extraordinário!


* Doutorando em Ciência Política - UFSCar, membro do NEPPLA - Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos e autor do livro "Ellen Wood - o Resgaste da Classe e a luta pela Democracia".

** Imagem disponível em: https://veja.abril.com.br/brasil/colisao-entre-caminhao-e-onibus-deixa-ao-menos-40-mortos-em-sp/, acesso em 28 fev. 2021.

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[1] Texto publicado originalmente em 01 dez. 2020 no site "A Terra É Redonda". Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/na-mercantilizacao-da-vida/, acesso em 28 fev. 2021. 


domingo, 21 de fevereiro de 2021

Débora volta às aulas*

 

Na noite da última quinta-feira, o site do Jornal Folha da Manhã noticiou a retomada das aulas presenciais em Campos dos Goytacazes. O secretário de Educação, Ciência e Tecnologia, Marcelo Feres, anunciou a retomada das aulas, em regime híbrido, “de 30% dos alunos em, no mínimo, 10% das escolas de educação infantil das redes municipal e privada a partir de 8 de março”. A proposta sugere ainda o retorno “presencial de 50% dos estudantes no final de março e o restante do alunado em abril”. O Sindicato dos Profissionais da Educação foi peremptoriamente contra a retomada e também foi peremptoriamente desconsiderado na tomada da decisão, afinal, “o município estaria embasado no aval da Secretaria Municipal de Saúde”.

Achei tudo muito interessante, sobretudo porque li essas notícias pouco depois de conversar com uma amiga sobre a retomada das atividades escolares. Na Antropologia valorizamos muito as histórias, pois é através delas que os eventos e fenômenos são registrados, transmitidos e interpretados. Como diria Wilhelm Schapp, estamos sempre envolvidos em histórias. E a história de Débora pode nos ajudar a pensar o retorno do ensino presencial. Ela é professora do ensino fundamental, em uma escola particular de classe média de uma cidade onde as escolas já estão funcionando em regime híbrido. Débora tem pouco mais de 30 anos e, como muita gente, sofreu de diferentes maneiras com os efeitos da pandemia. No carnaval, ela não buscou as aglomerações, mas acabou por marcar um encontro com sua amiga Daniele. Elas não se viam há tempos e aquele encontro era importante para que elas renovassem as energias. Elas iniciaram a cerimonia buscando preservar os “protocolos de segurança”, mas esses foram sendo paulatinamente abandonados à medida em que os copos de cerveja eram esvaziados. Ao final do sábado de carnaval, as duas já estavam dançando abraçadas no êxtase do reencontro.

Quis o destino que, poucos dias após aquele encontro, Daniele tropeçasse em uma calçada, lesionando o tornozelo. Ela procurou auxílio médico e ouviu que precisaria de uma cirurgia. De acordo com os protocolos hospitalares atuais, para a internação, Daniele precisou realizar exames para detectar se estava contaminada pelo coronavírus. O resultado foi positivo. Assintomática, Daniele telefonou para Débora para contar a história. Débora, por sua vez, achou de bom tom informar à Direção de sua escola que teve contato com pessoa que testou positivo para covid-19. A Diretora disse que não liberaria Débora das atividades presenciais se ela não apresentasse um exame com resultado positivo – e não disponibilizou o exame à professora. Débora, que não tem plano de saúde e não estava preparada para investir recursos próprios para custear o exame, retornará para o cuidado dos pequenos na próxima segunda, “seguindo todos os protocolos de segurança sanitária”.

É claro que é apenas uma história e que não podemos generalizar, não é mesmo? No entanto, quando pensamos no que foi narrado e na situação das escolas de Campos, muitas perguntas surgem. O retorno das atividades presenciais se dá em função do controle da pandemia ou de uma certa pressão das escolas particulares para reduzir suas perdas econômicas? Será que a Secretaria de Saúde possui legitimidade para impor sua opinião aos profissionais da Educação que conhecem o cotidiano e os bastidores das escolas da cidade? As condições arquitetônicas das escolas, sejam elas públicas ou particulares, garantem uma boa circulação do ar? Aqui vale destacar que parte substantiva das escolas de Campos funciona em casas que foram adaptadas para transformar quartos de dormir em salas de aula. Também me pergunto: como se dará a testagem dos atores envolvidos? Teremos testes para professores, estudantes e funcionários? Diária, semanal, mensal ou “nuncamente”? O que acontecerá quando um aluno tossir no fundo da sala? E se o porteiro testar positivo? Partiremos para o “novo normal” com a mesma estrutura do velho anormal, com aquele sistema de transporte baseado em vans, com as escolas sucateadas e com a segurança trazida pelos 10 leitos que a Prefeitura de Duque de Caxias nos emprestou?

É claro que o anúncio da retomada das atividades presenciais pode ter sido apenas um gesto para acalmar os ânimos de quem deseja/precisa que as aulas voltem ao normal; ou não. Muita água ainda vai passar debaixo das pontes do Rio Paraíba do Sul. Todavia, fica a impressão de que as decisões estão sendo tomadas por algo que difere da análise sistemática do contexto sanitário que vivemos. Destarte, “no ar que se respira, nos gestos mais banais”, as necessidades econômicas fazem seu trottoir.

 

 

Carlos Valpassos

Antropólogo – Universidade Federal Fluminense.

 

* Publicado originalmente em 19 de Fevereiro de 2021 em http://www.folha1.com.br/artigos/2021/02/1270100-carlos-valpassos-debora-volta-as-aulas.html 

O servidor público não é seu inimigo


O servidor público não é seu inimigo

 

Paulo Sérgio Ribeiro & Renata Saul*

 

Vivemos em tempos de pandemia da Covid-19, acumulando perdas materiais (muitos perderam parte do salário; outros tantos, emprego), afetivas (quantas pessoas não pranteiam familiares, amigos?) e, por vezes, temos perdido a força para retomar uma postura cidadã diante dos absurdos que assolam nosso país desde a pandemia, que não é um problema exclusivo do Brasil, vide sua escala mundial.

 

Tivemos toda sorte - ou azar, pelo infeliz trocadilho - de descrédito sobre a gravidade da pandemia, a contar o volume de desinformações chancelado por autoridades públicas e formadores de opinião que, na mídia corporativa, mantêm-se auxiliares do negacionismo cientítico. No Brasil de Bolsonaro, a ciência e o conhecimento têm sido alvo de ataques e, a despeito do posicionamento de autoridades na comunidade científica - biólogos, infectologistas, cientistas sociais etc. -, nossos governantes (com honrosas exceções) resolveram subestimar a crise sanitária e isto nos custou e tem custado muito.

 

Efetivamente, não temos um plano nacional e tampouco articulação dos entes federativos – com exceção do consórcio experimentado na região Nordeste[1] - para atravessar esta conjuntura com a necessária racionalidade.

 

Não há plano para a imunização em massa, não há plano para a retomada econômica nem ações e programas consequentes no âmbito da justiça redistributiva para as categorias profissionais essenciais e/ou grupos vulneráveis durante e após a pandemia.

 

Confessamos que, a princípio, o título deste texto seria “O professor não é seu inimigo”, uma vez que a co-autora é docente, focalizando a situação dos(as) professores(as), sejam das escolas particulares ou públicas, posto serem eles(as) sujeitos(as) à críticas, quase sempre desconexas da realidade intramuros das escolas brasileiras, por estarem trabalhando em casa, com acesso à Internet ou através do envio de material didático, tal como ocorre na maioria das escolas públicas.

 

Contudo, seria omisso de nossa parte desconsiderar que somos servidores públicos de esferas de governo distintas – a co-autora, servidora pública municipal; o co-autor, servidor público federal – e, por conseguinte, que o trabalho remoto desempenhado por ambos responde a desafios próprios à sua circunstância. Se o assim o é, o que nos aproxima na tempestade que turva a visão de uma margem segura para as nossas desiguais embarcações?  

 

Talvez, o que nos vincule seja um esforço de Sísifo[2] para navegar contra a ideologia neoliberal que cimenta uma perspectiva do serviço público própria ao individualismo possessivo. Individualismo possessivo: tomar uma comunidade escolar como objeto exclusivo de sua fruição enquanto indivíduo que se quer desimpedido em sua ação no mundo, isto é, sem que os vínculos sociais daquela comunidade escolar com a realidade extramuros interfiram nos seus interesses imediatos e nas exigências caprichosas de sua idiossincrática personalidade.

 

O recorte de classe das “famílias” que exercem pressão pelo retorno às aulas presenciais chega a ser caricato. Algumas delas, que há não muito tempo se mostravam simpáticas ou até entusiastas do “home schooling”, agora clamam pela função social da educação escolar, a despeito dos evidentes riscos de reunir crianças e jovens em uma pandemia sem controle, alegando supostos prejuízos duradouros ao seu desenvolvimento humano.

 

Excelsa realização do nosso capitalismo periférico: reduzir a questão do desenvolvimento às afeições espontâneas de pais, mães e responsáveis cujo “tempo livre” – um recurso desigualmente distribuído entre as classes sociais – não pode ser violado, deixando em suspenso uma visão de sociedade na qual a proteção da infância e da juventude não seja tragada pelo “estado de natureza” desvelado pela pandemia: todos, impulsionados pelo seu desejo irrefreável, veem-se com direito a tudo, sem quaisquer garantias de que a vida alheia – a começar pela dos(as) professores(as) e demais educadores(as) - seja poupada nessa dinâmica fratricida.   


Questiona-se por que o retorno às aulas presenciais não se dá, se mesmo sem vacinação, os profissionais da saúde e os que estão em atividades de apoio trabalharam sem vacina. Os policiais trabalham, ainda que sem vacina. O comércio funciona, ainda que sem vacina e por aí vai. Toda sorte de insultos, principalmente voltados ao(à) professor(a) da escola pública, é proferida. Mas quando evocaram o argumento de tantos outros servidores permanecerem trabalhando desde o inicio da pandemia e sem nem ao menos um cronograma de vacinação, começamos a atentar para outra perspectiva: como a lógica da exclusão (e não do exercício da cidadania plena e do Estado de bem estar social) se alojou entre nós. Não lutamos pela ampliação de direitos, mas por retirá-los das categorias profissionais que conquistaram, parcialmente, um mínimo de dignidade. Não se trata de privilégios, mas sim de reivindicar condições de segurança para o exercício de sua função pública.

 

Quando pensamos no risco que seria para a co-autora que vos escreve e para todos que a cercam estarem em uma escola não imunizada e alguém trouxe a questão de que os policiais continuam trabalhando e não imunizados também, o primeiro pensamento que nos ocorreu é o de quão cruel é a situação daquele servidor público.

 

O Governo Bolsonaro, na medida em que já tinha sido anunciada a existência de um conjunto de vacinas em fase final de testagem, deveria ter elaborado o plano de vacinação de toda população, mas, ao invés disso, vimos o presidente e demais autoridades públicas se valerem do negacionismo científico, da xenofobia contra os chineses e de bravatas calhordas contra a população. Chamamos de heróis nossos profissionais da saúde, mas não confirmamos uma inflexão no investimento alocado no Sistema Único de Saúde (SUS). Dissemos que os policiais estão em risco, mas não ponderamos a vacinação destes em nossas preocupações diárias. Comparamos shoppings lotados a escolas, mas não aceitamos o fechamento do comércio, porque a economia irá “ruir” e, por tabela, não admitimos que ações sociais (Bolsa Família, auxílio emergencial) desconcentrem renda e poupem vidas.

 

E, doravante, com frases de efeito vazias, sem fundamento crítico algum, vemos o Estado ser dilapidado porque estamos com raiva das categorias que compõem o “chão de fábrica” do serviço público, mas não percebemos o quanto de cidadania nos é privada a cada dia com a vigência da Emenda Constituição nº 95, que congela/sucateia investimentos públicos em educação, saúde, segurança e demais pastas que viabilizam a coesão social em um território no qual a nação perde substância ao converter-se num mero amontoado de gente.  

 

E daí, não é mesmo? A saúde mental do meu rebento e o estilo de vida que pais e mães de classe média nele projetam em primeiro lugar! Com assombro, assistimos à entronização do “indivíduo” na modernidade tardia, atomizado socialmente, incapaz, pois, de mediações mais realistas entre seus interesses ideais e as condições materiais dos cidadãos de cujos serviços prestados depende.

 

O deserto do real é aqui e agora e a nós, servidores(as) públicos(as), cabe suportar o peso do mundo esculpido com as ruínas do mundo pós-guerra e, não menos, quem reclama um Estado para chamar de seu desprovido de um senso de solidariedade genérica para com aqueles que habitam além do microcosmo de sua propriedade privada.


* Socióloga, Mestra em Cognição e Linguagem e Educadora.


[1] CONSÓRCIO NORDESTE. Ações de combate à pandemia. Disponível (aqui). Acesso em 21/02/2021.

[2] Sísifo: personagem da mitologia grega condenado a empurrar uma grande rocha para o topo de uma montanha e que, ao fazê-lo, testemunhava a inutilidade do seu esforço com a rocha descendo morro abaixo, levando a empurrá-la novamente em um ciclo sem fim.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Bom governo na Planície? Sobre o início de governo municipal em Campos dos Goytacazes

 

Bom governo na Planície? Sobre o início de governo municipal em Campos dos Goytacazes

George Gomes Coutinho


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O governo Wladimir Garotinho se depara com importantes desafios. Nenhum deles é simplório. Exigirá capacidade, esperteza, inteligência política e compreender profundamente a natureza do que se apresenta em seus meandros.


É um pacote de desafios para jogadores de xadrez. A lógica do jogador de damas não sustenta o jogo.


Sem alguma sofisticação o governante contará apenas com a sorte se esta lhe sorrir. O problema é que a deusa Fortuna é cega e não é capaz de discernir tão bem a quem premia. Invariavelmente ela, a Fortuna, não premia necessariamente aqueles que se julgam bons. É preciso de alguma maneira conquista-la, seduzir a deusa, atraí-la.


 O jogador de damas, neste caso, será engolido por uma conjuntura que exige desenvoltura e maturidade. E soluções simplórias para problemas complexos costumam ser não mais que um eventual entretenimento de baixa qualidade para os iludidos.


De todo modo desilusões e ressentimentos produzem consequências. Já vimos que governos mal sucedidos e mal avaliados podem contar com resposta contundente do eleitor local.


Vou a alguns pontos. Não pretendo esgotá-los. Apenas irei elencar algumas questões que me ocorrem.


1 – O cenário de pandemia e pós-pandemia: 2021 não é o mesmo que 2020 em uma série de aspectos. Pode-se esperar uma maior demanda no âmbito de políticas de saúde e pressões diversas motivadas pela deterioração da vida socioeconômica da cidade em decorrência das necessárias medidas recomendadas pela OMS (onde parte da população e do empresariado local sequer aderiu propriamente) para evitar o colapso da rede de atendimento. Sem dúvida uma avalanche de demandas, até mesmo por políticas sociais e assistenciais, ocorrerá no Brasil todo. Mas, serão os governos municipais que sentem e sentirão de maneira próxima, literalmente na carne, esta pressão de demanda neste ano e nos próximos. E não, não é possível vislumbrar qualquer delírio de recuperação com curva em “V” ou algo que o valha;


 2 - A questão fiscal/orçamentária: a postura do governo Rafael Diniz foi a de adesão subserviente à lógica austericida. Reforço que sem dúvida não há como ignorar a concretude do problema fiscal, que asfixia o orçamento de estados e municípios. Todavia caberá a Wladimir e seu staff buscar vias de inovação e mecanismos que permitam contornar e superar, sem ignorar a concretude do problema orçamentário, de maneira responsável, legal e criativa.  Assim o prefeito já tem esboçado com a busca por recursos financeiros vindos de outras fontes para além do município. Contudo, ele precisará também “olhar para o seu quintal”, lidar com questões tributárias na própria cidade de maneira politicamente inteligente e mais eficiente que o governo anterior. Cabe lembrar que o cenário motivado pela pandemia acresce complexidade ao debate fiscal/orçamentário. Só vale, por enquanto, reforçar que o austericídio nos levará em alta velocidade para o abismo. Definitivamente não me parece uma boa opção;


3 – O problema da herança política e simbólica. Parte da narrativa de oposição na cidade coloca Wladimir como um mero continuador de práticas e cultura política da família Garotinho. A acusação, dada a relação ambivalente de admiração e ódio com o clã, pode gerar resistências sistemáticas apriori, dificultando no cotidiano o estabelecimento de um processo de legitimação que poderia energizar o seu mandato. Provavelmente parte deste desafio já se mostra comprometido pelo retorno de grupos e indivíduos em determinadas posições no governo que estavam em algum limbo político durante a gestão Diniz. A conferir;


4 - Campos continuando em suas persistências. Este ponto vai muito além de qualquer governante local. Campos é uma cidade que precisa se repensar em inúmeros aspectos enquanto coletividade. Podemos falar sobre cultura, como se lida com o espaço público, a maneira como nos relacionamos uns com os outros, o cuidado com patrimônio, questões de civilidade, urbanidade, etc.. Esse conjunto de questões intangíveis repele qualquer noção de bem-estar coletivo. Ao mesmo tempo as pequenas barbáries cotidianas criam um caldo que impede grandes avanços no curto prazo não só de cidadania. Uma coletividade brutalizada, desumanizada, também não necessariamente irá produzir maior desenvolvimento material. Campos precisa trabalhar por sua Aufhebung.


* Foto do acervo pessoal.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2021

Inércia, verborragia, nulidade e extermínio: um governo de traição nacional a pleno vapor

 

Inércia, verborragia, nulidade e extermínio: um governo de traição nacional a pleno vapor[1]

Jefferson Nascimento *


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Uma série de documentos comprovam a negligência do Ministério da Saúde e do Governo Federal na falta de oxigênio que provocou dezenas de mortes em Manaus. A volta da cobrança de impostos para importação de oxigênio; as reuniões de integrantes do Ministério da Saúde com autoridades de Manaus e do Estado do Amazonas, em 03 e 04 de janeiro; a notificação da White Martins no dia 07; as notificações feitas pela Força Nacional do SUS, entre 08 e 13 de janeiro; a reunião do dia 11 que teve participação de Pazuello, bem como a entrevista do prefeito de Manaus no mesmo dia. A despeito de argumentos sobre envio de recursos, é possível verificar pelo Portal da Transparência que o repasse de recursos federais seguiu a legislação ordinária (transferência constitucional, royalties, Bolsa Família, Auxílio Emergencial e BPC). Isto é, mesmo na situação de calamidade, não houve repasses extraordinários, tornando Manaus a segunda capital com menor repasse per capita de recursos federais. Some-se a isso, a cumplicidade advinda da relação de apoio mútuo entre os titulares do governo federal e Wilson Lima, o “governador preferido” do presidente, conforme divulgou o site “O Antagonista”.


Nesse cenário de negligência e abandono, o governo venezuelano anunciou o envio de oxigênio para Manaus. Em contrapartida, em entrevista, Jair Bolsonaro ironizou Nicolás Maduro e a Venezuela, zombou da situação econômica do país vizinho e sugeriu que Maduro adotasse um auxílio emergencial igual ao brasileiro. Quando seria razoável esperar reciprocidade, caso houvesse um mínimo de altivez. Maduro e Bolsonaro não são equivalentes com sinais trocados. Por aqui, apesar da verborragia de ver inimigos em todos os cantos, o governo tropeça apenas na própria incompetência e falta de quadros. O que seria do Brasil se enfrentasse um terço das sanções impostas à Venezuela? Negar a simetria não é o mesmo que defender incondicionalmente Maduro, que enfrenta críticas inclusive de alguns grupos chavistas e do Partido Comunista da Venezuela (PCV). Discutir a política venezuelana é tarefa complexa, que exige profunda pesquisa sobre o país e esse não é o objetivo do texto. Falemos do Brasil.  


O fato é que, apesar da solidariedade dos venezuelanos em enviar o oxigênio, a reação de Jair é a mesma de sempre: perversidade e infantilidade expressas numa verborragia que tenta desviar o olhar de sua inércia e nulidade que resultam em extermínio.

 

Parte I – A negligência, a transferência de culpa e o autodeclarado como projeção e estratégia.


Uma pergunta retórica vem à cabeça: o Governo Jair Bolsonaro não afirma que o presidente da Venezuela é Juan Guaidó? Por que Jair não aconselha Guaidó? Por que Jair não cobra qualquer prestação de contas das realizações do aliado autodeclarado? Mais: por que não auxilia o autodeclarado a reverter ao menos parte das sanções econômicas que torna a situação econômica venezuelana trágica?


Dia 23 de janeiro, fez um ano que o governo Bolsonaro entende que o governo venezuelano é presidido pelo autodeclarado Juan Guaidó, com direito ao reconhecimento de embaixadora. Daí a pergunta retórica!


No entanto, não é uma contradição: Jair e Guaidó são personagens completamente subservientes a Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos. Ambos, cumprem o papel de testas de ferro do projeto de traição nacional. Para além do caráter estratégico, Jair se identifica com Guaidó porque, ainda que ambos se apresentem como presidentes, nenhum deles governa efetivamente. Apesar de ser presidente de direito, Jair não é muito diferente de um Guaidó com mandato. O presidente de direito não se constitui presidente de fato, pois nada faz além de transferir culpa.


Jair cobra de Maduro o que ocorre na Venezuela, legitimando-o. (Com razão, Maduro é o presidente de fato, ainda que, por estratégia e projeção, o governo brasileiro questione). Por aqui Jair e seus asseclas transferem a responsabilidade de tudo o que ocorre em seu governo e no Brasil para o STF, para o Congresso, para o PT, para esquerda, para a torcida contra, para a imprensa, para todo o mais. Possui mandato, mas ele mesmo admite: "Não posso fazer nada", como não fez no Legislativo em 30 anos de mandatos. Jair e Guaidó identificam culpados, enquanto demonstram para quem quiser ver a incompetência e a inércia, o venezuelano por ser presidente de mentira, o brasileiro por ser uma mentira na presidência.

 

Parte II – A oposição da forma e a convergência no conteúdo: os neoliberais forjam alternativas


Para além da grande imprensa, Rodrigo Maia, a maioria do Congresso e muitos governadores, como João Doria, fazem uma oposição de forma. A forma a que se opõem é a atuação caricatural e a indiferença perversa de Jair. Mas, não só permanecem em silêncio, como apoiam o conteúdo da traição nacional expressa nas ações de Paulo "Posto Ipiranga" Guedes. O banqueiro encontrou meios para liquidar o patrimônio nacional driblando as atribuições do Congresso. São exemplos dessa privatização silenciosa: vender em partes (como a carteira do Banco do Brasil para o BTG Pactual abaixo do custo, refinarias, plataformas, subsidiárias da Petrobrás), inativar empresas estratégicas (como a CEITEC), e o projeto de fechamento de agências e a demissão em massa do BB para favorecer os grandes bancos.


Doria, o herói da ocasião, também se opõe à forma caricatural e ofensiva do presidente, mas, não só fecha os olhos para o “Saldão do Guedes”, como intenta realizar em São Paulo o seu próprio saldão, o qual incluiria o próprio Instituto Butantan, como anunciou em Davos. Não atoa, o governo Doria não existiria sem o “BolsoDoria” e sem o empenho dos bolsonaristas em elegê-lo "temendo o comunismo de Márcio França!" (Poderia ser piada, mas não é!).


É preciso parar de associar Jair a transtornos e doenças psiquiátricas. Ao fazer isso para justificar a incompetência e perversidade de Jair, o resultado é estigmatizar pessoas que realmente precisam de tratamento médico. A incompetência, a infantilidade e a perversidade de Jair é parte-integrante de um projeto de traição nacional. A caricatura, proposital ou não, revolta a maioria e engaja sua base de apoio enquanto o Posto Ipiranga liquida o patrimônio nacional. De vez em quando, o Posto Ipiranga aparece para dizer que a economia vai decolar, inventa que a recuperação "em forma do símbolo de raiz quadrada" é "uma recuperação em V". Mas, no geral, o caricato ganha a mídia, com o apoio do não menos inepto, Pazuello, enquanto o Posto Ipiranga realiza o saldão do patrimônio nacional, sem reação do Congresso. Maia se finge indignado com o caricato e fecha os olhos para o “Saldão do Guedes” tal como Doria.


Há uma crescente insatisfação ao governo Doria. A boa-vontade da grande imprensa deu a ele destaque como antítese ao negacionismo bolsonarista durante a pandemia, oferecendo a Doria local privilegiado para ser a oposição de Direita à Jair. A insatisfação crescente virou revolta entre os Bolsonaristas que, de base de apoio, posam como indignados com aquele que chamam de “O Almofadinha”. Doria seria o traidor. No entanto, Doria, Wilson Witzel, Carlos Moisés e Wilson Lima contaram com a onda bolsonarista para se eleger. Todos eles, são expressões de uma propaganda de renovação personalista para tocar o mesmo projeto neoliberal de sempre - ainda que Doria e Witzel sejam tratados oportunisticamente como estranhos no reino de Jair.


Doria se viabilizou pelo BolsoDoria. Ponto. A revolta dos servidores públicos estaduais (ativos, inativos, aposentados e pensionistas) com o “confisco salarial” provocado pelo aumento das alíquotas dos descontos previdenciários não pode ser tratado fora do contexto. O apoio de grupos pró-Jair às manifestações desses servidores não é mais do que cinismo. Tal confisco é resultado da REFORMA DA PREVIDÊNCIA (EC 103), apresentada pela equipe do Posto Ipiranga e publicamente apoiada por Jair e seus asseclas.


Como refratário da forma caricata e encantado pelo conteúdo entreguista, Doria apresentou projeto de Lei para adequar os servidores estaduais à Reforma da Previdência. Em pouco tempo, veremos o mesmo em várias prefeituras Brasil afora. Vários servidores municipais passarão por tais "confiscos". O erro era aceitar como normal que isso afetasse os trabalhadores celetistas (da CLT) e engolir acriticamente o discurso do privilégio dos servidores federais.


Em tempo, no último dia 14, por meio da Portaria SEPRT/ME n.° 636, o governo Bolsonaro reajustou em 5,45% a alíquota de desconto previdenciário dos servidores federais. Esse é o reajuste anual da alíquota que passou a ser progressiva com a Reforma da Previdência. Isso mesmo: a alíquota foi e será reajustada pelo INPC (inflação), mesmo não havendo atualização da remuneração desde 2015 – nem mesmo pela inflação. Para arrecadar mais, face ao congelamento dos salários dos servidores federais, a alíquota foi majorada. Se preparem, servidores estaduais e municipais o precedente está aberto! A reforma aprovada foi iniciativa do governo federal e pode ser regulamentada em cada estado e município. Doria executou o confisco autorizado pela EC103, a Reforma da Previdência. Ele não inovou em nada.


O herói do momento nada mais é que um habilidoso marqueteiro, que consegue se apresentar como alternativa, mesmo sendo alinhado à mesmíssima política neoliberal, hoje representada pelo “Posto Ipiranga”. Que nos diga os sucessivos ataques à USP, UNICAMP, UNESP, FAPESP e aos servidores. A diferença é na forma. O conteúdo é o mesmo.


 

*Doutorando em Ciência Política – UFSCar


Membro do NEPPLA – Núcleo de Estudos dos Partidos Políticos Latino-Americanos


** Imagem disponível em: https://exame.com/brasil/com-avanco-do-covid-19-manaus-comeca-a-enterrar-vitimas-em-vala-coletiva/. Acesso em 14 de fev. 2021.



[1] Publicado originalmente em 19 jan. 2021 no blog “O Calçadão”.  Disponível em: http://ocalcadao.blogspot.com/2021/01/inercia-verborragianulidade-e.html, acesso em 14 de fev. de 2021.

 

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Não vejo saída pela Porta dos Fundos


Não vejo saída pela Porta dos Fundos

 

Esther de Souza Alferino*

 

Sempre que participo de alguma discussão, uma pergunta aparece: como você acha que nós, pessoas de esquerda, podemos nos aproximar dos evangélicos?


Mas antes de chegar a isso, eu preciso dizer que não sou uma pessoa dada a programas de humor, de modo que preciso começar esse emaranhado de ideias, que espero que faça algum sentido, dizendo que não dou risada com basicamente nada do que o Porta dos Fundos faz, assim como não dou risada do Zorra, dos humoristas youtubers ou dos filmes do Adam Sandler. Meu senso de humor está mais para “Chaves” e “Um maluco no pedaço”. Duvidoso? Provavelmente, mas não estou exatamente preocupada em apurar ou refinar meu gosto pessoal pelas comédias. Por minha iniciativa, jamais assistirei a qualquer especial de natal de humor, seja com ou sem pretensões críticas.


Eu até entendo que na carência de referências em que vivemos, esse movimento em busca de possíveis representantes se acirre, mas também acredito que devemos, enquanto pessoas que se pretendem de esquerda e progressistas, sermos menos emocionados na ânsia de encontrar nossa voz ecoando nos espaços. O “Porta dos Fundos” não é a esquerda (e aqui sem levar em conta as mil complexidades existentes dentro desse termo-balaio), mas muitas das esquerdas (contidas no termo-balaio) se apressam em etiquetá-lo como vozes dissonantes e efusivas em meio a tanto obscurantismo. Eu gostaria de dizer a todos nós: vamos com calma.


Ali naquele elenco existe uma grande diversidade de pessoas e pensamentos e fazer algumas esquetes que ironizam o que existe de mais evidente sobre questões sociais não torna o humorístico necessariamente um porta-voz dos movimentos sociais; inclusive, daquele povo todo ali, quem teve alguma formação de base em movimentos sociais? Quem tem alguma formação política desenvolvida fora do twitter? Ali tem global, tem liberal, tem o pé esquerdo do sapatênis com sobrenome que é nome de rua, tem gente da Record. De onde tiramos que essa gente representa a esquerda?


Dito tudo isso, vou reafirmar o quanto acho sem graça uma reunião de obviedades ditas como grandes descobertas, grandes sacadas, e, claro, polêmicas.


Porque sem polêmica não há audiência que se sustente e até quem se pretende desconstruído não sobrevive sem uma. Ou várias.


Fazer piada da religião alheia é uma polêmica antiga, manjada, uma obviedade, como muita coisa que aquela galera faz, mas ainda assim rende. Com ou sem qualidade crítica – e aqui não farei nenhum julgamento de valor de tal qualidade, simplesmente porque seria incapaz de fazer. Bate recorde de audiência, pode ter boicote puxado pela igreja, não adianta, nem que seja para falar mal, todo mundo quer ver.


Eu não posso e não vou dizer a ninguém do que elas devem rir, do que elas devem fazer piada, qual deve ser o tema dos programas a que elas assistem ou produzem. Mas quando me fazem aquela pergunta de sempre, por tudo que vejo no campo desde que me dedico a estudar os pentecostais, eu só posso dizer que ridicularizar alguém é uma péssima abordagem.


Recentemente, Igor Santos[1] escreveu sobre como a “lacração” com a imagem de Jesus afasta os trabalhadores e dividiu opiniões. Guardo diversas divergências com o texto de Santos, mas também tendo a concordar com muitas questões levantadas por ele. Perdemos eleições por muitos motivos, mas também porque estamos perdendo (e perdendo feio) na disputa de narrativa e na disputa pelas consciências dos trabalhadores brasileiros. Descolamo-nos da realidade das pessoas, alienamo-nos em nossas bolhas pseudo-eruditas em que damos risada de humor medíocre enquanto chamamos pessoas de alienadas. Dizemos que pessoas sofreram lavagem cerebral e são massa de manobra, desconsiderando que os sujeitos são agentes da própria história, são sujeitos com anseios, ambições, e que há quem lhes ofereça o repertório discursivo que negamos quando os infantilizamos e os menosprezamos no que há de mais humano neles: seus desejos.


O crente, aquele crente pobre, que entrou no mercado de consumo na Era Lula, que hoje amarga a volta à pobreza, aquele que dá o dízimo do quase nada que tem, e que por isso é chamado de manipulado por quem paga caro em pedras dizendo que são cristais energéticos; porque, sim, no fantástico mundo da lacração, as pessoas gostam da espiritualidade, não podem ver um “Prem Baba” abusador, que gastam muito dinheiro para ver tudo que ele faz; aquele crente não vai ouvir nenhuma voz arrogante e cheia de tutela, descolada da realidade prática.


Condeno todo e qualquer tipo de censura ou tentativa de silenciamento do grupo de humor aqui mencionado. Não se trata de querer calar a voz deles. Para mim, trata-se de voltar a ser capaz de dialogar com quem tem mais com o que se importar do que gênero neutro na gramática.

 

* Cientista Social, Mestra em Sociologia Política.



[1] Diário do Centro do Mundo. Lacrar com imagem de Jesus cansou e só tem um efeito: colocar trabalhadores contra a esquerda. Por Igor Santos. Edição de 26 de dezembro de 2020. Acessível (aqui).

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

De máscara no queixo*

 

Janeiro de 2021 se encerra e nada indica que teremos um retorno à normalidade. Novas cepas do vírus já foram identificadas e uma delas, aparentemente oriunda de Manaus, parece querer nos mostrar os efeitos imediatos de ignorar o vírus e adotar um comportamento de normalidade. Não bastaram as mortes e as histórias trágicas derivadas do colapso do sistema de saúde manauara, ainda tivemos como efeito do descaso uma nova variante do coronavírus. Em função disso, diversos países fecharam suas fronteiras para viajantes brasileiros - e o governo brasileiro parece não se preocupar muito com isso.

As vacinas continuam a representar a única esperança de um lento retorno à normalidade, mas, dada a confusão promovida pelo Ministério da Saúde e por nossa diplomacia conflituosa, mesmo elas navegam em um oceano de incertezas. O que deveria ser uma vacinação em massa, anunciada pelo ministro da saúde como “a maior campanha de vacinação do mundo”, parece se arrastar na lentidão de um conta gotas. Todavia, a vacina existe e isso parece ser o suficiente para manter a esperança e negligenciar que o problema continua o mesmo – ou pior.

            Enquanto não voltamos ao normal, fingimos que tudo está normal – só que de máscara no queixo. A necessidade de preservar o funcionamento econômico associada ao desejo de negar a pandemia parece ter gerado efeitos deletérios. Em Campos, o vice-prefeito declarou que o sistema de saúde quase entrou em colapso. A informação não foi divulgada no calor do momento, mas serviu para fundamentar o fechamento do comércio da cidade por uma semana. Na sexta-feira daquela semana, um médico da Santa Casa de Misericórdia gravou um vídeo, que circulou por diferentes mídias sociais, em que ressaltava a sobrecarga de trabalho de sua equipe e a saturação do sistema e dos profissionais da saúde em Campos. Nada disso freou o ímpeto da Câmara dos Dirigentes Lojistas - que ignorou a OMS, o médico da Santa Casa, o sistema de transporte em vans da cidade, a arquitetura destituída de ventilação de inúmeras lojas e muitas outras coisas mais – para pressionar pela reabertura do comércio. Aquilo que deveria ser um intervalo de 7 dias, passou a ser um intervalo de 6 dias e explicitou a dificuldade na adoção de medidas de contenção da epidemia. É preciso frisar que, nesse ínterim, Campos passou a contar com mais 10 leitos de UTI, cedidos pela prefeitura de Duque de Caxias, e isso reduziu a porcentagem de ocupação dos leitos. Todavia, fica a pergunta: até quando isso será suficiente?

            Na escalada da crise pandêmica, notamos um discurso de negação dos fatos que chega a ser chocante. O efeito das notícias falsas propagadas por aplicativos de mensagem é sentido na contabilidade diária das vítimas de covid-19 e no desprezo pelas orientações de caráter científico. O presidente do Brasil já desprezou inúmeras vezes a capacidade destrutiva do vírus e até mesmo a eficácia da vacina. E diante disso é preciso simplificar a questão: quem é o presidente nessa fila do pão? Eu mesmo posso responder: um ex-militar mal sucedido na carreira, expulso por indisciplina e outras coisas mais; fez um curso de manutenção de máquinas de lavar roupas, mas ninguém nunca teve uma máquina consertada por ele – e mesmo assim ainda chegou a dizer que se trabalhasse com isso ganharia mais de dez mil reais mensais -; atuou por quase 30 anos como deputado, mas só aprovou dois projetos de leis. Resumidamente: nosso presidente é o tipo de pessoa que nunca bateu um prego em uma barra de sabão e que pode até ter ouvido o galo cantar, mas não sabe onde! É justamente esse sujeito, desprovido de conhecimento, de experiência e de qualquer tipo de formação técnica/científica que desqualifica o conhecimento científico e incentiva que as pessoas não adotem o distanciamento social.  E há quem ainda o chame de mito, mesmo depois de tudo que já se sabe, de tudo que ele já disse enquanto presidente, tudo que fez e tudo o que não fez.

            Vale lembrar que, em caso de contágio e internação, as pessoas não serão tratadas pelo “mito”. Ele não virá de Brasília ou da Barra da Tijuca para tratar alguém – ele não apenas não sabe fazer isso como também não se importa com tal tarefa. Caso o cidadão campista se contamine no comércio, ele não será atendido por ninguém da Câmara dos Dirigentes Lojistas, nem pelo Prefeito, muito menos pelo “mito”. Há grande chance de que ele seja atendido e tratado pelo médico cansado, de jaleco verde, que há uma semana gravava um vídeo pedindo para que a população permanecesse em casa, praticando o isolamento social. Não apenas aquele médico, mas muitos outros, assim como as diversas equipes de enfermagem. E a pior parte é que, enquanto essas pessoas exercem seu ofício no tratamento da saúde da população, elas podem se contaminar, adoecer e morrer; ou levar a doença para seus familiares ou amigos.

Todavia, pedir qualquer grau de solidariedade que demande algum nível de sacrifício, no Brasil, é coisa de esquerdista, não é mesmo? Aqui, o nacionalismo é para inglês ver, pois basta a primeira demanda para que ele se desmanche no ar. Temos mais de 220 mil pessoas mortas e continuamos a negar os efeitos da pandemia. Não procuramos soluções novas para enfrentar o problema, agimos como se ele não existisse, aceitamos as notícias que distorcem a realidade para justificar a manutenção de nossas rotinas e ambições. Seguimos. Seguimos sabe-se lá para onde, desdenhando a Ciência, ignorando o médico da Santa Casa, adiando o colapso da saúde com o empréstimo de 10 leitos e fazendo de conta que está tudo normal.

            Não se trata de ignorar as necessidades das pessoas ou de fazer alarde sobre um problema que não é tão grande assim. O que estou defendendo é que não sejamos cínicos e que não aceitemos discursos hipócritas. Nós enfrentamos a pior crise humanitária em mais de um século e, ao invés de pensarmos em alternativas, em soluções ou inovações, estamos aceitando a farsa do retorno à normalidade, ignorando que isso não resolverá o problema e que poderá, mais cedo ou mais tarde, atingir, direta ou indiretamente, cada um de nós.

 

           

 

Carlos Valpassos

Antropólogo – Universidade Federal Fluminense

 

* Publicado originalmente no Jornal Folha da Manhã, de Campos dos Goytacazes, em 30 de Janeiro de 2021.